Sobre fazer amor consigo próprio

Sonho LXXII 


F. de Riverday fazia amor consigo própria, exactamente o seu corpo.

Era outro, mas o mesmo - o corpo.

Só num sonho.

Que macio!... Que suave!...

Sabia precisamente onde tocar-lhe - mas conseguia surpreender-se, porque era outro corpo - aquele corpo.

Rrose Sélavy (pseudónimo feminino de Marcel Duchamp), 
«Rotary Glass Plates», 1920

Não há ordem possível

Fragmento 1


Não há ordem possível, nem há numeração possível, para estes livros.
O conjunto não é uma sequência, não é uma ordem.
Rede infinita - o conjunto é uma teia.




Sobre a potência de agressão do cuspo

Sonho XCVIII



Vinha uma data de gente numa comprida limousine, entretendo-se com aquela vulgar maledicência cujo objecto, neste caso, era eu.

Apercebendo-me deste facto, decidia cuspir-lhes.

Na realidade, cuspia-lhes, mas não tinha suficiente cuspo.

Não tinha tanto cuspo como aquele que desejava.

Ou melhor - o cuspo não era uma potência de agressão que estivesse à altura do meu asco.


Man Ray, Podarunek, 1921


Tentativa de meditação

Fragmento 110


De olhos fechados, o sol. Vejo uma bola de fogo gigante a girar veloz no azul infinito, incrivelmente dourada. Mas porque vejo este azul, poderá ele ser infinito? Nada do que vemos é infinito. Tudo se apresenta completo. Vejo as explosões de fogo na superfície incandescente de um sol tremendo e lembro-me de Dante e das suas visões selvagens e nítidas, extraordinariamente nítidas. «Era um homem fora do tempo.» É no que penso. Tinha qualquer coisa de bruxo, qualquer coisa de oriental. Apaixonado como um romântico, visionário como um surrealista, místico como um santo e perspicaz como um feiticeiro. Este sol podia ser de Dante. Mas Dante faz-me pensar na Filomena Molder e no júri da minha tese. Já estamos muito longe. Regressemos ao sol. A bola iridescente e ardente, no meio das galáxias e constelações prateadas e azuis, com aquela espuma, aquela poeira da luz branca e rosa que nos obriga a pensar no infinito... Universo!... Ó universo incomensurável que me comoves!... Mas é só um sol... Vamos, concentra-te. Abstrai o fundo. Não é a espiral das constelações entre os buracos negros. Não é o esplendor frio e gelado das super-novas... Um sol... Vamos imaginar um sol como uma estrela dourada em ouro, daquelas estrelas que nas igrejas colocam em cima das cruzes, nos altares. Uma coisa mais concreta, mais simples. Vejo a estrela de ouro sobre a toalha de linho do altar, em frente de um quadro escuro e apagado, no meio do mármore e da talha dourada, entre o trompe l’oeil dos mármores e das volutas de videira compostos uns com os outros como blocos sinfónicos. Mas é só a estrela. Pára, ó pensamento que voas... É só um sol e é como uma auréola em torno da cabeça de um santo. Como segurar os cavalos?... Vejo uma pintura bizantina, com toda aquela ebriedade do dourado. Pintores bêbados de luz, os bêbados de Deus, esses humildes artífices que se drogavam com o ouro dos retábulos... Oh!... Quando é que irei conseguir imaginar apenas um sol?... Extremamente difícil, é extremamente difícil. Eis uma proeza - a meditação de ver apenas um sol – e é impossível. Os cavalos não se seguram. As imagens soltam-se como bandeiras desfraldadas ao alto. O pensamento voa. Pensemos então numa miniatura em ouro, presa por um fio, pensemos numa minúscula estrela, sobre um lenço de veludo negro. Assim é mais simples. Ouro, estrela, miniatura, veludo. Assim consigo ver tudo, é muito concreto e realmente pequeno. Muito concreto e muito pequeno, é isto mesmo o que eu preciso. Ouro, estrela, miniatura, veludo. Não penses no fio, não imagines o colo da princesa, nem o vestido, nem as pernas finas e longas nem a pele nua, debaixo do vestido. E as paredes frias do palácio, essas pedras enormes que escorrem água no Inverno. A austeridade do castelo recorda-me a incrível brancura dos panos com que se cobriam as tendas no grande pátio do Rei Artur, no filme «Lancelot», de Bresson, onde os cavaleiros e o próprio Lancelot puxavam brilho aos elmos impecáveis... E que brilho!… Que luxuriosas as cores dos penachos, no topo dos capacetes!... E o branco, branco, branco, branco… Ah!... Qualquer coisa muito pequena, para que consiga concentrar-me. Um minuto, apenas um minuto, sem que o pensamento levante voo. Será possível?

Sobre a impossibilidade de ser mãe

Sonho LXXXIV


Afinal, a Maria do Mar era mãe de duas meninas, mas não tomava conta delas, nem sequer se lembrava dos seus nomes.

Eram ainda dois bebés, um deles recém-nascido, e nenhum falava.

Com muito esforço, a Maria do Mar conseguia finalmente lembrar-se dos nomes, Maria Inês e Maria Francisca, mas não estava absolutamente certa de não estar enganada. Sentia-se muito envergonhada.

Pedia à sua mãe se não podia levá-las para o seu quarto e ser ela a tomar conta delas.

Queria dar-lhes colo, mas pelos vistos nem sequer tinha casa.

Sentia-se muito culpada. Nunca se tinha apercebido que pudesse ser assim tão má mãe.

Quem tomava conta delas era a sua mãe, mas elas não tinham berço.

A Maria do Mar não percebia como é que pudera ser tão inconsciente.

Ela própria se sentia tão frágil e sem forças, completamente impotente, como é que poderia tomar conta de alguém?

Dormiam numa caminha improvisada ao lado da cama dos seus pais, as duas inocentes meninas, e pareciam felizes.

Mas a tristeza de Maria do Mar era como a morte.

Não se lembrava de quem pudessem ser os seus pais das duas meninas, nem sequer de ter estado grávida.

«Onde é que ficou o meu leite, se nunca dei de mamar?»

Estava mesmo muito confusa.

Os vagabundos, a louca e a prostituta

Fragmento 196



Diz-se que em todos os bairros existe um vagabundo, um louco e uma prostituta.

No sítio onde moro vi desaparecer três vagabundos. Um deles, muito sujo, vestia-se elegantemente com fato, camisa branca e gravata, mas via-se que usaria aquela roupa há muito tempo, pelo menos um ano. Devia ter os seus cinquenta anos e as melenas compridas e oleosas caíam-lhe sobre o rosto. Parece que em tempos fora muitíssimo rico, mas agora cambaleava sem nunca tocar com os olhos em ninguém. Havia um outro vagabundo que era um rapaz igualmente bem vestido, igualmente sujo, sempre acompanhado de um bloco A4 e caneta e que tinha uma predilecção por ficar em frente ao mar, a escrever. Este rapaz notava-se que mudaria de roupa de vez em quando. Um dia aproximei-me dele para perguntar se precisava de alguma coisa. Foi como se eu fosse totalmente muda e transparente - o rapaz não acusou qualquer sinal de que eu estivesse ali. No bloco, havia números e não palavras, muitas equações. Afastei-me. O terceiro vagabundo parecia um faquir. Usava calções e caminhava em alta velocidade pela marginal, por vezes nos passeios, outras vezes em cima do risco contínuo, com os cabelos eriçados e os olhos alucinados fixos no vazio. Nunca mais os vi, aos três vagabundos. 

Perto da minha casa existe também uma mulher bastante velha que está louca. Usa um boné de pala vermelho e meias coloridas a meio da canela que a fazem parecer uma palhaça. Anda sempre de saia, e nenhuma das cores combina. Por vezes grita muito, ralhando para ninguém com palavras incompreensíveis, outras vezes ouve simplesmente música num transistor. Quem é que ouve música num transistor, no meio da rua? Cheira a suor e urina e tem barba e uma vez via-a de rabo ao léu a fazer chichi atrás de um arbusto.

Depois existe também a prostituta, com quem me cruzo tantas vezes, de passagem. Era bonita há sete anos atrás, a rapariga de dezoito ou vinte anos com o corpo ágil e bem esculpido como o de um lince. Agora a sua pele tem outra cor e o rosto, velhíssimo, é como se estivesse sulcado a machado pelo sofrimento. Vejo-a sentada nos muros, sempre sozinha, encostada nas esquinas, com o corpo magro e subtilmente comido pela fome, a entrar sozinha na pensão discreta e pobre, ao lado das casas de luxo. Vejo-a conversar com homens, sozinhos ou aos pares, um deles montado numa mota barata. Vejo a expressão baixa e torpe com que certos miseráveis comentam entre si ou a seguem quando ela passa, assobiando. Vi-a um dia receber imóvel um tremendo ralhete de uma outra mulher que agitava os braços à sua frente, desesperada. Mas os seus olhos nunca tocam em ninguém, tal como os olhos da louca e como os olhos dos vagabundos. No seu rosto, nenhuma expressão a não ser, de um modo duro, lento, opaco, um sofrimento que se escreve na escuridão progressiva da pele e na velhice prematura, desencantada. Vi-a hoje de relance quando passava de carro em frente do cemitério e reparava nas cruzes dos jazigos brancos ao lusco-fusco. Pensava: «Belo enquandramento, o topo triangular dos telhados brancos dos jazigos cortados pelo muro alto e em cima as pequenas cruzes de mármore ao lusco-fusco...», quando a vi saltar por cima de um muro com a agilidade de um gato, desaparecendo na mata cerrada que está ao lado do cemitério, abandonada, para se drogar. O meu estômago deu uma volta de e veio-me uma náusea, seguida de um arrepio.

A violência.

O Leão de Belfort, Noveleta Urbana - de Alexandre Andrade

Fragmento 195





Não é por acaso que os improváveis anúncios afixados nas ruas de Paris por donos de gatos mais ou menos desesperados e sempre com o título de «Perdeu-se Lindo Gato» referem animais que invariavelmente têm o nome de um dos personagens de «Em Busca do Tempo Perdido», de Proust. 

Saint-Loup, Palamède, Oriane, Basin, Bergotte, Bloch, Marcel... Eles não estão perdidos (p.148), mas «apenas à espera do momento para se mostrarem» - um mágico e difuso momento que coincide aliás com o sonho final de Cristina e que surge coroado com um insubstituível comentário (no momento em que Cristina ao levantar-se da cama bebe um sumo de maçã na cozinha, desenhando figuras geométricas num vidro embaciado), pervadido pelo mesmo humor inimitável que atravessa todo o livro, de lés a lés: «O zumbido maravilhoso do frigorífico; o bule de cerâmica deliciosamente rachado.»

Mais do que porque o ciúme, tão importante em Proust, seja o motor do pequeno drama de adultério, quase rarefeito, entre o jovem casal formado por Cristina e Gui, ou porque Paris, como referiu Alexandre na entrevista a Ana Daniela Soares, seja a cidade infinita onde se pode ter a «sensação inebriante de que basta esperar e qualquer coisa vai suceder», mas principalmente porque «Em Busca do Tempo Perdido» seja o primeiro grande romance que funde vida e literatura de um modo tão intenso e problemático, talvez por isto estes nomes sirvam de Ritornello na saga subtilmente humorística de uma pessoa em busca de perceber quando começa a viver a sua história, uma pessoa, como nos diz Alexandre, na mesma entrevista, «a viver uma vida que decorre sem sobressaltos, corre bem, aparentemente, é feliz... mas na qual ela sente a falta de qualquer coisa e essa "qualquer coisa" é uma coisa um bocado etérea e vaga a que ela chama "viver uma história", "sentir-se personagem".»

Cristina Verschwundhoffnung é o nome que traduz a experimentação desta aspiração e desta angústia, de uma forma quase sempre cómica (como quando a protagonista nos é apresentada no diálogo com Anaïs no meio da rua), e em parte pelo eco que o apelido desenha com as palavras alemãs que podemos traduzir por "perda", "esperança", "vário".

É num filme de Grifith (True Heart Susie), que Cristina se depara com um primeiro intertítulo que a faz lançar numa corrida quase louca pela cidade e que termina no mercado ao ar livre do Boulevard Beaumarchais na compra de cerejas, pepinos, sidra artesanal e um pedaço cuneiforme de queijo Maroilles. Dizia o intertítulo:

Is real life interesting?

Every incident
of this story
is taken from
real life.

Nem lei (História), nem segredo (história) (p. 91) - o esforço com que Cristina tenta trazer à tona dos dias um "acontecimento", envolvendo-se com o professor de desenho, desconfiando de Gui, procurando algo de malsão nas suas leituras, através da pista de um livro de Faurisson (um negacionista do holocausto), aceitando o convívio com um divertido grupo de marginais que se reúnem numa espécie de catacumbas e atravessando tudo isto com uma inocência paradoxal, que dança como o sorriso do gato de Lewis Carrol entre a leveza e o humor de uma prosa elegantíssima - afinal todo esse esforço se condensa numa pequena epifania, antes da partida para viver em Lisboa, ao sabor de Beckett:

É preciso ter uma vida. Não é preciso ter uma história. (p. 151)

Será o Leão de Belfort, este animal encurralado e em fúria que olha na direcção da Estátua da Liberdade em Nova Iorque (com quem tem em comum o mesmo escultor, Bartholdi) o símbolo de uma resistência dupla que é raro nomear?

O Leão de Belfort simboliza a resistência heróica do Coronel Denfert-Rocherau e da população de Belfort durante 103 dias e com quinze mil soldados, na guerra prussiana de 1870, contra quarenta mil soldados alemães. A desproporção de forças era enorme. Cristina escreve, no seu diário: «Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas das bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas. Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de loção, boiões de gel, aerossóis de laca. Uma loja de revenda de artigos em segunda mão. Demasiado fácil. O respigador ambulatório de factos e objectos não ousaria pedir tamanha diversidade. Uma iogurteira, uma batedeira, um ferro de engomar, CDs de Nicolas Peyrac e Serge Lama, blusas de senhora, caixinhas para medicamentos de inspiração japonesa, camafeus, brincos, argolas de guardanapo, livros de bolso, números antigos da revista Esprit. (...) Se um cataclismo engolisse Paris de um dia para o outro, e se, por um fenómeno extravagante, apenas os objectos deixados nas lojas se salvassem para as gerações futuras, como será que os vindouros reconstruiriam as histórias pequenas e grandes dos habitantes da cidade? (...) Esses cronistas do passado teriam diante de si uma das tarefas mais ingratas. As vidas que eles tentariam reconstituir, com base na cornucópia de achados arqueológicos à sua disposição, seriam forçosamente pletóricas, ricas, absurdamente cheias de variedade. Vidas impossíveis, saturadas de acções capazes de ligar numa cadeia longuíssima uma tão grande diversidade de objectos, como numa litania.» (pp.59-60) 

Há nesta prosa, como numa linhagem de cinema que inclui Ozu e Tarkovski, esta tentativa pungente de fixar a vida na sua grandeza trivial, prosaica, ínfima e íntima, tão imperceptível, como, em Ozu, o gesto inconsciente com que um actor ou actriz se coça, durante fracções de segundo, num joelho ou num cotovelo. Assim resistem as personagens de um romance de Proust nos sonhos de quem as ama como animais peculiares e íntimos, únicos (de preferência gatos ariscos e rebeldes que luzem com luz própria e que não vão a lado nenhum), e assim parece que resistimos nós em busca de nos tornarmos personagens na difusa e indistinta (indiscernível) fronteira entre a arte e a vida.


Sobre a intromissão da polícia

Sonho CLXXXI




Apesar dos meus pais não me telefonarem há já vários anos, lembrei-me de como a minha avó me ligava com frequência, ao ponto de, por vezes, me deixar um pouco incomodado.

Quando era viva, nunca passava muito tempo sem que entretanto ligasse, mas, depois de morta, nunca mais ligou.

Foi quando ia a guiar em plena Lisboa e em plena hora de ponta que o telefone tocou.

Quando me apercebi de quem era fiz um pião com o carro e passei por cima de uma placa, mas não perdi nenhuma peça do carro. Entrei em sentido contrário e, por milagre, numa grande velocidade, consegui estacionar sem bater em ninguém e sem cortar a passagem do eléctrico.

Logo apareceu um carro da polícia com as sirenes todas ligadas e um grande chinfrim.

«Você está louco?! Você está completamente louco?!...» - gritava o polícia.

«Desde o ano de 2007, Senhor Agente!... Desde o ano de 2007, o ano da sua morte, que não recebia uma chamada da minha avó!...»

O polícia revistou de imediato todo o carro e espalhou no chão a areia de um saco de areia para gatos, à procura de heroína ou de cocaína.

«Pudera.» Pensava eu, sem deixar de me divertir. «Com um discurso destes...»

Confessemos - alguma vez nos arriscaríamos a perder uma chamada do outro mundo?



Sinais de trânsito

Fragmento 60



Muitas vezes me comovem até às lágrimas as paisagens, mesmo as insignificantes. Lembro-me de Pessoa dizendo que um dia de sol o compensa de muito, no Livro do Desassossego. A mim, as cores compensam-me de muito, seja em que grau de luz for. Vou andando de noite dentro do carro pelas estradas e vejo os pontos de luz eléctrica a dançar no azul, à medida que deslizo. «Esplendor.» É o que penso. Porque até os sinais de trânsito, pregados como chupa-chupas coloridos à beira da estrada, me comovem. Têm qualquer coisa de gente, ali colocados, com as suas caras brilhantes e expressivas que se iluminam quando lhes bate a luz dos faróis. «Proibido ir a mais de cinquenta.» «Curva perigosa à esquerda.» «Atenção à passadeira.» «Esta rua tem sentido único.» «Stop.» Não há nada a fazer. Olho para eles e lembro-me espontaneamente de toda essa gente quase invisível que se esforça tanto por ser importante e por ser útil, fazendo com fé e dedicação todas as pequenas coisas com que acredita conquistar a alegria ou o amor.