Sobre o mar e a morte

Sonho CCXLIII


Era um dia de tempestade.
 
O mar estava revolto.
 
O hotel tinha vários andares, alguns por baixo do mar e outros sobre o mar.
 
Os andares por baixo do mar tinham vista sobre o fundo do mar e os andares sobre o mar tinham vista sobre o mar.
 
A Maria do Mar não queria dormir num quarto por baixo do mar.
 
Tinha medo das ondas, das tempestades e dos trovões.
 
Os quartos que tinham vista sobre o mar estavam degradados e por isso era necessário pintar todas as portas.
 
- Eu preciso de um litro de tinta. - disse o amigo da Maria do Mar.
 
- Eu preciso de setenta mililitros de tinta. - disse a Maria do Mar.
 
- Isso é pouco. - disse o amigo da Maria do Mar - O que vais pintar com setenta mililitros de tinta?
 
A Maria do Mar tinha horror ao desperdício. Na verdade, pensava esticar a tinta. Ficava doente com a ideia de que podia sobrar tinta e que então teriam de deitar fora o resto da tinta.
 
- É melhor pagarmos a alguém para pintar as portas. - disse a Maria do Mar.
 
- Assim aproveitamos o tempo para visitar os nossos mortos no cemitério. É uma forma melhor de passar o tempo. Muito melhor do que passar o tempo a pintar portas.
 
Sentar-se-iam à beira das campas, ainda que chovesse.

Em silêncio, mas falando interiormente, sem que ninguém de fora desse por isso.
 
 

Sobre a lingerie e o assassino

Sonho CCXLII

 
Ainda era Inverno, mas estava um belo dia.
 
Inspirada pelo sol, a Maria do Mar decidira tirar a roupa e caminhar pela areia na beira-mar, entre os rochedos, chapinhando alegremente nas poças.
 
Inesperadamente, deparou-se com um grupo de adolescentes que tinham tido uma ideia semelhante, mas que estavam adequadamente vestidos com fatos de banho e bikinis.
 
Convencera-se erradamente de que ninguém teria a mesma ideia, e agora ali estava ela, de cuecas e soutien, sujeita à reprovação de um grupo de adolescentes.
 
Apesar de considerar que havia muitos argumentos a favor de uma total indiferença no que diz respeito a estas peculiaridades esporádicas da nossa indumentária, também considerava que a discrição nestes casos é uma virtude que não causa dano cultivar.
 
Mas o pior foi quando a maré começou a subir e a Maria do Mar se viu na iminência de perder a sua roupa e ter de andar na via pública naqueles trajes. Já o anterior problema lhe parecia uma ninharia, comparado com esse, quando deu por si sentada numa confortável poltrona de cinema a ver um filme.
 
Era uma mulher que tinha de matar rapidamente um homem, por uma questão de vida ou de morte.
 
A mulher erguia um machado e enterrava-o no estômago de um homem que estava de costas para nós e de lado para ela, sem que se visse o rosto.
 
Quando o homem voltou o rosto, ela percebeu que tinha matado o amor da sua vida.
 
- Shhhhh.... - Disse ele, com o dedo indicador em frente da boca, como quem pede silêncio.
 
Afinal a Maria do Mar não vira bem, o machado estava enterrado no topo da cabeça do homem.
 
De revólver em riste, o homem preparava-se para disparar sobre o verdadeiro assassino.
 
No rosto da mulher podia-se contemplar o horror de quem comete um crime que não tem reparação possível.
 
Iria ela sobreviver?
 
O homem disse ainda mais duas vezes:
 
- Shhhhh..... - inclinando-se suavemente para a mulher.
 
Era talvez como um desses animais a quem cortam a cabeça e que andam durante algum tempo de pé, como se não fossem morrer.
 
O homem apontou o revólver e os braços não lhe tremeram, no momento em que disparou. 

Divertimento

 
 
abelharuco
abelharuco-persa
abibe
abibe-sociável
águia-calçada
águia-cobreira
águia-rabalva
águia-gritadeira
arrabio, alcaravão, alfaiate
cagarra, carriça, calhandrinha
galinhola, ganso-patola
garçote, garajau
mocho-d'orelhas, papa-moscas
pardal-espanhol, pardal-francês
pardela-de-barrete
pardilheira
pato-d'olho-dourado
pato-de-rabo-alçado
pega-rabuda
periquito-de-colar
rabirruivo
rabo-de-palha
tarambola-cinzenta
tarambola-dourada
plim
plim-pia
plim
plim-piu
 

 

 
 
 


Sobre a diferença entre sexo e amor

Sonho CCXL


 
Numa mesa com um casal e mais duas pessoas, uma rapariga falava das suas aventuras amorosas.
 
Ao que ela tinha achado mais graça, num encontro ocasional a caminho do aeroporto, fora a um comentário do seu amante fugaz, quando começaram no vaivém sobre a cama de hotel:
 
- Será que o carpinteiro construiu bem esta cama? Isto range por todo o lado!
 
Mas os ouvintes estavam chocados com a ligeireza risonha da rapariga.
 
Embora fosse possível que a maioria dos ouvintes não compreendesse a causa da sua perturbação instintiva, na verdade esta devia-se ao facto de que a separação pragmática entre sexo e amor não faz parte da educação habitual das raparigas, embora faça parte da formação comum dos rapazes.

Se uma rapariga sente aquele frisson ou aquelas dores de estômago, de um modo geral ela acreditará que está apaixonada, enquanto um rapaz percebe que se sente atraído.
 
- Essa frase migrava directamente para um romance. - disse eu para consolar a rapariga, que não obtivera o efeito esperado com a sua graça.
 
Ela conquistara de um modo solitário e improvável a percepção da separação entre sexo e amor, mas, com essa conquista (que poderia até ser uma preciosa mais-valia no saudável exercício da lucidez), não se livrara da dupla tragédia paralela que precisamente e  pelo mesmo mecanismo assombra o sexo oposto.
 
Por um lado, a tragédia da leviandade e, por outro, de uma passagem sem saída pelo território mortal da indiferença.

Duas amputações paralelas da sensibilidade.
 
 
 
 
 
CARTA DE UM ESPÍRITO MATERIALISTA
 
 

 
 
 
O escritório das Edições Sem Nome (2017)

 
 
 
 
AS PRIMEIRAS CHUVAS
 
 


Sonhos



Podemos acreditar na interpretação finita de um sonho como acreditamos que sabemos o que queremos das nossas vidas, ou que pessoas somos.

Dizemos: «Ah!... Este sonho!... Realmente este sonho quer dizer isto!...»

E sentimo-nos esclarecidos.

Existem até livros publicados onde se explica o significado dos sonhos, ponto por ponto, e em que se parte do princípio que todos os sonhos se referem ao futuro.

«Queda de um dente: morte de parente.»
 
Mas o que são as nossas vidas?
 
Que o sonhador se arrisque, sozinho e pela sua própria cabeça, com o intuito de interpretar um sonho, a recorrer ao método da associação livre, tal como Freud o descreve na Interpretação dos Sonhos, isso pode ser, não o equivalente a um simples cataclismo, mas a um tremor de terra de grau oito na escala de Richter, seguido de tsunami.
 
Não é exagero.

Pois existe a ideia comum de que a alegria dos homens tem um carácter universal, quando na verdade se trata de um juízo totalmente falso.

Segundo os nossos sonhos, parece que a alegria de cada um é tão pouco universal como as brincadeiras das crianças e, além disso, que as fontes da nossa alegria raramente são perfeitamente conhecidas por nós mesmos.

Vou dar o exemplo de uma criança que podia brincar durante horas com um punhado de contas coloridas e um tabuleiro.

Colocava as contas no tabuleiro, agitava-o, parava, e ficava a ver o modo como o movimento das contas ia abrandando, até que ficassem totalmente imóveis. De cada vez que repetia este jogo, as contas formavam constelações diferentes, como as estrelas no céu.

Como definir a actividade da criança?

Uma contemplação?

Uma produção de mundos?

A alegria é, por assim dizer, um mistério a desvendar.

Mas talvez não venha a ser nunca um atraente interesse social que cada um aceda à essência da sua alegria.

É possível que toda a sociedade, tal como a conhecemos, se esboroasse, se reduzisse a pó... E isso seria uma bela coisa, certamente!

Mas em lugar do que temos, o que teríamos?

A alegria é feita de pequenos momentos e de ínfimos cumes. E, como o que de mais universal existe no desejo dos homens parece ser a sua facilidade em ser capturado (aliás, como acontece também com o desejo das crianças), uma vulnerabilidade confrangedora aos mais inanes projectos de sedução, a todas as formas massivas de cobiça e rapina social (que por sua vez produz as estratégias mais caricatas, quando não mesmo vis ou criminosas, de propaganda, de política, de consumo, de domesticidade e de comércio na nossa pequena sociedade actual); o sonho parece existir como uma actividade de resistência, como um instinto anárquico.

Que fácil que é explorar o desejo dos homens!...

Foi este um dos aspectos em que Freud falhou totalmente, quando não percebeu que o sonho congrega uma actividade revolucionária. Talvez por isso seja tão angustiante ler as suas brilhantes análises, tal é a captura, o aprisionamento e a exiguidade a que ele submete esta qualidade móvel, liberta, criativa e imponderável do desejo. Apesar dos inúmeros e valiosos golpes de génio, entre os quais se conta a invenção do método de associação livre, ele reduz o desejo à satisfação e ao prazer e esquece-se de o ligar à alegria e à liberdade, ao puro jogo abstracto de poder inventar e gozar uma nova fruição. Mas que triste e monótono é o desejo que apenas corre entre a fome e a saciedade, entre a carência e a satisfação!... Que insuportável e entediante vaivém!...
 
Na verdade, os sonhos parecem afirmar-se como uma resistência a esta estereotipia do desejo. Uma resistência profunda, salutar e inclassificável, porventura como a resistência da vida contra a morte, do indivíduo contra a massa social que o pretende domar e explorar, do pensamento contra o lugar-comum, contra a inanidade.

Não há como evitar um sentimento de maravilhamento e de admiração. Que extraordinário que é o pensamento e a imaginação enquanto dormimos... Como são reais as nossas sensações e brilhantes todas as cores... Não cessamos de nos surpreender, de nos questionar. Quantos mundos existem para que nós os contemplemos? E como é que no sonho uma ideia se transforma logo em filme, directamente, sem intervalo, e se mostra em salto, em movimento, em palavras vivas e audíveis e em sensações?... Nem sequer imaginamos o que pensamos. Acontece-nos o que pensamos. Movemo-nos no que pensamos. Ah!... Que velocidades, que quedas, que trapézios, que voos fabulosos e que visões sumptuosas!... Que mundos possíveis!... E como vibra o nosso corpo e reage a nossa carne... Como se dobra e desdobra o tempo... Sentimos de um modo claro que o pensamento pensa e que nós, em relação a ele, somos apenas os humildes espectadores, os incautos, distraídos, inconscientes e inadvertidos participantes.

Quem sabe...

Quem sabe é tão fácil explorar o desejo dos homens porque eles nem conhecem o que desejam, já se esqueceram dos seus sonhos quando acordam e limitam-se durante o dia e na maior parte dos casos a ser obedientes, esforçados e a fazer o que se espera deles.
 
 
 


Os problemas raramente são o que parecem

Sonho CCXXXIX


A Françoise M. estava em apuros para conseguir arrumar uma prateleira.
 
Havia três garrafas e algumas coisas inúteis, como um palhacinho de pano, uns crisântemos de plástico e a imagem da Nossa Senhora, também em plástico.
 
Nunca a Françoise teria tais objectos em casa, mas, naquele momento, a verdade é que também não teria paz enquanto os não arrumasse.
 
Haveria certamente uma forma de os compor, pensava a Françoise, uma forma de os combinar que deixasse de causar-lhe aquele doloroso desconforto.
 
Por causa deste problema, a pobre Françoise não conseguia concentrar-se em coisa nenhuma.
 
Finalmente, surgiu uma solução.

O problema não era exactamente o que parecia.
 
Afinal, o maior problema eram as garrafas.
 
Uma de absinto, outra de gin, outra de vodka.
 
A Françoise tirou dali as garrafas e sentiu um alívio extraordinário. 

Sobre a porosidade involuntária da identidade linguística

Sonho CCXXXVIII

 
Há pessoas assim, como esponjas.
 
Mesmo sem querer, ganham logo o sotaque de quem está perto de si.
 
Numa mera conversa de circunstância, a elegante e sofisticada senhora, que fala português do Brasil, exclamou, enquanto subíamos no elevador:
 
- Que corte radical, hem?
 
(Ki cortchi radicau, hem?)
 
E logo eu, fazendo um esforço para pelo menos manter o sotaque do português europeu:
 
- Cansei!... Agora não tem trabalho nenhum mesmo... Você só penteia no banho... Chegou um dia, me olhei no espelho, tudo arrumadinho, e pensei: «Nossa!... Que pessoa é essa?...»
 
Um fenómeno surpreendente, a porosidade involuntária da identidade linguística. 

O monge e o príncipe

Sonho CCXXXVI


É verdade que em certos casos uma relação amorosa prestes a acontecer nunca chega a acontecer.
 
Estes casos são desafios permanentes à nossa capacidade especulativa.
 
A este propósito, Françoise M., sentada à mesa do café, conversava com Heinrich Hart:
 
- Você é orgulhoso e ágil como um lince, poderoso como uma ave de rapina. Eu, pelo contrário, sou altiva como um cipreste, mas humilde como a poeira dos caminhos. Como poderiam formar um par estes dois elementos tão diferentes - o monge e o príncipe?
 
Estão por inventar os seres humanos e a sociedade que tornariam possível um tal casamento.


 
 
 
MORANGOS SILVESTRES
 
 

Sobre o Imposto Verde

Sonho CCXXXV
 
 
A Françoise decidira regressar a um sítio que em tempos abandonara, um sítio onde se liam livros.
 
Estava nervosa e contente ao mesmo tempo.
 
Antes da primeira reunião geral, todos aguardavam numa espécie de sala de convívio.
 
Mas, como tinha chegado muito antes da hora, a Françoise sentou-se numa cadeira com os pés apoiados num pequeno tamborete e começou a ler.
 
De repente, alguém que se aproximou tirou o tamborete debaixo dos seus pés dando-lhe um pequeno piparote com a ponta do sapato.
 
A Françoise ficou furiosa e fez exactamente o mesmo.
 
Dando um sopapo no tamborete com a ponta do sapato, recuperou o tamborete.
 
O descarado fulminou-a com os olhos e a Françoise sentiu-se muito culpada por ser tão egoísta.
 
Mas logo começou a dialogar consigo própria:
 
«Que raio!... Agora és egoísta por teres recuperado o teu tamborete?... Era o que faltava!...»
 
E olhou o descarado com uma máxima indiferença, continuando a ler.
 
Porém, a Françoise absorveu-se de tal modo na leitura que esqueceu tudo em redor.
 
Nem deu pelas pessoas a irem para a reunião, nem pelo silêncio da sala, nem pelo tempo a passar.
 
A leitura era demasiado empolgante.
 
Quando acabou o livro, a Françoise apercebeu-se que tinha faltado a uma reunião importante e que era mais ou menos impossível deixar de ser julgada como irresponsável ou desinteressada.
 
Era até possível que viesse a ser expulsa ou recusada.
 
A Françoise sentiu-se muito abatida. Que triste que é não podermos modificar, nem a nossa espontaneidade, nem o nosso passado!...
 
Na verdade, o seu comportamento tinha uma lógica semelhante, na razão inversa, ao comportamento do governo quando decide taxar os combustíveis fósseis com um Imposto Verde.
 
Porque, se sob a capa de uma bela intenção, que é a de proteger o ambiente encarecendo o gasóleo e a gasolina, o governo arrecada uma bela maquia, pouco investindo em alternativas de transporte ou na fabricação em massa de carros eléctricos, do mesmo modo a Françoise, que tanto se entusiasmava por sítios onde liam livros, se esquecera de estar presente precisamente por estar com um livro.
 
Na verdade, um belo gesto que esconde uma acção grosseira acaba por ter uma lógica directamente inversa a um gesto infeliz que esconde uma acção valiosa.
 
Que tudo acabe por resultar numa mesma espécie de desastre - em escalas muito diferentes, obviamente - no fundo isso não é mais que a consequência comum desse famigerado destino que tão frequentemente caracteriza a incoerência e a infelicidade humana. 

 

NENÚFARES
 
 
aqui

 
  
 
SEM TÍTULO
 
 

 
 
 
LINHAS DE FUGA
 
de Maria do Mar
 
 

 

 
 
ALMA DE RAPARIGA


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Sobre uma parede demasiado grande

Sonho CCXXXIII


Era uma parede altíssima, mas queria ser eu a pintá-la, sem a ajuda de ninguém.
 
Não conseguia porém iludir-me sobre a minha capacidade para o fazer.
 
Sabia lixar, pintar, restaurar o estuque da parede, mas como chegar lá acima?
 
Sem dúvida, era preciso um andaime.
 
Mas onde poderia arranjar um andaime?
 
Talvez fosse possível colocar um escadote em cima de uma mesa?
 
Mesmo um grande escadote em cima de uma grande mesa não permitiria chegar ao tecto.
 
E como montar um andaime?
 
Principalmente, como montar um andaime com a necessária técnica e segurança que impeça que o andaime se desmorone, estando uma vez nós em cima dele?
 
Um andaime não é bem um jogo de lego nem um móvel em peças com o respectivo livro de instruções.
 
Ah!...
 
Não sermos capazes de fazer tudo sozinhos!...

Sobre os restos de um casamento

Sonho CCXXXII


Já todos os convidados tinham comido e agora formava-se uma longa fila para o café.
 
Eu andava de roda dos restos dos canapés, surripiando umas coisas aqui e ali.
 
Principalmente aquelas mini salsichas enroladas em queijo gratinado e presas com um palito e os ovos mexidos com pimentinhos coloridos sobre as minúsculas tostas, essas coisas que se podiam meter todas de uma só vez dentro da boca, à socapa, eram verdadeiramente irresistíveis.
 
Por mim, dispensava o café.

Preferia andar por ali como um ladrão clandestino, surripiando, entre a delícia e a culpa, aquilo que podia.
 
 
 


Sobre a anulação de todas as previsões realistas

Sonho CCXXXI
 
 
Guiava em cima de um carril, no caminho de ferro, e toda a gente se metia à minha frente.

Primeiro foi um urso, mas consegui travar a tempo.

Depois foi um adolescente, com uma mochila às costas.

Depois uma pequena criança.

De todas as vezes consegui travar, mas com uma enorme angústia.

O atrito do carril era de tal modo diferente do da estrada que todas as previsões de travagem se mostravam impossíveis.

Apareceu um daqueles doidos de gabardina que se querem mostrar nus por baixo, um exibicionista.

A esse ameacei atropelá-lo e ele fugiu como um cão, com o rabo entre as pernas.

Por fim, deparei-me com um enorme tanque de guerra, parado no fim do carril, antes de uma ravina sobre o mar.

«Estamos todos perdidos!...» - Pensei.

Nesse momento a única coisa que procurei fazer foi calcular os movimentos que me permitiriam ter um mínimo de contusões depois do embate.

O meu carro era descapotável e saltei para cima da tampa do motor com esperança de saltar para cima do tanque antes do choque.

Atrás de mim vinha um comboio, em alta velocidade.

Não sei como fiz, mas consegui gritar para o condutor do tanque:

- Dê-me a sua mão!

Precisava que me desse também a outra mão, mas ele estava a falar ao telemóvel.

Como é realmente admirável a capacidade do egoísmo humano!...

Uma só mão porém foi suficiente para amortecer o choque e cair de uma forma não tão má, pela ravina abaixo.

Fiquei à espera de ouvir o estrondo do choque do comboio, mas não ouvi nada.

Tudo o que via eram enormes barcos de guerra que deslizavam na terra e não no mar.

E dentro deles, gigantes - os peixes enormes, cintilantes e tranquilos.

Cada barco levava um só peixe que o ocupava por inteiro.

Que imagem extraordinária!
 

Sobre as mentiras em que acreditamos ao longo das nossas vidas

Sonho CCXXX


Estava a dar um filme sobre as mentiras em que acreditamos ao longo das nossas vidas, principalmente aquelas que nos instruem sobre os caminhos da nossa felicidade.
 
Era uma aula de filosofia. Esse tinha sido o método que o professor escolhera para obrigar os alunos a pensar naquilo que se aceita sem pensar, talvez porque a imitação seja o instinto mais universal do ser humano.
 
Em geral, começamos por acreditar que a nossa felicidade pode depender do amor, da fama, do dinheiro ou do sucesso - e isto acontece até mesmo quando acreditamos nas versões suaves destas teorias sobre a felicidade, como aquelas que nos dizem que podemos ser felizes a fazer bem aos outros.
 
Raras são as propostas que nos explicam que a essência da alegria é ainda mais delicada e difícil de perscrutar do que a filigrana dos átomos invisíveis que compõem o ar, e que alcançá-la passa mais por estarmos atentos a coisas que geralmente ninguém vê.
 
Que dificuldade!... Estar atento!...
 
Alguém nos disse que a essência da nossa alegria é em geral singular e inimitável e, além disso, desconhecida em todos os nascimentos, como nós mesmos?
 
Para nada disto estamos preparados.
 
Eu saía do filme pois descobria que estava cheio de nódoas de sopa na roupa.
 
«Já não tenho idade para me sujar desta maneira!...»
 
Despi a roupa na casa de banho, com esperança de a limpar, mas houve quem olhasse para o meu corpo com espanto.
 
Essa pessoa estava deveras surpreendida porque com roupa eu tinha um aspecto bastante diferente.

Em público, há pessoas que preferem esconder-se.

Vesti a minha roupa sem conseguir tirar as nódoas e meti-me no carro para voltar para casa.



O que decidimos fazer numa situação-limite

Sonho CCXXIX


Começara a guerra.
 
Em Aranjuez preparava-se um êxodo.
 
O que Françoise mais gostara em Aranjuez não fora o Palácio Real, nem a Casa del Labrador, mas os plátanos do jardim do palácio.
 
Eram plátanos muito antigos a quem ninguém cortara os ramos como se faz habitualmente nas cidades; e os ramos rasavam o chão, numa expressão de volúpia.
 
A Françoise não sabia se havia de fugir de metro ou de carro.
 
Para onde?
 
Em direcção ao centro da Europa ou em direcção a Portugal?
 
Será que o velho Opel aguentaria a viagem?
 
Era preciso reunir mantas, mantimentos e garrafões de gasolina.
 
A sua avó que tinha morrido há tantos anos estava ali e a Françoise correu a abraçá-la.
 
- Queres ir comigo no meu carro?
 
Portugal, pela sua insignificância, era um destino mais seguro.
 
A Françoise aproximou-se do carro de Heinrich Hart e disse:
 
- Não parta sem mim.
 
- Não sou seu amigo nem seu pai, porque haveria de partir sem si?
 
A Françoise sorriu com um sorriso de circunstância, guardando os sentimentos no fundo de si como num cofre.
 
- Tem toda a razão. Porque haveria de partir sem mim? Se vir algum perigo, por amor de Deus, parta imediatamente. Mas se puder esperar, espere por mim que eu vou atrás do seu carro.
 
Fora apenas por causa de Heinrich Hart que a Françoise decidira arriscar a viagem de carro.
 
Mas isso ela nunca diria. 
 
 

Sobre a culpa e a sobrevivência

Sonho CCXXVIII


Seguíamos por uma dessas estradas de montanha, íngremes e sinuosas, quando o meu companheiro foi arrebatado por um tigre.
 
Cobarde, desatei a fugir.
 
Mas talvez me sentisse melhor se tivesse morrido com ele.
 
Tudo o que vi foi um pedaço de tripa que vinha arrastada pela água da cisterna dos bombeiros, estrada abaixo, e que desapareceu numa sarjeta.
 
Agradeci ao realizador do sonho que não tivesse mostrado mais.
 
Ver apenas aquela parte do corpo foi suficiente para que ficasse morto por dentro.
 

Sobre a culpa indirecta ou a causalidade excêntrica

Sonho CCXXXI


 
A Maria do Mar queria realizar um pedido de desculpas, mas era muito difícil.
 
Os seus maiores defeitos de carácter eram o orgulho e a teimosia.

Quando era criança, a ideia de pedir desculpa era equivalente à ideia de lhe arrancarem a língua.
 
Com a agravante de que a pessoa a quem queria pedir desculpa estava muito zangada e sem disposição para perdoar.
 
Essa pessoa deu-lhe a seguinte notícia:
 
- Houve um homem que roubou o teu carro, teve um acidente - e morreu.
 
A Maria do Mar desatou a chorar.
 
Sentia-se culpada porque alguém que tinha roubado o seu carro tivera um acidente - e morrera.
 


Sobre a frequente incompatibilidade entre o desejo, as inclinações e o tempo

Sonho CCXXXI


Primeiro fora ele que, tomado por uma espécie de pudor por causa da diferença de idades, se coibira de avançar.
 
Depois fora ela que, por causa de uma mistura entre humildade e insegurança, não se achara digna de um homem tão admirável.
 
Um dia, a Françoise caiu aos seus pés e, abraçando-lhe os joelhos, exclamou:
 
- Sou inteiramente sua. Quer casar comigo?
 
Nesse dia ficou a saber que Heinrich Hart já há muito que casara.




Ingmar Bergman, O Sétimo Selo




 
 
 
A CARTA DE UM ESPÍRITO SINGULAR
 
 

Sobre a relação entre o amor e o silêncio

Sonho CCXXX


Finalmente, a Françoise M. conseguira cruzar-se com o grande amor da sua vida.
 
Que alegria, estarem sentados um diante do outro!...
 
Mas a Françoise sentia uma terrível timidez e por causa disso estava completamente paralisada e sem ideias para dizer coisa nenhuma.
 
Tantos anos se tinham passado, e não fazia diferença nenhuma.
 
- Sabe, - dizia ele - você fala demais. Você é uma tagarela.
 
- Pois, - retorquia a Françoise - a culpa é sua. Se eu estivesse consigo já não falaria assim tanto.

Sobre as casas que balançam

Sonho CCXXIX


As casas na areia balançam muito.
 
Parecem árvores, mas não são flexíveis, ao contrário das árvores.
 
Ali temos muito medo - mas fingimos que não é nada connosco.
 
As casas na areia não têm raízes, por isso abanam com o vento.
 
Nas casas caiadas de branco, existem molduras de azul.
 
Os carros também balançam e saltam, conforme a maré desce ou sobe.

Parecem pulgas da areia.
 

Sobre os animais que se multiplicam

Sonho CCXXVIII


A Maria do Mar estava bastante surpreendida por verificar que sofria de uma queda aguda de cabelo.
 
Podia observar no espelho que uma grande queda se tinha verificado no alto da cabeça, criando ali uma clareira circular que fazia lembrar a tonsura dos monges.
 
Para isto a Maria do Mar não se preparara.
 
Sabia que a pele lhe cairia um dia em torno do corpo, que os cabelos ficariam cinzentos, os ossos frágeis, as articulações calcificadas - mas nunca imaginara que pudesse ficar careca.
 
Além disso a Maria do Mar tinha agora um animal doméstico que se multiplicava sob stress.
 
Chamava-se Rasputine.
 
Lá em casa, o vento fazia bater uma porta com estrondo e... ZÁS!...
 
Em vez de um Rasputine - trinta Rasputines.
 
- Rasputine!... - bradava a Maria do Mar.
 
Era como aqueles professores que, pelo medo que inspiram aos alunos, tornam mais insignificante o medo natural que estes têm relativamente à dificuldade das tarefas.
 
Os trinta Rasputines voltavam a ser um Rasputine, mas era sol de pouca dura.
 
Ouvia-se dentro de casa o estrondo de um camião que passava sobre um buraco da estrada e... ZÁS!...
 
Em vez de um Rasputine - trinta Rasputines. 

Sobre a inexistência da coisa pública

Sonho CCXXVII


Vivíamos debaixo de fogo cerrado, precisamente no enclave onde se defrontavam as forças de dois países inimigos.
 
Tudo aquilo em que pensávamos se resumia à nossa sobrevivência.
 
Carregar água, conseguir alimentos, fazer pão, manter-nos limpos, tratar das crianças, escapar das bombas.
 
Vivíamos nas garagens subterrâneas de um prédio reduzido a escombros e todo o nosso tempo livre era dedicado a escavar um abrigo.
 
Se os inimigos nos descobrissem e entrassem na nossa casa, poderíamos ao menos refugiar-nos naquele buraco.

Aquele buraco era toda a nossa esperança.

Todos os dias podíamos sentir a opressão e a angústia dentro dos nossos peitos, mas tentávamos não pensar nisso.

Todos os dias nos imaginávamos a fugir para ali, disfarçando a entrada com um armário, tijolos que tínhamos preparado para o efeito e pedras. Levaríamos os nossos gatos debaixo dos braços em sacolas.
 
Éramos civis inocentes. Mas mesmo que fôssemos culpados seria um castigo desumano e cruel matar-nos ou mutilar-nos com uma bomba.

Havia três crianças, dois gatos, duas mulheres e um homem.
 
Um dia conseguimos ligar para o Presidente da República.
 
- «Oiça, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, você como representante maior do estado, como figura digna e emblemática, como porta-voz do povo, pelo menos você deveria denunciar esta guerra - e todas as guerras - em nome da lucidez e da sanidade física e mental de todos os cidadãos. Mas diga-nos, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, porque é que você anda para cá e para lá, com falinhas mansas?... Nós as pessoas não temos nada a ver com os países. Os países são entidades e negócios que nos transcendem, exactamente como os antigos reis transcendiam os povos. Tudo o que temos é uma língua - mas ela nem sequer é um pai. Sabe, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, tudo o que temos é uma língua-mãe. E ela deixa-nos aqui ou ali, pelo mundo fora. Não temos pátria. Só temos mátria. E não somos apenas pessoas. Também somos gatos. Os nossos gatos não têm culpa que falemos francês, mas serão exterminados por isso mesmo, se o inimigo nos apanhar. Que temos nós, as pessoas, a ver com os negócios de todos os países, com os interesses instalados? No momento em que nascemos o mundo já existe... Só queremos cuidar das nossas crianças, proteger os nossos filhos e viver com alegria e dignidade. Você pelo menos como figura emblemática do estado comece por defender a abolição dos países, comece por denunciar que a nacionalidade que se impõe aos cidadãos, desde a nascença, é uma atrocidade, que os países são totalmente extemporâneos às pessoas, são uma maldição, um aparelho parasitário, como a antiga aristocracia, uma canga com que se carregam as multidões para as domar e para as explorar, de preferência até ao tutano, e que se serve delas, como qualquer tirano e se a necessidade ou a oportunidade surgirem, como carne para canhão, segundo os seus interesses próprios e individuais, mas que não têm nada a ver com a vida geral... Que lastro de morte e desolação!... Que caravana sombria de gente triste e mutilada!... Como avançam os homens de ombros vergados, de olhos opacos!... Decrete, Excelentíssimo Senhor Presidente da República, que em vez de países, se organizem as terras do mundo, e que a guerra seja para sempre banida. Ah!... Desculpe-nos. Esquecemo-nos que você não é presidente de coisa de nenhuma. Não existe nenhuma coisa pública, como indica a honorável forma do seu título. Se houvesse uma coisa pública, de facto, ela não seria propriedade só de alguns, nem caberia aos poderosos escrever as leis que servem para oprimir os impotentes.»

A flor do sal

Sonho CCXXVI


Fazíamos amor durante horas, mas, no final, estávamos mais sós do que antes.
 
Os nossos corpos tinham-se encontrado, mas não as almas, e, apesar do calor que nos corria por dentro, as nossas almas tinham mais frio.
 
Não deve ser por acaso que a vida dos santos e dos ascetas tantas vezes começa pelo excesso.
 
Cabe frequentemente aos que sucumbem a toda a ordem de vertigens virem a transformar-se nos mais sóbrios e reservados dos homens, nos ébrios de Deus que festejam com erva e água pura.

Colhem a preciosa e evanescente flor da frugalidade, como quem colhe a flor do sal. 

 
Listas

aqui
 

Sobre a culpa que se adquire com a intenção, mesmo sem as vantagens do delito

Sonho CCXXV


A Françoise M. descia com uma amiga pela rampa de um estacionamento subterrâneo até encontrar um grupo de chineses sentados em lonas, que estavam de guarda aos seus haveres.
 
Ali se tinha reunido muita gente, mas não havia automóveis.
 
Porque estariam todos ali?
 
Seria por causa das bombas?
 
Estariam em guerra?
 
Havia pessoas sentadas em cadeiras brancas de plástico, observando quem passava.
 
Alguns tinham trazido cobertores, outros tinham trazido caixotes de fruta e outros ainda tinham trazido móveis de casa.
 
Havia uma estante muito feia com uma jarra terrível e uma flor de plástico.
 
Meu Deus!... As coisas de que as pessoas precisam!...
 
Também havia um daqueles bares em forma de armário, cheio de garrafas.
 
A amiga de Françoise M. pegou num copo e serviu-se de uma garrafa de gin.
 
A Françoise pensou em fazer o mesmo, mas depois reflectiu.
 
Para a sua amiga era apenas um copo de gin, mas para si seria a ruína.
 
Mesmo estando em guerra e debaixo de um bombardeamento, não lhe parecia uma boa opção.
 
Disse:
 
- Adeus.
 
E subiu à superfície.
 
Lá em cima a Françoise encontrou por acaso a Narciso E. F. que fazia anos.
 
Trazia um bolo, mas, infelizmente, não havia nada com que pudessem comê-lo.
 
Nem pratos, nem guardanapos.
 
Era noite avançada, quase de madrugada, e a Françoise determinou-se a assaltar o Gambrinus para ir buscar copos e guardanapos.
 
Era inofensivo roubar ali três guardanapos de papel e uns pratos, eles tinham demasiadas coisas.
 
A porta estava apenas encostada e a Françoise entrou facilmente, mas esqueceu-se que era um ladrão e acendeu todas as luzes, para poder encontrar os pratos e os guardanapos.
 
De repente, ficou muito aflita.
 
O que estava a fazer?
 
Por que raio tinha acendido aquelas luzes todas?
 
Agora qualquer um podia vê-la, ainda por cima com aquele casaco branco e felpudo.
 
Sentiu passos a aproximarem-se.
 
Deixou cair os guardanapos no chão que estava molhado e os guardanapos desfizeram-se quase imediatamente, de modo que não foi possível apanhá-los.
 
Também não havia por ali pratos de plástico e, como a Françoise não queria roubar nada que pudesse fazer falta no restaurante, saiu de mãos a abanar.
 
O grupo de homens que vinha abrir o restaurante cruzou-se com ela, enquanto a Françoise corria o mais que podia.
 
- Já que me incriminei, não podia ao menos ter colhido as vantagens do delito?

A cegonha e a chaminé

Sonho CCXXIV

 
F. de Riverday estava na sala com a mãe e a avó, no topo de uma alta torre, num castelo.
 
Não que quisesse suicidar-se, mas, ao sentar-se no parapeito da varanda, desequilibrou-se e caiu.
 
Durante toda a queda maldisse a sua má sorte, pensando que ia morrer.
 
Por isso qual não foi o seu espanto quando, no final da queda, deu por si no topo de uma alta chaminé de tijolo semelhante àquelas que resistem ao abate das velhas fábricas e ficam plantadas no meio dos ermos.
 
Tais chaminés são iguais, na sua mágica inutilidade, a velhos dólmens.
 
F. de Riverday parecia uma cegonha sentada no topo de um poste.
 
Apesar de estar numa situação difícil, pelo menos não estava morta!...
 
Como poderia sair dali?
 
Quem poderia salvá-la?
 
Não é que a sua mãe quisesse suicidar-se - a sua mãe ainda menos que F. de Riverday, absolutamente!... - mas, ao sentar-se no parapeito da varanda, também ela se desequilibrou e caiu.
 
O caso de sua mãe foi de certa forma ainda mais extraordinário que o seu.
 
O seu pé enrolou-se numa corda e quando estava quase a bater com a cabeça contra o chão, ficou presa pelo pé.
 
A sua mãe portanto salvou-se.
 
A avó debruçou-se no parapeito da varanda, estarrecida.
 
Ela de todo é que não queria suicidar-se!...
 
Mas também se desequilibrou e caiu, tal como a filha, e ficou presa pelo pé numa corda, a poucos centímetros do chão.
 
Que fariam agora com F. de Riverday que estava no alto da chaminé, como uma cegonha?
 
F. de Riverday era pobre mas tinha alguns móveis raros e antigos na sua casa, que tinham vindo dos seus antepassados.
 
Por causa disso ganhara a inimizade de uma família hotentote que não compreendia o conceito de herança.
 
O mais cómico e ingrato, de certo modo, era que Riverday considerava um belo progresso social  e mesmo um progresso espiritual que o conceito de herança se tornasse incompreensível.
 
Que bela conquista!...
 
Mas como era pobre e nunca poderia ter comprado esses móveis com o seu salário esses amigos recusaram-lhe a confiança no momento em que a consideraram suspeita de actividades ilícitas.

O gelo e o sal

Sonho CCXXIII


Um conhecido de F. de Riverday chegou com um presente na mão.

Era um saleiro que tinha a forma de um eléctrico vermelho e, na ponta, uma pedra de gelo.

Parecia uma dessas recordações que os turistas gostam de levar para casa, mas não se percebia bem o que fosse.
 
Riverday teve vontade de passar a língua na pedra de gelo, mas achou que não seria apropriado.
 
De resto, sabia-se lá por onde tinha andado aquela pedra de gelo.
 
Era uma pedra de gelo especial, que nunca derretia.
 
- O que é isto? - perguntava F. de Riverday.
 
-Ah! Não sabe?... O gelo e o sal?
 
- Não sei, não. - dizia ela.
 
- Mas isso toda a gente sabe.. O gelo e o sal!...
 
- Ora essa! Eu não sei!
 
Ficou a olhar para aquilo deveras intrigada e pelos vistos sem maneira de saber de um modo imediato pelo seu interlocutor o que aquilo era.
 
- Bom - disse ele, depois de uma pausa - e agora já sabe?
 
- Pelo menos sei que é alguma coisa do domínio popular que todos conhecem mas eu não.
 
- Mas isso é nada!
 
- É muito para quem não sabia nada de nada de todo.
 
- Que exagero.
 
- Certo. Mas é alguma coisa e alguma coisa é melhor do que nada.
 
- Pois claro, quanto a isso estamos de acordo.
 
Porque entre aqueles que folgam em desentender-se pelo menos o doseamento da expressão não deixa de ser uma virtude.
 

Sobre a relação flutuante entre a felicidade e a distância

Sonho CCXXII


Podia imaginar-se que este sonho me aconteceu depois de todos os incêndios que grassam na Primavera e no Verão.
 
Mas este sonho aconteceu-me no Inverno, quando não há incêndios.
 
Gostaria de saber que desejo encontraria Freud nos sonhos meramente reflexivos, elocubrativos.
 
Pois é certo que a teoria do desejo nos ajuda a penetrar o sentido opaco de alguns sonhos, pelo menos de um modo provisório.
 
Um desejo de começar a pensar?
 
Eu vivia muito perto do Casino e todas as noites os néons prateados e vermelhos iluminavam a minha sala.
 
A minha casa era apenas uma sala, um estúdio repleto de janelas que não tinham estores que as protegessem da luz.
 
Eu dormia num divã.
 
Saía de noite, sozinha e a pé, mas havia muitas estradas vedadas, com polícia,  por causa dos incêndios.
 
Por todo o lado se entreviam as chamas, mas as chamas estavam longe.
 
Eu queria perceber tudo o que se passava e queria fazer alguma coisa, mas era proibido.
 
Por todo o lado estavam aquelas fitas vermelhas e brancas.
 
Circulava simplesmente por ali, observando tudo o melhor que podia, até me sentir exausta.
 
Quando regressei a casa as pernas doíam-me muito e de um modo agradável.
 
Despi-me e enfiei-me na cama que cheirava a roupa lavada.
 
Senti-me incrivelmente feliz, com o corpo dorido e pesado, nesses escassos segundos antes de adormecer.
 
Como é rápido e fugidio o momento gentil em que nos apagamos!
 
Qualquer drama a uma certa distância não tem um modo seguro de abalar definitivamente a nossa felicidade.
 

Sobre a neutralização do horrível

Sonho CCXXI



Tínhamos ido fazer um passeio à beira-mar, mas o caminho estava cheio de legumes.
 
Batatas e cebolas brotavam da terra e, aqui e ali, viam-se as folhas dos alhos franceses e a rama dos nabos.
 
Eu olhava para os legumes sujos e manchados de negro com um certo repúdio, e dei por mim a pensar:
 
«Mesmo tu não escapas à futilidade e só gostas de coisas lavadas e brilhantes, bem ordenadas em prateleiras luminosas!...»
 
Observava com profunda tristeza quão tão distante estava da terra.
 
Adiante, duas senhoras velhinhas estavam a fazer um pic-nic debaixo de um guarda-sol.
 
«Bela ideia!...» - pensava eu.
 
E no final do caminho à beira-mar podia ver-se uma praia que tinha sido inteiramente remodelada pelas autoridades locais.
 
A intervalos regulares erguiam-se pequenas colunas numa imitação de mármore, semelhantes a pedestais, e, no topo de cada coluna, estava uma mão de plástico com os dedos abertos, iluminada de amarelo fluorescente.
 
Era francamente mau, totalmente inútil, e podia calcular-se que fora gasta uma verdadeira fortuna naquela iluminação de praia. 
 
«Como é que as pessoas podem estender-se aqui e gozar o sol, como se nada fosse?»
 
Parece que a fealdade e o mau gosto, quando inoculados em pequenas doses e de um modo progressivo e constante, criam uma tal habituação, diríamos mesmo tolerância, tal como acontece no abuso de álcool ou drogas (e no sofrimento em geral), isto é, produzem uma tal insensibilidade que acabam por desembocar na indiferença.
 

Sobre a perspicácia natural das crianças, quando comparada com a dos adultos


Crianças 15
(Madalena e Teresa, de oito anos)


As aulas de piano, talvez pelo seu espaço pequeno e circunscrito e pela sua qualidade intimista, transformam-se muitas vezes em confessionários. Os mais estranhos e inusitados diálogos se desencadeiam e, de um modo bastante inesperado, prosseguem.
 
- Ó professora, a Teresa continua a escrever bilhetinhos de amor ao Francisco, mesmo depois de ele os rasgar debaixo dos olhos dela!
 
- A sério, Teresinha?
 
- Sim.
 
- Mas Teresinha, tu és magnífica... Estes olhos azuis... Estes cabelos de ouro.... Pareces saída de um conto de fadas...
 
- Eu só estou a dar um tempo. Depois escrevo-lhe outro bilhetinho.
 
- Logo o Francisco... que é um fanfarrão, um arrogante e que não se importa de ser cruel...
 
- Não sei o que é nada disso.
 
- Fanfarrão?
 
- Sim.
 
- É um vaidoso, um convencido, alguém que acha que sabe tudo.
 
- Ah!... Mas não é dessa parte que eu gosto nele...
 
- Podias gostar do Diogo ou do Tomás, que são uns amores.
 
- Não sou capaz.
 
- Ao menos finge que gostas de outro, para ver se o Francisco fica menos vaidoso.
 
- Não serve de nada. O Francisco nunca vai gostar de mim.
 
- Então, Teresinha?... Não podemos gostar de quem não gosta de nós...
 
- Ai!... Mas aqui dentro não muda nada...
 
- Pelo menos guarda segredo e finge que o ignoras, não lhe escrevas bilhetinhos para ele rasgar em frente de toda a gente...
 
- Pois, - diz a Madalena - eu também gosto do Diogo e guardei segredo. Ninguém sabe a não ser o João.
 
- Eu agora também sei. - diz a Teresa.
 
- Como é que sabes? - pergunta a Madalena.
 
- Madalena!... - respondemos as duas em coro.
 
É caso para dizer que o juízo sofre sérias convulsões, cada vez que nos apaixonamos. 
 
 

O fox-trot e o vestido azul

Sonho CCXX


Estávamos a aprender a dançar o fox-trot mas não conseguíamos por causa daquele vestido azul.

Sobre um noivo desconhecido

Sonho CCIX


Por causa de um desses mal-entendidos que nos podem causar o maior dos constrangimentos, a Françoise M. estava a ser alvo da corte de um fidalgo alentejano, um desses grandes proprietários de gado, que era amigo de seu pai e com cuja filha em tempos apanhara umas terríveis bebedeiras.
 
A Françoise M. via-se às aranhas para chegar à franqueza sem passar pela indelicadeza ou pela ofensa.
 
O fidalgo por seu lado exibia a sua propriedade como se de um penacho num chapéu se tratasse.
 
Mostrava-lhe com orgulho as várias salas e, numa delas, que era oval, quatro plasmas que permitiam ver televisão de todos os ângulos.
 
- Eu não tenho televisão... - dizia a Françoise, timidamente, com esperança de que isso pusesse a nu o abismo que os separava.
 
Mas o fidalgo era tão orgulhoso que não conseguia perceber que a Françoise não tinha televisão porque não queria.
 
Por fim, a Françoise lá conseguiu agarrar um pretexto e fugir dali para fora, de uma vez por todas.
 
Uma vez lá fora, suspirando de alívio, a Françoise olhou para as linhas de um muro alto caiado de branco, que emoldurava um pátio.
 
O pátio era inteiramente vazio e o muro inteiramente branco.
 
A Françoise respirou fundo, no meio daquela brancura, e entregou-se por um momento ao sol.
 
Aquela simplicidade, sim!... - aquela simplicidade é que não tinha nada a ver com esse excesso de coisas e com as coisas em quadriplicado, que não servem para nada.
 
- O que basta, basta. - pensava a Françoise.
 
Não conseguia perceber como é que todos não sofriam com a futilidade e com o lixo que constantemente produziam e, pelo contrário, pareciam tão felizes e satisfeitos com isso.
 
Se a Françoise não amasse sempre mais as cores do mundo e as estrelas, os animais, os rios e as árvores, esse que tinha desenhado aquele muro, com esse ou com essa é que a Françoise poderia ter uma relação de noivado.

Sobre a angústia de querer salvar um passarinho

Sonho CCXIII



Durante um passeio, a minha amiga C. encontrou um passarinho no chão.
 
Era pequeno como um pardal, cor de cinza prateado, com uma suave faixa branca no peito e uma popa verde-alface.
 
- Olha!... - exclamou ela. - Um passarinho!...

Distraída nos meus pensamentos, eu nem sequer vira o passarinho.

Olhava para ela sem saber o que fazer, considerando-a mais capaz de salvar um passarinho.
 
- Está tudo bem. - Dizia ela, pegando nele com as duas mãos. - Vê como ele é forte, bravo e corajoso.
 
Lançava-o no ar - e ele voava.
 
Começava por me sentir muito feliz, mas, observando melhor, conseguia ver que o pássaro voava de cabeça para baixo.
 
Mais adiante ele caía, e, apesar de ter voado um bom bocado, talvez uns bons metros, era aos nossos pés que ele caía, como se o espaço fosse um harmónio e tivesse sido todo dobrado.
 

Carpe Diem, Nuvem, de Françoise M.

 



 
 
 
 

 
 


Poeiras de Cantor




 
 



(luzes de automóveis em movimento
fotografados através de um pano de linho)



 
 
  
Excesso de Mortos



Contos Musicais - de Wackenroder, Kleist e Hoffmann

Selecção, prefácio e tradução de Claudia J. Fischer e posfácio de Mário Vieira de Carvalho
 
 
 
 
 
  
Este livro reúne cinco contos inéditos em Portugal de Wackenroder, Kleist e Hoffmann, três figuras cimeiras do romantismo alemão.

Entre si, estes contos têm duas coisas em comum. Todos são textos literários e, portanto, musicais por si só, e em todos existe um mesmo protagonista principal - a música.

É inegável que a música nos atinge directa e fisicamente, isto é, sem qualquer tipo de mediação. Não precisamos de saber rigorosamente nada de música para que nos aconteça sermos profunda ou violentamente afectados por ela. De um abalo deste tipo fala-nos Kleist, no conto «Santa Cecília e a força da música», e também Wackenroder. A música afecta-nos de um modo total e imprevisto, atinge-nos e faz-nos ressoar do mesmo modo que ressoam as almas dos instrumentos musicais, ou, como sublinha Claudia J. Fischer, no prefácio, «envolvendo o corpo e pondo-o em vibração». (1)

De um modo semelhante, mas distinto, porque o fluxo musical é em primeiro lugar trazido por um ouvido interior e num plano que diríamos «acusmático» (2), a literatura, quando focada sob o aspecto musical que é intrínseco à sua forma sonora e material, como um fluxo de ritmos prosódicos, de tons, de pausas, de andamentos e de cadências que compõem uma atmosfera, também pode ser  sentida «como uma matéria que envolve e põe o corpo do leitor em ressonância». (3)

É neste sentido que Claudia J. Fischer começa por citar o ensaio de Gumbrecht, traduzido do alemão para o inglês com o título Atmosphere, Mood, Stimmung, On a Hidden Potential of Literature, e no qual o autor defende, com base na atmosfera (no clima), no tom, no temperamento e portanto na qualidade musical do texto, uma leitura orientada para a percepção de estados de alma ou ambientes. (4)

Curiosamente, é sintomático que o pai do jovem Joseph Berglinger, no primeiro conto de Wackenroder, «A estranha vida musical do compositor Joseph Berglinger», seja médico.

Neste conto extraordinário, tanto o pai como o filho irão, cada um à sua maneira, percorrer a via que vai da paixão ao desencanto, na perseguição de uma possibilidade de alegria. Porque, se a medicina neste conto surge como a profissão de alguém que tem uma compaixão genuína pelos sofrimentos do corpo, mas que, de tanto se dedicar ao conhecimento «das estranhas coisas que no corpo jazem escondidas», se transformará na vítima de um «veneno oculto» que lhe esfriará a alma; por sua vez a música, que para o jovem Joseph Berglinger é a única fonte terrestre de entusiasmo e libertação, surge pelo contraste com a ciência do pai como uma espécie de medicina da alma. (5)

Na verdade, o conflito entre o pai e o filho na dupla via do desencanto em que corpo e alma seguem separados pode ser lido como um quase imperceptível drama minimal  de um combate mais profundo, o combate do longo, febril, surdo e macerado conflito entre a alma e o corpo, que marca todo o curso do pensamento judaico-cristão.

«Quando Joseph ia assistir a um grande concerto, sentava-se num canto e, sem sequer olhar para a esplendorosa assembleia de espectadores, ficava a ouvir a música com o mesmo recolhimento que teria na igreja – igualmente quieto e imóvel e com os olhos pregados no chão. Não lhe escapava o mais ínfimo som, e aquela atenção concentrada fazia com que, no final, todo ele ficasse alquebrado e exausto. A sua alma, infinitamente maleável, era toda ela um jogo de sons; era como se, liberta do corpo, palpitasse mais livremente ou como se o seu corpo se houvesse transformado em alma.» (6)

O amigo íntimo de Joseph, que escreve o primeiro conto, confrontado com a morte prematura do compositor, coloca, entre outras, esta questão:

«Porque quis o Céu que, ao longo de toda a sua vida, o combate entre o seu etéreo entusiasmo e a miséria desta terra o tornasse tão infeliz, acabando por violentamente rasgar ao meio a sua dupla essência enquanto espírito e corpo?» (7)

E ainda que este conflito não se resolva, a experiência musical implicada nestes contos apresenta-se como um plano de resolução - um plano de imanência.

No segundo conto de Wackenroder, «Um maravilhoso conto oriental de um santo nu», a música surge inclusivamente como o meio que conduz o «génio desorientado» a libertar-se da «sua capa terrena» e da sua forma humana de santo nu. Este génio libertado voa entre o brilho das estrelas, sob a forma de uma «luminosa figura vaporosa», um corpo voador de braços estendidos e pés dançantes, depois de ouvir uma canção de amor.

«Ao primeiro som da música e do canto, desvanecera-se a rodopiante roda do santo nu. Aqueles eram os primeiros sons que se faziam sentir naquele ermo, e com eles acalmara o anseio desconhecido, dissolvera-se o feitiço; o génio desorientado fora libertado da sua capa terrena. A forma do santo desaparecera, e uma figura etérea, bela como um anjo, entretecida de leves odores esvoaçou para fora da caverna, estendeu os braços esguios e saudosos em direcção ao céu e, seguindo a música em movimentos de dança, soltou-se do solo e elevou-se nas alturas. Erguida pelos sons suaves e intumescentes das cornetas e do canto, a luminosa figura vaporosa pairou cada vez mais alta nos ares - dançou com uma alegria celeste aqui e ali e, por vezes, sobre as brancas nuvens que pairavam no espaço aéreo. Lançando-se com pés dançantes cada vez mais alta no céu, pôs-se finalmente a voar em espirais serpenteantes por entre as estrelas. Nesse momento, todas as estrelas ressoaram e emitiram um som celeste e cintilante pelo espaço fora, até que o génio se perdeu no infinito firmamento.» (8)

Não deixa de ser espantoso que o contributo de Wackenroder descubra, logo à cabeça deste conjunto de contos, a música enquanto plano da transformação evanescente e fortuita do corpo em alma, ou, inversamente, do génio libertado em corpo dançante e voador.

O que é um plano de imanência?
 
O fenómeno a que Gumbrecht se refere com recurso à expressão particularmente feliz de Toni Morrisson - «ser tocado como se a partir de dentro» -, sublinhando que nós não ouvimos apenas com o ouvido externo e interno, mas que «ouvir é uma forma complexa de comportamento que envolve todo o corpo», coincide parcialmente com a experimentação que dá corpo à noção de plano de imanência, em Deleuze e Guattari.

«O átomo anda tão depressa como o pensamento.» - Diz-nos Deleuze, citando a Carta de Epicuro a Heródoto.

«O plano de imanência tem duas faces, como Pensamento e como Natureza, como Physis e como Noûs. É por isso que há sempre muitos movimentos infinitos enredados uns nos outros, dobrados uns nos outros, na medida em que a volta de um deles faz imediatamente começar outro, de tal modo que o plano de imanência não pára de se tecer, qual gigantesco vaivém.» (9)

Ou:

«Precisamente por o plano de imanência ser pré-filosófico, e não operar já com conceitos, ele implica uma espécie de experimentação às cegas, e o seu traçado recorre a meios pouco confessáveis, pouco racionais e razoáveis. São meios da ordem do sonho, de processos patológicos, de experiências esotéricas, da embriaguez ou do excesso. Corre-se para o horizonte, no plano de imanência; regressa-se com os olhos vermelhos, embora sejam apenas os olhos do espírito. (...) É que não pensamos sem nos tornarmos uma outra coisa, qualquer coisa que não pensa, um animal, um vegetal, uma molécula, uma partícula, que regressam ao pensamento e o voltam a lançar.» (10)

Mas é impossível compreender plenamente esta noção sem ler Espinosa e, de igual modo, as duas leituras que Deleuze faz de Espinosa, que infelizmente ainda não estão traduzidas em português: Spinoza, Philosophie Pratique e Spinoza et le Problème de l'Expression.
 
Neste sentido é particularmente feliz a escolha da expressão de Novalis com que C. J. Fischer intitula o prefácio - Acústica da Alma. (11)

E a imagem do verso que abre este livro, «da schufst du ihnen Tempel im Gehör» («ali criaste tu templos no ouvido»), e que remata o primeiro dos Sonetos a Orfeu, de Rainer Maria Rilke, escrito em 1923, esta imagem esculpe por dentro da nossa imaginação a visão de uma impressão de ouvir em silêncio, a sensação de uma música sem som:
 

Uma árvore subiu. Pura ascensão!
Oh, Orfeu canta! Árvore alta no ouvido!
E tudo se calou. Mas mesmo a suspensão
era aceno, mudança, outro sentido

de começar. Do bosque iam saindo
bichos silentes, de covil ou ninho,
e não era já - viu-se - ardil mesquinho
ou susto que os calava: estavam, vindo,

só para ouvir. Mugido, berro, grito
era pequeno em cada peito aflito.
E onde havia abrigo ou choça escura

de acesso pra aceitar em ânsia pura,
postes que o som pudesse sacudir, -
ali criaste tu templos no ouvir. (12)


 

Fiquemos pois, perenes românticos, com esta imagem a um tempo visceral e sublime e que tanto serve a música como a literatura, a do mágico canto do Orpheu no soneto de Rilke que é -

árvore alta no ouvido




(1)   FISCHER, Claudia J., «Acústica Musical» (prefácio) in Contos Musicais (Lisboa: Antígona, 2017), pp. 5-6.
(2) Conceito que Patrick Quillier desenvolve a partir de um termo que aparece num poema de Apollinaire, «Acousmate».
(3) Cf. Nota 1.
(4) Traduzido para português com o título Atmosfera, ambiência, Stimmung. Sobre um potencial oculto da literatura (Rio de Janeiro: PUC, 2014).
(5) WACKENRODER, «A estranha vida musical do compositor Joseph Berglinger» in Contos Musicais, pp. 30-31.
(6) Id. p. 34 (sublinhados meus).
(7) Id. p. 50.
(8) Id. p. 60.
(9) DELEUZE E GUATTARI, «O plano de imanência» in O que é a Filosofia?, trad. de Margarida Barahona e António Guerreiro (Lisboa: Presença, 1992), p. 39.
(10) Id. pp. 41-42.
(11) Contos Musicais, p. 23 (Notas): Fragmento 1122: «A palavra Stimmung remete para correlações musicais da alma. A acústica da alma é ainda um campo obscuro, mas talvez mais importante. Vibrações harmónicas – e desarmónicas.»
(12)  Rainer Maria Rilke, Poemas As Elegias de Duíno e Sonetos a Orfeu, prefácio, selecção e tradução de Paulo Quintela (Porto: O Oiro do Dia, 1983), p. 233.