Hoje, na Gazeta de Poesia inédita

 
 
Alfentanil,
de Orlando I
 

 
aqui 


O novo livro da Maria do Mar

 
 
 
 
 
 
Pela Edições Sem Nome





 

Psicopoeticologia da vida quotidiana

Sonho CCLXVII



Numa aula de ballet, querendo pronunciar uma frase bastante corriqueira, do género:

«Ufa, o meu rabo está duro que nem uma pedra...»

Saiu:

«Ufa, o meu Bach está duro que nem uma pedra...»

Nunca me tinha apercebido que Bach poderia rimar com rabo, até à data.

Nem tinha pensado ainda em rimas imperfeitas invertidas, para além das assonantes e toantes.

Mas a escatologia inesperada é sempre hilariante.

Os erros de juízo podem levar à morte

Sonho CCLXVI


F. de Riverday seguia com um estudante numa carroça puxada por dois cavalos, em galope desenfreado.
 
Os cascos batiam com força na estrada e as madeiras da carroça rangiam.
 
Seguiam pela estrada deserta quando de súbito se lançou diante deles um revolucionário comunista com uma espingarda em riste.
 
Não é coisa que exista actualmente, um revolucionário comunista.
 
Onde está a revolução?
 
Um movimento que abana pela raiz o podre de uma ordem estabelecida e ao mesmo tempo arrasta massas poderá alguma vez ser verdadeiramente revolucionário?
 
A massificação e a revolução não serão profunda e tragicamente incompatíveis?
 
Ao disparar, o pretenso revolucionário atingiu o estudante, mas a F. de Riverday salvou-se atirando-se ao chão.
 
Rastejou pelo fundo da carroça para pedir ajuda.
 
Os segundos marcados pelo batimento do seu coração passavam depressa demais e o que era realmente urgente e não podia esperar, esperava.
 
Eram ambos absolutamente mais revolucionários que o atirador, ainda que com armas muito distintas.
 
Tinham sido alvejados apenas por causa do seu aspecto burguês. 

O momento de fazer alguma coisa

Sonho CCLXV


Estava de pé no meio da sala, ao lado de um piano de cauda, quando as paredes da casa começaram a tremer.
 
- Um sismo!
 
Muito rapidamente, tentei lembrar-me de tudo o que ouvira dizer sobre sismos. Mas parecia-me de repente que havia um conjunto de acções que eram incompatíveis umas com as outras. Deveria abrigar-me debaixo de uma mesa, do piano, de uma ombreira de porta, ou deveria correr para as escadas do prédio, que eram de cimento armado? Devia ter prestado mais atenção a todas essas informações, quando as lera e ouvira. E os gatos? Como poderia pegar nos dois gatos que eram enormes ao mesmo tempo?

Na verdade, não havia tempo para nenhuma destas ponderações.

Como são restritas as nossas possibilidades de acção no tempo que duram três segundos!
 
Vi o chão inclinar-se sob os meus pés e, como nem sequer num dos animais podia pegar, pensei:
 
- Cheguei àquele ponto em que não vale a pena fazer nada. Se o destino quiser que fiquemos intactos debaixo de uma viga qualquer, ficaremos. Se não, rezemos magicamente para que ao menos a morte seja rápida e indolor.
 
Deixei-me ficar totalmente imóvel, entregando-me ao deus do meu entendimento, mas nada aconteceu.
 
A casa não se movia uma palha.
 
- Acabou? - pensava eu.
 
Parecia-me que chegava o momento de fazer alguma coisa. 

Ingmar Bergman

Sonho CCLXIV


Nos Morangos Silvestres existe uma carroça que leva um morto, correndo mais do que pode a sua carcaça, e, em Fanny e Alexander, um moribundo.
 
Essa carroça, estalando contra o chão em todas as juntas, desconjuntando-se na madeira como se fossem nossos os seus ossos, passou a trilhar os meus sonhos com muita frequência. Descia agora numa velocidade alucinante pela estrada em espiral que rodeava uma alta montanha, toda bordejada de perigosas e angustiantes ravinas.
 
Quem conduzia era uma rapariga de cabelos revoltos e olhos fixos, mas, quando me viu, foi tomada de uma espécie de pudor, abrandou a velocidade e deixou-me subir.
 
Fizemos ainda uma grande parte do caminho como se fosse um passeio, tranquilamente, mas em silêncio absoluto. Estávamos longe do sopé da montanha e era tão triste e cinzenta toda a paisagem, que um peso enorme me pendia sobre o peito, tirando-me o ar.
 
Eu suspirava de um modo muito sonoro, por causa dessa falta de ar.
 
Os ramos torcidos e negros das árvores e os penhascos agudos e cinzentos davam-me uma vontade absurda de chorar.
 
Quando olhei para os escuros abismos que rodeavam a estrada, as lágrimas começaram a correr dos meus olhos em corrente e eu soluçava, com o rosto enterrado nas mãos.
 
A rapariga voltou-se para trás e disse-me:
 
«Acho melhores saíres. Continuas a pé.»
 
Fiquei de pé, parada nas estrada, com as lágrimas a caírem dos meus olhos, e vi a carroça disparar numa corrida alucinante, numa velocidade que a sua frágil matéria não podia suportar.
 
Numa curva apertada a carroça saiu da estrada e ainda levantou voo sobre o abismo.
 
Senti-me como se fosse os cavalos, com as patas perdidas no ar, sobrevoando em segundos a própria morte.
 
Não podia compreender o sofrimento dos animais.
 
O sofrimento dos animais era ainda mais insuportável que a imaginação do infinito.
 
Agora tinha uma aguda falta de ar, e pensei que talvez fosse morrer.
 
A rapariga voou pelo ar e ficou sobre o pico agudo de um penhasco durante uns segundos, rodeada de chamas.
 
É possível que nesse momento a rapariga que parecia um ícone num altar, rodeada de pequenas chamas que não chegavam a tocar-lhe nos pés, tivesse mudado de ideias.

Mas o momento não durou mais que um segundo.
 
Foi talvez Deus quem a fulminou com um relâmpago.


O mar e os mortos

Sonho CCLXIII


Via sob as ondas os corpos que subiam à superfície do mar.

Que visão...
 
Afinal era o meu corpo que subia à superfície - era eu que tinha morrido.
 
Se tinha morrido, como era possível que me visse?
 
Não. Talvez visse agora estes corpos a subir à tona do mar por causa da história daquele assassino dinamarquês que deliberou afundar um submarino, construído e projectado por si mesmo ao longo de anos com paixão, para poder matar e torturar a jovem jornalista que decidira entrevistá-lo.
 
Perguntaram os delegados da justiça dinamarquesa, pois se era verdade que a rapariga tivera um acidente, como rezava em sua defesa o assassino, e morrera no interior do submarino, porque tinha o homem serrado o corpo em bocados antes de o sepultar no mar.
 
«O que se faz quando temos um grande problema?» - respondera ele.
 
«Dividimo-lo em partes mais pequenas.»

Extraordinária resposta!...
 
Que estranhos são os seres humanos que habitam a terra!
 
Quantas almas desconhecidas e inimagináveis!
 
Que pensaste, homem? Que sentiste?
 
A rapariga seria, com certeza, extremamente forte.
 
Cada bocado do corpo da rapariga subiu à tona para contar a sua história.
 
O primeiro bocado foi visto por um ciclista. A história não ficou debaixo do mar.
 
Os nossos sonhos não conhecem a morte.
 
Só conhecemos, sem que realmente a conheçamos, a morte dos outros. 

minha casa

 
 
 
 
 





O estilete e a porta

Sonho CCLXII

 
A mãe de uma grande amiga não abria a porta.
 
Com um estilete, eu escrevia uma mensagem na porta.
 
Escrevia com tanta força, que furava a porta.
 
Nunca desconfiara dessa força.
 
Parecia-me que era como o homem-aranha quando ainda não sabia que era o homem-aranha.
 
O homem-aranha quis abrir a torneira e, sem querer, arrancou a torneira.
 
A porta era oca.
 
Por detrás do primeiro painel de madeira, havia outro painel de madeira.
 
Menos mal!...
 
Só queria mandar fazer um outro painel com a maior velocidade possível, e, de preferência, que ninguém reparasse no que tinha feito. 

Hermafrodita

Sonho CCLXI


A Françoise estava maravilhada com a visão de uma mulher de certa idade, inteiramente nua, que fazia a espargata.
 
Parecia habitar o seu corpo com o prazer e a leveza de um felino que habita a savana, ou de um urso que dorme na estepe.
 
Primeiro, fazia a espargata lateral e o seu tronco dobrava-se, ora para um lado, ora para o outro, e, à frente, as duas mãos enlaçavam os pés, com um gesto suave e alheado, entre a sensualidade e o desprendimento.
 
A Françoise meditava em como toda a espécie de crenças e valores nos podem tornar miseráveis e em como somos, de algum modo, tão vulneráveis à sua nefasta influência. Como se um pensamento tóxico e subliminar, que desde cedo nos é inoculado, não só nos contos de fadas e nas histórias infantis, mas em expressões aparentemente inócuas que são proferidas em toda a parte, nos exigisse uma guarda tão constante que ela nos é humanamente possível, pois teria de começar muito cedo, e porque, muito mais tarde, é necessário que essa guarda ou crítica ou demolição, como lhe quiserem chamar, não seja tão radical ao ponto de nos deixar a deambular pelo inferno, o que é também humanamente impossível, pois estamos condenados a atravessar o deserto no momento em que a iniciamos, e quem sabe o que nos tira de lá, sem ser um excesso que nos deixa entre a vida e a morte?
 
A Françoise estava petrificada de fascínio e admiração. Naqueles movimentos lentos, elásticos e fluídos, como fruía aquela mulher o espaço e as dobragens do seu corpo!...
 
Talvez o mais maravilhoso fosse a total ausência de julgamento que se encontrava nela, a fruição absoluta. O corpo parecia ser, não só o avesso da alma, que estava ali toda aninhada e expandida, sem nenhum desdobramento, mas a própria alma em acção e expansão, como um universo ou um bocado de infinito. Naquele corpo o que contava não era a sua lisura nem a sua juventude, mas a potência. E a beleza ali não passava por um ideal de perfeição, mas por um gozo e por uma espécie totalmente nova de dignidade - uma dignidade animal, que era também humana. Aquela mulher não estava a ser vista, estava num outro plano. A sua nudez nem sequer era uma nudez. A Françoise estava ali por acidente ou graça, como num sonho que nos permite vislumbrar mais longe que a natureza. E talvez tudo se passasse entre si e Deus, sem nada no meio que não fosse o ar que respirava e que a incendiava por dentro.
 
A Françoise observava esta mulher de idade com uma sofreguidão de se inspirar, com um desejo voraz de nunca esquecer o que desejaria alcançar, quando reparou, no momento em que a mulher passou à espargata frontal, que ela não tinha apenas um sexo, mas dois.
 
- Ah! Agora tudo se explica!... - pensou a Françoise. - Até a ausência de julgamento!...
 
A mulher era um desses gigantes primordiais que são redondos nos textos de Platão e tão poderosos como os deuses, porque entre si e a natureza existia um circuito fechado do amor que os tornava imunes a todas as mágoas e a todas as ilusões.
 
Saudosa humanidade!

Sobre o valor intrínseco das nossas percepções mais imediatas

Sonho CCLX


Não havia um segundo a perder. A Françoise acabava de se cruzar por acaso com o grande amor da sua vida, esse a quem o destino ou a má sorte nunca lhe permitira tocar.

Entraram por coincidência os dois sozinhos num elevador. Tinham dito apenas «olá», mas a Françoise pensou que não podia passar nem mais um segundo, em toda a sua vida, em que ela não fizesse o que desejava fazer. Caíram nos braços um do outro, num longo beijo como o de Klimt.

Porém, ao contrário de todas as suas previsões, que desagradável surpresa teve a Françoise... Os corpos não se conjugavam. Ao contrário do que esperava, o cheiro da sua pele não a embriagava como um álcool ou como uma droga. Como pudera o seu corpo enganar-se?... O corpo nunca se enganava nesta espécie de previsões... Onde estava aquele calor entontecedor, aquela vertigem? Onde estava aquela velocidade infinita que a deixava com a cabeça às voltas e quase enjoada de um tão embriagante rodopio? Qualquer coisa corria incrivelmente mal... A língua dele parecia uma daquelas rochas moles do fundo do mar onde poisamos os pés e a que estão agarradas muitas algas e outras coisas assustadoras, por não sabermos o que são. A Françoise questionava-se como é que a sua intuição falhara tão rotundamente. Como é que o seu corpo pudera enganar-se de um modo tão absoluto e radical? Alguma vez o corpo poderia falhar desse modo na realidade?... Na verdade, estaria ela na realidade, ou estaria, afinal, num outro plano?... Nesse momento, a Françoise colocou a hipótese de estar a sonhar. Então isto seria uma falha de sonho, como se um sonho lhe quisesse dar uma lição ou pretendesse fazer uma espécie de demonstração... mas... oh!... que tristeza!... Não deveria estar acordada. Certamente estaria a dormir. Não estaria a viver de olhos abertos e sentidos despertos, mas a viver adormecida e a sonhar.

A Françoise não queria ser antipática. Ele parecia entusiasmado e ela não sabia o que fazer. Mal saíram do elevador começou a andar muito depressa, afastando-se, em passo estugado. De costas, a Françoise meteu as mãos dentro da boca e percebeu que afinal também a si nasciam algas da língua.

A Françoise precisava de cuspir, mas ele disse-lhe:

- Não cuspas em cima dos mortos.

Tinham chegado a um sítio onde havia muitos mortos que estavam esticados no chão, em fila, com o seu corpo a descoberto, por tapar.

Jamais cuspiria em cima de um morto.

Existe um horror nos vivos que transforma o corpo dos mortos numa coisa sagrada.

A Françoise cuspiu no chão, ao lado de um morto. O certo era que nunca jamais o seu corpo lhe falhara desta maneira. Estava perplexa e desolada. Desejaria algures bem num fundo secreto de si mesma que aquele estranho amor estivesse morto?

Pelo contrário. A única explicação que encontrava é que o sonho elaborara um estranho e complicado raciocínio por acontecimentos e acções, à laia de consolação, para que aquilo de que a vida a privara afinal não lhe doesse assim tanto. 

Sobre a inutilidade do arrependimento

Sonho CCLVIX


Estava prestes a entrar pela faustosa porta de um Hotel Palácio.
 
Do lado esquerdo da porta, perfilava-se, muito rígido, um porteiro com chapéu de coco e os cordões dourados que lhe saíam dos bolsos do colete.
 
Do lado direito, havia uma coisa que era uma espécie de respiradouro de automóvel gigante, que talvez servisse para fazer circular o ar.
 
Eu recuava bastante e, depois de uma bela corrida e de um salto mortal, lançava-me no ar e batia contra esse respiradouro de um modo realmente espectacular.

Em microssegundos, ainda com o corpo suspenso no ar, todas as minhas roupas pegavam fogo e se desfaziam em cinzas.

Não. Não quisera fazer nada daquilo, não quisera chocar contra o respiradouro e muito menos previra que as minhas roupas se incendiassem.
 
E não parecia que o porteiro se tivesse mexido, ou sequer virado a cabeça.
 
Caiam sobre as minhas costas pequenas bolas de fogo que revolteavam no ar como os nós amarelos dos raios das estrelas de Van Gogh, mas não me queimavam.
 
De que serviria arrepender-me?
 
Não fora uma bela corrida? Não fora um belo salto mortal?
 
De que me serviria agora essa culpa improdutiva que nascia de um falhanço tão espalhafatoso, mas que não dava para emendar coisa nenhuma?
 
Fora porventura um excesso de energia, um péssimo cálculo e uma forma particular de inocência a que amiúde chamam ingenuidade.
Portanto, lamentações para quê?
 
Belo quadro esse, cheio de fogo e estrelas dançantes.

A impotência perante os outros

Sonho CCLVIII

Estava sentado numa mesa em frente de um pai. Mais adiante, mesmo à frente de uma janela, estava a filha de doze anos, uma criança que nos colocava, pelo seu temperamento e pela sua inteligência, enormes desafios.

Olhava, mas não podia acreditar que os movimentos que a criança fazia fossem aqueles que a levariam a saltar da janela.

O pai estava de costas, mais perto da janela e mais perto da criança do que eu, pois entre mim e a criança havia aquela mesa enorme e o pai.

Desatei aos gritos e pedi ao pai que agarrasse na filha, mas ele não se voltou.

Há realidades, entre os que se amam, que exigem forças descomunais para poderem ser vistas.

Corri como um louco, voando por cima da mesa, mas não cheguei a tempo de impedir a criança de saltar.

Forcei-me a olhar para baixo.

Miraculosamente, a criança mostrava que era como um gato. Caíra de pé. Mas vi, pela terrível expressão do seu olhar, que iria tentar lançar-se de uma janela mais alta.

Um estranho no meio do caos, um refém involuntário da angústia, como um lúcido entre cegos, assim fica quem é apanhado no meio de uma loucura comunitária por acaso, sem aviso prévio. 



Quando a urgência é grande, os sentimentos escondem-se em tocas

Sonho CCLVII


A única forma de escapar dos meus inimigos tinha sido saltar pela janela do sétimo andar e correr pelo telhado.
 
Vivamente me espantava, enquanto corria, com a minha total ausência de medo.
 
O telhado desenhava um grande plataforma inclinada e hexagonal em torno de uma espécie de torre, também ela hexagonal.
 
Cada vez que passava por um dos vértices desse hexágono, olhava para trás para ver se alguém me seguia e corria o mais que podia.
 
O meu fôlego não era infinito. O meu peito doía como se fosse estalar, mas eu não parava nem um segundo.
 
De súbito, percebi que aqueles não eram os meus inimigos, mas uma equipa de resgate que nos vinha salvar como salvaram também os doze rapazes presos numa gruta na Tailândia.
 
Mil pessoas empenhadas nas operações para salvar doze rapazes é qualquer coisa que mostra o melhor da humanidade.
 
Tomado de exaustão, deixava-me cair diante dos meus salvadores, sobre o telhado.
 
Agora é que eu tinha muito medo, um medo que trepava por mim acima e me paralisava como um colete de forças, tinha um medo terrível das alturas e da inclinação daquele telhado. Agora é que um tal cansaço me invadia que todas as forças me abandonavam, e as lágrimas caíam-me dos olhos.
 
Estranho.
 
É estranho como até para chorar precisamos de um pouco de paz. 

Sobre uma praia de areias vermelhas

Sonho CCLVI


Naqueles tempos era vulgar que as pessoas viajassem todos os anos como forma de lazer e entretenimento.
 
A isso chamava-se turismo. Algumas pessoas pretendiam, com essas viagens, realizar um regresso à natureza e, ao mesmo tempo, ver coisas estranhas e maravilhosas.
 
A Françoise M., contra sua vontade, tinha sido apanhada numa dessas viagens e maldizia a sua sorte.
 
Tudo o que observava era que o regresso à natureza se fazia com todos os recursos da vida civilizada e que o hotel em que pernoitavam, à beira das praias e dunas selvagens, era igual a tantos hotéis em toda a parte, e por isso pouca diferença fazia que estivessem ou não a milhares de kilómetros das suas casas.
 
A Françoise M. sentia-se mais capaz de olhar as paisagens como um turista a dez kilómetros da sua casa, à beira do mar, do que ali naquele lugar mudo e distante em que sofria de uma angústia difusa e implacável por estar longe da sua cama, dos seus livros e do seu piano.
 
Nem todos são talhados para atravessar grandes distâncias e com isso ficarem felizes.
 
Ao lado da sua casa nunca um céu se repetia duas vezes, nem o mar era duas vezes o mesmo. Nesses arredores sempre infinitamente variados é que a Françoise se sentia livre e em paz para encontrar muitas coisas novas e maravilhosas todos os dias e para se surpreender com os seus pensamentos e com as suas perguntas, enquanto ali só conseguia pensar em todas aqueles gastos inúteis e em tanto dinheiro desbaratado, depois de ganho com tanta disciplina e sacrifício e, ainda que assim não fosse, que fazia falta a tanta pobreza no mundo.
 
A Françoise M. não percebia como fora apanhada em semelhante armadilha.
 
A praia tinha areias vermelhas e era tão inclinada que as ondas, quando subiam, arrastavam tudo para baixo como se fosse para um abismo sem fundo.
 
«Ali é que não me apanham.» - Pensava a Françoise, sentindo-se profundamente infeliz. - «Mas como é que eu vim aqui parar?»
 
Tinha tanto que fazer e com que ocupar o tempo sempre escasso e andava ali de um lado para o outro a olhar para as coisas como se todas as coisas não fossem sempre revelações em potência. Como se a revelação fosse intrínseca só às coisas e não à nossa postura diante das coisas!
 
Entre o grupo em que seguiam havia dois homens, um pouco mais velhos, que lhe faziam a corte.
 
A Françoise observava-os criteriosamente, mas não se sentia atraída por nenhum.
 
«Que estranha que é a atracção entre os humanos.» - Pensava a Françoise. - «Irracional a um ponto máximo, ou de uma lógica submersa e arrevesada que só compreendemos muitas décadas depois, ou que então nunca compreendemos.»
 
Um deles, sensual e com a figura atarracada, achava-se tão desejável como uma bandeja de frutas exóticas e maduras e nada de alternativo ou de diferente lhe parecia ocorrer.
 
O outro, curiosamente, tinha um fair play que não deixava a Françoise totalmente indiferente, apesar dos seus pensamentos em contrário. Fazia-lhe lembrar a pantera cor-de-rosa e, ao mesmo tempo, um tipo de ironista como o gato Garfield. Faíscas de humor puro saltavam dos seus olhos, compondo uma espécie de sub-riso que se ateava por todo o lado, a propósito de quase tudo e também de si mesmo.
 
Pois era magríssimo (ao contrário do gato Garfield), e usava sempre um kilt por cima das calças - coisa nunca vista! - cruzando as pernas com uma elegância mais do que feminina. 
 
 

Fragmento 159

 
A preguiça tem muitas formas e a lentidão é uma delas.

 

Sobre a importância de andar ao contrário do trânsito

Sonho CCLIV


A Françoise estava de férias na casa de praia da sua melhor amiga, que acabara de comprar legumes frescos na praça.
 
A Françoise pegou nas cenouras e observou que estavam enroladas em forma de crepes e que tinham, como os alhos franceses, muita terra lá dentro.
 
Nunca vira nada assim.
 
Que faria com aqueles legumes?
 
Ocorreu-lhe que poderia gratiná-los no forno com queijo e molho branco e que ficariam certamente sublimes e deliciosos, assim enrolados em forma de crepe.
 
Conforme a Françoise lavava as cenouras, porém, saltavam moedas de euro.
 
Tão pouco que tinham dado por aqueles legumes, comparado com o que tinham lá dentro.
 
A Françoise somou nove euros.
 
Entretanto, a mãe da sua amiga dizia:
 
- Para virem para cá é melhor virem ao contrário do trânsito.
 
É sempre melhor andar ao contrário do trânsito e, de preferência, ao avesso de modas e contentar-se com o essencial.
 
Quem madruga sempre encontra as estradas vazias e o canto dos pássaros.
 
E nas praias apenas o rasto das gaivotas.
 
Nos sinais de trânsito, como nas flores - Deus. 

Sobre a necessidade de inventar uma nova relação com a consciência

Sonho CCLIII


A Maria do Mar era empregada doméstica numa grande casa onde havia muitas coisas para fazer.
 
Todos os dias de manhã a Maria do Mar se levantava para trabalhar e ganhar o seu sustento, durante muitas horas seguidas.
 
Quando chegava, cruzava-se com a patroa que também saia para o seu trabalho.
 
A patroa não era simpática. Vestia-se de um modo extremamente elegante e conservador, com peças caras e bem cortadas, quase sempre assinadas.
 
Pelo contrário, a Maria do Mar levava sempre um pormenor de indumentária extravagante.
 
A patroa detinha o olhar com uma expressão de tal modo crítica e analítica nesses pormenores da indumentária da Maria do Mar, que era impossível não depreender o que estaria a pensar.
 
Ou era um lenço, ou um chapéu, ou uns sapatos, ou um vestido de veludo.
 
Era um modo de a Maria do Mar tentar não pertencer a lado nenhum.
 
Dentro de casa, a Maria do Mar tinha por hábito fazer planos para se embebedar.
 
Desta vez, colocara mais de um litro de gin puro dentro de um jarro de água, para disfarçar, mas, ao invés do que tinha previsto, a casa estava cheia de gente.
 
Era a avó, as crianças, os amigos das crianças, o cão e o gato e com certeza ainda mais gente.
 
Todos estavam em casa, andando de um lado para o outro.
 
A avó não percebia porque é que a Maria do Mar limpava as casas de banho com um jarro de água poisado no chão.
 
A Maria do Mar estava numa grande angústia, que não confessava a ninguém.
 
À vinda cruzara-se com um animal abandonado, magro e com o pelo todo sujo, que passara de fugida.
 
Esse animal deixara-lhe dentro do peito tudo aquilo que mais a aterrorizava.
 
A morte, a invalidez, a penúria, a dor, o absurdo, a ausência de Deus e a carne.
 
A Maria do Mar não sabia como viver.
 
Como é que se pode viver com a lembrança de tudo o que se passa no mundo, com o sofrimento dos animais e dos homens, mesmo quando nós não sofremos?

Tudo isso era demasiado para o que conseguia suportar.

Era uma sensação avassaladora, como se fosse submergida por uma avalanche.

Quase não conseguia respirar.
 
Tinha de limpar toda a casa muito bem, muitíssimo bem.
 
Isso deixá-la-ia, pelo menos, aliviada.
 
Tinha de encher o corpo todo de gin, para conseguir respirar um pouco.
 
Pois, sem ser o álcool e o alívio do dever cumprido, que outros modos existiriam, inéditos, para se relacionar com a consciência? 

Nos sonhos a actividade do cálculo não parece tão profícua como na vigília

Sonho CCLII


A Maria do Mar guiava em alta velocidade enquanto falava com a mãe no auricular.
 
A autoestrada, porém, ao invés de continuar após uma determinada curva, como seria suposto, interrompia-se num abismo.
 
Era um abismo com milhares de metros de altura.

O seu carro voava sobre um imenso vale, em queda livre.
 
A Maria do Mar considerou que não tinha tempo para grandes explicações, mesmo estando ao telefone e ainda com os segundos do tempo restante de uma queda tão longa.
 
Calculou que, de uma queda de tantos milhares de metros, seria impossível sair viva, e disse:
 
- Mãe, morri. Mas fica sabendo que te amo.
 
Seguiu-se um intervalo de total inconsciência, pois a Maria do Mar não sentiu o carro a bater, nem qualquer espécie de dor, mas, passado algum tempo, deu por si, incólume, a andar de um lado para o outro num sítio que nada tinha a ver com o abismo onde caíra.

A Maria do Mar encontrou o seu irmão que chorava, dizendo:

- Nunca imaginei que fosse tão difícil ser honesto consigo mesmo.
 
- Ah!... - disse-lhe a mãe, quando deu de caras consigo. - Eu sabia que estavas a exagerar!...

- É uma prova para todos os minutos das nossas vidas. - disse a Maria do Mar ao seu irmão.
 
A Maria do Mar ficou em silêncio, meditando na dificuldade do esforço de ser exacto consigo mesmo, por um lado, e, por outro, no dever e na necessidade de dizer a verdade quando certas explicações não merecem nem podem ser dadas.

A casa e o mundo

Sonho CCLI


Era preciso acolher as pessoas, porque muitas pessoas estavam sem casa.
 
A guerra tinha tirado a casa a muitas pessoas.
 
Observava que a minha casa tinha umas portas que nunca abrira.
 
Havia afinal muitos mais quartos na minha casa.
 
Nesses quartos havia outras portas que davam para outros quartos e nos outros quartos por sua vez havia mais portas que davam para outros quartos.
 
Nunca mais acabava!
 
Podia acolher a Dona Maria José e o Senhor Virgílio, que estavam reformados mas que ainda cuidavam da limpeza do prédio, a Dona Maria Idalina, médica, o Senhor João, que era porteiro no colégio, a Adélia, a Rosarinho, funcionárias de limpeza, a Esmeralda que cuidava dos coelhitos no pátio para as crianças e todos os que precisassem de casa.
 
Havia espaço para toda a gente!
 
Esses quartos estavam cheios de pó, e cada um teria de os limpar.
 
Como é que, sozinho, poderia limpar tantos quartos?
 
Maravilhado, descobria que uma das portas dava para um grande jardim, um jardim no meio de um vale à beira de um lago e ao longe via-se uma floresta e o pico gelado de uma montanha nevada.
 
«Meu Deus, tudo isto dentro da minha casa, e eu não sabia!...»
 
Havia muitas outras portas fechadas que não queria abrir, pelo menos imediatamente.
 
Ter essas portas por abrir aumentava a minha vontade de existir, por um lado, e uma visão empolgante e aventurosa do futuro, por outro. 

O amor e a terra

Sonho CCL


No alto de um anfiteatro grego arruinado, bem lá no topo da escadaria do auditório, a Françoise observava de longe a figura do amor da sua vida.
 
Entre a popularidade e a venalidade sempre lhe parecera existir uma fronteira difusa.
 
Por isso, observava com desconfiança como ele era aplaudido pela multidão, dividida entre a desilusão e a curiosidade.
 
Porém, levantando-se e caminhando sobre o palco ele esticou o braço, cortando o ar, e exclamou:
 
- Basta! Isto não passa de uma fantochada!
 
Nesse momeno Françoise ficou muito feliz ao apercerber-se da longevidade do seu amor, ainda que nada de prático fizesse com isso.
 
Sentou-se no chão com as pernas à sapo, como quando era pequena, e, dobrando-se, começou a escrever sobre o chão no seu caderno de notas.
 
O chão era ao mesmo tempo a sua cadeira e a sua mesa.
 
Viera a descobrir muito mais tarde que essa posição era usada nos exercícios de flexibilidade dos bailarinos para conseguir aperfeiçoar a posição en dehors, e não apenas pelas crianças que não sabem sentar-se como os adultos para brincar.
 
Uma posição de animal sobre a terra, abraçando o chão.
 
Enquanto escrevia, apercebeu-se de uma sombra que se estendia sobre as suas mãos e o seu caderno, mas decidiu ignorá-la, pensando:
 
- É alguém que passa.
 
Porém, a sombra não saía dali.
 
A Françoise olhou para cima e viu que era o amor da sua vida.
 
Ele estendeu-lhe a mão e ela, segurando a sua mão, levantou-se alegremente.
 
Que iriam fazer?
 
Beber um café?
 
Ver um filme?
 
Iriam directos para a cama?
 
Qualquer programa seria excelente. 

A capelinha sem imagens

Sonho CCXLIX


Era longo e atribulado o caminho que levava à minha capelinha sem imagens.
 
Sofria para caminhar nos corredores de um grande centro comercial, com todas aquelas montras coloridas e brilhantes que procuravam captar o meu desejo com coisas inúteis, que em breve se transformariam em lixo.
 
Olhava para os preços obscenos com que se pretendia vender uma mala de marca ou um par de sapatos e sofria com a estupidez humana, com a inércia do pensamento humano.
 
 
Sofria com o mau gosto de tudo, com o excesso de brilho, com as plantas de plástico, com a falta de sol e de vento.

 
Sofria com as multidões em que as pessoas se esforçavam tanto por parecer iguais umas às outras, por não inventar um novo penteado, nem sequer uma nova combinação de cores.
 
 
Por fim, sofria com  vertigens terríveis por ter de subir umas meras escadas, uma coisa que todos faziam com facilidade, mas que para mim era uma tortura.
 
 
Subia de gatas e havia quem olhasse com uma expressão de piedade.
 
 
«Em breve estarei na minha capelinha sem imagens.» - pensava, para me consolar. - «E até lá terei coragem para me arrastar até por cima de um cadáver de crocodilo.»
 
 
Quando cheguei à minha capelinha sem imagens, pude, enfim, repousar.
 
 
Sentei-me com uma grande alegria, naquela doce solidão.
 
 
Ninguém se interessava por aquela capelinha, onde se podia estar em silêncio.
 
 
As grandes pedras do chão estavam gastas de serem pisadas há mais de cem anos.
 
 
Era uma capelinha redonda, muito simples, com as paredes de um ocre muito velho, um pequeno altar de pedra sem ornamentos e os bancos corridos.
 
 
Como se respirava ali!
 
 
Em cruz tinham sido colocadas quatro grandes telas pintadas a óleo, possivelmente com cenas da vida de Jesus, como é hábito nas capelinhas, mas aquelas telas, com a passagem do tempo, tinham ficado completamente negras.
 
 
Era essa negridão que me consolava.
 
 
Ali podia celebrar sem ser interrompida o encontro com um Deus que não tinha figura, mas apenas presença, e que não tinha leis, mas apenas amor.
 
 
Deixei-me estar ali numa grande paz, como se a vida fosse um ninho.
 

A pequena terra no meio do caos

Sonho CCXLVIII

 
Maria do Mar falava sobre Kant, sentada numa mesa onde estava também o seu mestre.
 
Havia uma pequena frase que lhe chamara a atenção e que Maria do Mar considerava impossível ter sido escrita por Kant.
 
«Escrevi esse livro, a Crítica da Razão Pura, durante dez anos, com grande perseverança e disciplina interior, mas publiquei-o num ápice, e era um livro, na época, muito pertinaz.»
 
Pois não havia forma de conjugar este grãozinho de fanfarronice com a sobriedade e o esforço contínuo, imenso, titânico, de Kant para pensar rigorosamente, o mesmo esforço que levara Kant, depois de escrever O Único Argumento Possível para a Demonstração da Existência de Deus, a escrever a Crítica da Razão Pura, e, depois de escrever a Crítica da Razão Pura, a escrever o Opus Postumum, essas notas para um futuro livro que estiveram enterradas durante quase duzentos anos porque nenhum dos seus contemporâneos as poderia compreender.
 
Maria do Mar comentava a frase como quem conta um episódio anedótico, entre a suspeição e o divertimento, o que deixou o seu mestre muito zangado.
 
- Vou-me embora. - disse ele. - Você não ia falar sobre o modo como Kant leu Espinosa?
 
- Ah!... - exclamou a Maria do Mar. - Como é possível que uma inteligência tão brilhante falhe de um modo tão confrangedor na leitura de um par? Não é espantoso?
 
- Nada tão difícil como ler ou compreender uma pessoa que está fora de nós.
 
Nesse apêndice à Crítica da Faculdade do Juízo Teleológica, no parágrafo 85, existe um filão que nos daria para muitas horas de escrita e pensamento.
 
- Quem tem o carro mal estacionado?
 
Perguntou a funcionária que abriu a porta de repente.
 
- Está ali a polícia.
 
A Maria do Mar saiu a voar para ir estacionar de novo o carro, porque, com a escassez dramática de lugares, inventá-los transformava-se numa obrigação.
 
Porém, quando a Maria do Mar entrou no quarteirão onde tinha deixado o carro, observou que um dos prédios tinha implodido e que nem sequer os escombros estavam à vista.
 
Como poderia ter tudo acontecido tão depressa?
 
Demoliram um prédio e limparam tudo e nós aqui ao lado nem ouvimos nada?
 
A Maria do Mar estava tão curiosa em ver tudo aquilo que o vazio do prédio deixara a descoberto, nomeadamente as traseiras das outras construções, que nem se lembrou mais de entrar no carro.
 
Nesse momento porém começou a observar que nenhuma das coisas estava no seu devido lugar.
 
Em vez das construções paralelepipédicas que abundam nas cidades, o que havia agora por ali era aquele tipo de construção de castelo medieval em que os bocados se vão acrescentando à medida da fantasia e da necessidade dos seus proprietários e habitantes, sem plano prévio.
 
Aqui e ali despontava uma torre, uma amurada, uma balaustrada, um conjunto de arcos, uma carantonha. Havia casinhas que faziam lembrar as dos postais dos Alpes, com flores vermelhas nas janelas, e por todo o lado um aspecto fantasioso e labiríntico expressava o gosto e o tempo livre que as pessoas tinham para estar nas suas casas e cuidar das suas coisas.
 
Que espantoso!
 
A Maria do Mar esqueceu-se do carro e voltou a correr para a sala, para contar tudo o que tinha visto.
 
Todos saíram de olhos arregalados, mas, de um modo extraordinário, ninguém viu nada.
 
- Está tudo na mesma. - disse o mestre. - Sempre foi assim.
 
- Havia ali uma casa funerária, na esquina, e uma marisqueira, um restaurante chinês com lanternas vermelhas na entrada, um pequeno café com esplanada, que pertencia a um ucraniano com um carro azul eléctrico, um ginásio de onde saíam às vezes pequenos grupos a correr e a transpirar, com o personal trainer, e agora não está lá nada.
 
Todos olhavam para a Maria do Mar, aflitos, como se ela tivesse enlouquecido, enquanto a Maria do Mar pensava de si para si:
 
«Lembro-me bem da funerária, do restaurante chinês, do café, do ucraniano, do carro azul eléctrico e do ginásio.»
 
De repente, a bibliotecária parou, levou a mão à cabeça e, com uma expressão de sofrimento, disse:
 
- Ah... Eu lembro-me... Mas não de tudo... Lembro-me da funerária e do restaurante chinês... Ah...
 
- Não houve o caso daquele mágico, no meio da selva, o curandeiro da tribo, que foi surripiado numa corrente de ar e voltou a aterrar todo nu, passados um dia e uma noite? Tarkovsky não filmou a menina paralítica que fazia andar os copos em cima da mesa, enquanto a passagem dos comboios, por sua vez, fazia tremer toda a casa? E não é verdade que a articulação entre a extensão, como diz Espinosa (o espaço-tempo, como diríamos agora nós os modernos), e o pensamento, está ainda por pensar? Que articulação será real e possível, afinal, entre Deus e a matéria?
 
- Mas aqui está tudo na mesma. Não houve qualquer mudança. Nenhuma coisa interferiu na outra. E aliás, é muito bom que assim seja. O seu discurso aproxima-se perigosamente do caos. E o caos encontra-se à beira da psicose, como sabe. É preciso pensar mas não ao ponto em que tudo se desagrega.- disse o mestre.
 
- Mas claro... claro que é possível que tudo mude com grande frequência, muito maior até do que aquela que agora supomos... - continuou a bibliotecária, com uma expressão fúnebre. - É possível até que não nos lembremos de nada e que, em todas as mudanças, nos convençamos de que o mundo sempre foi assim. Porque não? Por uma coincidência ou por um acaso, parece que agora nós duas interrompemos esta espécie de amnésia funcional, mas que sentido poderá ter tudo isto? Que fazer com um mundo assim?
 
Todos iam dormir ali, pois estavam ali acampados, como se fossem refugiados de guerra, e a Maria do Mar disse:
 
- Está na hora de dormir e, já que temos de dormir, é melhor tratarmos das coisas necessárias. Já limpei o pó dos quartos e das salas e agora é preciso que alguém varra e lave o chão.

Pois não iam dormir no meio do pó e da sujidade.

Sobrava-lhes, dessa tremenda dificuldade de pensar, uma pequena terra no meio do caos.



Brock Drenth, Resting Patterns (2013)


 
 

Couperin - Les Barricades Mystérieuses - 1ª versão

 
 
 

 
som gravado com telemóvel

#1 Auto-retrato com duplo

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)








#2 Auto-retrato com infinito

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)






#4 Auto-retrato com luz involuntária (2)

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)








#3 Auto-retrato com luz involuntária (1)

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)







A vida e a morte não são compreensíveis

Sonho CCXLVII


Tinha de enterrar um homem que era um desconhecido.
 
Não sei porque me fora incumbida essa missão, mas tinha de a cumprir urgentemente.

Logo nesse preciso momento é que surgira a oportunidade de reencontrar o amor da minha vida, mas tinha de resolver este assunto primeiro.

Quem é que pode deixar um morto por enterrar?
 
O enterro dos mortos era um serviço público.
 
Liguei para uma casa mortuária, marquei o enterro, mas não consegui transporte, pois esse era um serviço privado.
 
Sendo assim, meti o caixão dentro do carro e dirigi-me para o cemitério, para acertar os pormenores.
 
Não sei como consegui fazer tudo isto sozinho, quando em geral são necessários quatro homens para transportar um caixão.
 
Cheguei ao guichet e, apresentando o meu caso, a senhora disse-me, com uma expressão escandalizada:
 
- O quê? Você trouxe o morto? Você não podia fazer nada disso!
 
Timidamente, respondi:
 
- É que o enterro já está marcado...
 
- Ah!... Nada disso!... - bramia a nobre senhora. - Você não sabe que o primeiro enterro é sempre falso?... É só o caixão que vem!... Não vem o morto lá dentro!...
 
- Mas como é que eu podia saber uma coisa dessas?
 
- Meu Deus!... Mas como é que você não sabe?... Não temos terra para tantos mortos!... Eles ficam em lista de espera, dentro dos frigoríficos, ou onde for possível que fiquem... O enterro é só um serviço que prestamos às famílias!

Desesperado, com o morto dentro do carro, eu sentava-me num banco a chorar, com esperança que alguém se compadecesse de mim e me ajudasse a resolver aquele imbróglio em que me metera.

Naquele contexto, porém, todos respeitavam a minha dor. Ninguém me perguntava porque chorava.

Estava preocupado, pois tinha deixado o carro aberto, mas quem iria roubar um caixão e um morto?

Certamente ninguém.

De resto, iria falhar o encontro com o amor da minha vida, queria lá saber do que se seguia.

Em desespero de causa, liguei para a minha mãe e perguntei:

- Então os primeiros enterros são sempre falsos? Os segundos é que são a sério?

- Pois claro. - exclamou ela do outro lado - Em que alhada é que te foste meter? Não te lembras que foi assim que enterrámos o teu avô e a tua avó? Que foi assim que enterrámos toda a gente?

- Mas então o caixão ia vazio? Não ia ninguém lá dentro?

- Pois claro que não. Então não sabes que não há terra para tantos mortos?

- E porque é que não me chamaram para o segundo enterro?

- Achámos-te demasiado abatido no primeiro, não íamos chamar-te para o segundo.

Eu pensava afinal na vacuidade de toda a minha meditação enquanto seguíamos em cortejo atrás do caixão que, sabia agora, estava vazio, enquanto seguíamos a pé cemitério fora e enquanto lançavam as primeiras pazadas de terra.

Pensava naquele som da terra a cair com um baque seco e vazio, tão imensamente vazio, pensava no ritmo das pás no meio do silêncio e de alguns soluços mal contidos, como os acordes finais de uma peça sem sentido, em que todo o combate, fosse com uma doença cega, fosse com a vida no seu frágil dia-a-dia, sempre à beira do abismo, fosse com o mundo que é tantas vezes de uma crueldade abusiva e de uma predação impensável, em que todo o combate parece acabar demasiado de repente e sem qualquer aviso prévio, e afinal todo esse equilíbrio precário de nos pormos de pé e nos cuidarmos, de inventarmos para as nossas vidas, ou um sentido, ou um desejo, ou uma missão, todo esse combate para extrair do dia um grão de liberdade, uma oração, uma linha de fuga, tudo isso se interrompia num único segundo, sem qualquer intervenção da nossa vontade.

«Se os caixões andam vazios, por onde andam os mortos?»

Era no que pensava, naquele momento.

Levantei-me por causa do carro, que tinha deixado aberto, e deparei-me com o carro vazio.

Alguém levara o meu caixão por engano.

Risquei o carro todo para tirá-lo daquele lugar e poder verificar se aquilo era mesmo verdade.

Queria lá saber da pintura do carro!...

Sentei-me na berma da estrada, avassalado.

Nem enterro, nem caixão, nem morto.

O desdobramento, isto é, a separação de si para si que opera o mecanismo da nossa consciência, quando se debruça sobre si, não constitui apenas uma tragédia.

Tinha a certeza de que, se continuasse a chorar, a cabeça me estalaria em mil bocados.

O desdobramento também pode ser uma estratégia de sobrevivência, como a do faquir que se desprende da dor ao desdobrar-se nela, ao contemplá-la como a uma estrela distante, e a nós também é útil quando nos ardem tanto as plantas dos pés que já não podemos mais erguer-nos sobre a terra que pisamos.

Tentava lembrar-me do título de um belo filme de Hitchcock que era sobre as aventuras e desventuras com um morto num caixão, ou fora de um caixão - seria The Trouble with Harry?

Por outro lado, se era certo que eu nunca seria o amor do amor da minha vida, também era certo que esta ideia, ou ideal, sobre «o amor das nossas vidas», bem podia ser enquadrada dentro daquelas que Kant define como resultados da patologia da nossa capacidade especulativa.

«Que belo enredo!...» - pensava eu, sentado no passeio.

Dava talvez para escrever um belo conto à maneira de Kafka, com um leve travo a Hitchcock.

O resto iria resolver-se por si.

Não é verdade que, no dia em que deixamos de restaurar as casas, as plantas e os ramos começam, mais tarde ou mais cedo, a brotar das paredes?

É que, pontualmente, estar nas nossas vidas como espectadores ou autores de enredos não deixa de ser uma bela estratégia, porventura tortuosa, mas eficaz, para suportar a realidade mais alucinante. 

Sobre a relação das percepções com o movimento da nossa imaginação

Sonho CCXLVI


Numa reunião, havia um homem que se apresentava do seguinte modo:
 
- R.V.
 
Interessadíssimo, eu observava-o minuciosamente, procurando não dar nas vistas.
 
O cabelo cinzento e um pouco longo, mas penteado com elegância e desprendimento, contribuía para uma aparência estrangeirada, levemente aristocrática.
 
Os traços do rosto, muito finos e muito puros, apesar da idade, pareciam denunciar uma certa austeridade, um certo ascetismo.
 
Havia qualquer coisa no seu rosto de incrivelmente intacto, uma essência que não se desagregava.
 
Ao contrário de certas pessoas que, com a idade, parecem desagregar-se debaixo da pele, ou como os demasiado gulosos ou lascivos, a quem a carne, como nos quadros de Bacon, parece sofrer uma tumefacção imperceptível e progressiva ao longo do tempo, este homem era magro e seco, um pouco altivo, elegante, discreto, parecia traçado a cinzel.
 
Seria um homem realmente belo, não fosse um incrível estrabismo que tornava impossível definir para que ponto da sala estaria a olhar, e, mais ainda, a marcada infelicidade, quase uma humilhação, que lhe transpirava por todos os traços do rosto.
 
Estava morto por ouvi-lo falar, para ver se conseguia  traçar a cartografia da loucura que fazia com que se apresentasse com as iniciais do nome.
 
Teria participado numa guerra?
 
Teria sido espancado, ou violado?
 
Teria vendido a alma ao diabo, a troco de nada?

Estaria arrependido de tudo, e impossibilitado de recomeçar?

De onde lhe vinha aquela humilhação?
 
Que pistas me daria o seu modo de falar?
 
Só no final das cartas em que não estamos de todo presentes é que insistimos em colocar as nossas iniciais, como se disséssemos: «Eis, de mim, esta fraca delegação.»
 
Ou então, na melhor roupa de cama, nos guardanapos de linho, nas camisas, bordam-se as letras que distinguem o nosso primeiro nome e o de família, mas num movimento oposto ao das cartas, para que essas coisas nos pertençam exclusivamente, para que não passem para mais ninguém.
 
Portanto, qual seria a natureza do movimento que orientava este homem marcado pelo sofrimento a falar deste modo?
 
Reservar-se, ou marcar a sua figura social como quem marca uma peça de roupa com uma propriedade exclusiva?
 
Mais ele ficasse em silêncio, mais eu teria elaborado um romance com todas as questões que me ocorriam em paralelo com a investigação da sua figura e do seu rosto, figura e rosto que eram como que os hieróglifos da sua vida, e teria talvez até conseguido especular e delinear o mapa da loucura que pudesse servir de suporte a um tão estranho comportamento.
 
Mal o homem abriu a boca e falou, porém, o movimento da minha imaginação interrompeu-se. O sotaque francês desfez o valor das iniciais que acabara de ouvir em português - Érre  Vê - e recompô-las em francês no nome comum, vulgar - Hervé.
 
Era um homem belo e infeliz, de meia idade, agudamente estrábico, sem aquele grão de loucura que eu desejaria cartografar.

Sobre uma pirueta infinita

Sonho CCLXV


Com os pés descalços, tentava fazer uma pirueta inteira sem o apoio da barra.
 
Para meu grande espanto, fazia, não uma, mas muitas, muitas, muitas piruetas.
 
Que alegria!...
 
A avó Edith também não tinha morrido.
 
Com os seus modos suaves, sugeria aperfeiçoamentos.
 
«O pé - mais para cima.»
 
«O joelho - mais para o lado.»
 
«En dehors!...»
 
«Abre.»
 
«Pé em conchinha.»
 
«Força.»
 
«Sobe.»
 
«Cabeça ao alto!...»
 
Por uma disciplina de humildade, mais do que por ambição, esforçava-me por obedecer a tudo.
 
Mas dizia:
 
«Oh avó... É só dançar por dançar...»
 
O que mais me agradava era aquela sensação de espiral. Uma espiral que se desenrolava ao alto.
 
E outra coisa que me fascinava era aquele branco. Um branco no pensamento.
 
Porque aquele impulso que se dava aos pés para girar era tão rápido que era impossível apanhá-lo com o pensamento.

Como é que o corpo dava a volta e sabia onde parar?
 
Ficava um branco na consciência, como um buraco, mas, mais que um buraco, porque um buraco é já alguma coisa, era um intervalo sem conteúdo.
 
Só se dava por ele porque estava entre e entre.

Como o sono.

Entre adormecer e acordar.
 
Entre uma coisa e outra coisa.
 
Entre partir e chegar.
 
Entre ficar de frente e de costas.
 
«Não podes ser tão egoísta.» - Dizia ela, dobrando mais o meu pé.
 
Mas não sei como o fazia, no meio da pirueta.
 
Essa avó sempre tivera poderes desconhecidos.
 
Onde estava ela agora?
 
«Se Deus é testemunha, a alegria também vale como acção de graças, não concordas?»
 
É que a pirueta nunca mais parava, nunca mais parava, nunca mais parava.