As visitas surpresa do outro mundo

Sonho CCLXXXIV


Tocavam à porta e era a avó Aethra Kaya.
 
- Avó!... - dizia eu. - Que boa surpresa!...
 
Estava com muito bom aspecto e um vestido comprido, muito extravagante, meio índio, com umas franjinhas.
 
Naquele momento, não me lembrava que a minha avó tinha morrido.
 
- Estás com muito boa cara, avó!... E um belo vestido!...
 
Certamente, com aquele vestido, já não se importava com o que diriam as suas amigas quando fosse tomar o pequeno-almoço à Garrett.
 
- E continuas gordinha, avó... Ainda gostas muito de comer?

- Sim, a gula entretanto não me passou. E tu? Tens aproveitado cada momento do teu dia?

- O melhor que posso, mas sinto-me em falta. Acho que poderia fazer melhor.

- No teu caso, já sabes o que fazer. Já descobriste a alegria. E não podes dar-te ao luxo de perder tempo. Onde estão os teus livros? Já escreveste tudo o que te passou pela imaginação? Não te esqueças que nenhuma dessas coisas que te apareceu na cabeça teve o que quer que fosse a ver com a tua vontade.

- São demasiadas coisas... O pensamento é demasiado rápido... Tchic, tchic, tchic... ele anda sozinho... dispara... e eu atrás, com uma lentidão infinita.... ele é uma máquina veloz e eu uma pobre caçadora de fogos ou de estrelas... apanho apenas uns restos de luz... umas fagulhas...

- Não te queixes. Apanhas o que podes. Do infinito, agarram-se umas migalhas, umas partículas. O importante é não desperdiçar tempo. A vida. Nem se deixar apanhar em armadilhas, dominações, quezílias, desgostos, morrinhas, coisas inúteis, futilidades, afectos tristes.

- Sou mais como um cavaleiro lutando contra dragões, avó, ou D. Quixote com os moinhos!... Às vezes caminho aos tombos... e os juízos são como uma chuva de meteoritos... oprimem-me!... Outras vezes condenam-me... e é tão difícil resgatar a liberdade... Mas luto sempre de pé e com determinação e coragem, que mais queres?

- Não podes ser complacente, nem contentar-te apenas com os bons esforços, porque o dia da tua morte há-de chegar. E quando partires e chegares, eu mesma te perguntarei: o que fizeste?

- Avó... observo que agora és livre... tens uma alegria desprendida, um fino humor nos teus olhos... és mais perspicaz... para onde foram a tua velha zanga e a tua tristeza?... Estás muito diferente, só pensas no que é mais importante. Aprendeste a colocar nos dois pratos da balança as manias humanas e o infinito das estrelas?

- Tive de aprender. E como tu és um pouco mais ilustrada, vim falar contigo. Ao menos que não tenham sido em vão tantas horas de leitura e tantas esgrimas, tantas vertigens e travessias do caos, tantos exercícios. Sabes que eu mesma te incentivei muito a ler, quando eras jovem, eu e a tua mãe, mas já antes tinha incentivado a tua mãe e as tuas tias, com os meus dotes de pedagogia infantil. Ficas sabendo que agora vai correr tudo bem entre nós.

- Sou como uma árvore, avó. Pode ser que o vento venha derrubar os meus ramos, mas mesmo assim darei fruto na estação própria. Resisto sempre.

- Rica menina. Estão cá todos? O tio João? O tio Manuel? O avô António? A prima Filipa?

- Pois estão!... Como chegaram todos aqui?... Será que tenho comida para todos?...

O que me espantava nessa gente toda eram os seus novos modos, que não tinham nada de preso, nem de oprimido, nem de infeliz.

Pareciam tão soltos, tão bem-humorados, tão libertos. Tinham passado para um plano de alegria e liberdade que lhes deixava, no olhar, aquele sub-riso, e, nos modos, aquele desprendimento.

Pareciam ter escapado, ao mesmo tempo, das duas mortes.

A que vem de fora e a que vem de dentro.

A que vem de fora ninguém a conhece.

É aquela que acontece aos outros, e a nós, pela falta que nos fazem os outros.

Mas a que vem de dentro, a morte da alegria e da liberdade e a intoxicação subtil a que os juízos e as ideias feitas do mundo nos condenam, essa, todos a conhecemos.

Eu via em cima da mesa uns pratos com nacos de carne cobertos de molho, talvez secretos de porco, e ficava muito contente por haver tanta comida, e ainda para mais tão deliciosa.

- Onde está a avó Constantina? - perguntava eu.

- A avó Constantina não pode ficar sozinha. Temos de lhe telefonar.

Não conseguia lembrar-me que tanto a avó Constantina como todos os outros estavam mortos.



Vicente Rodrigues - fotografia com telescópio
noite de 8 para 9 de Junho de 2019