Vens através da distância... de Miguel de Carvalho




É difícil transmitir o impacto que me causou a primeira leitura destes "poemas visuais" (chamemos-lhes assim), de Miguel de Carvalho, nas Raias Poéticas de Famalicão, em Maio deste ano. Foi como se viajasse para um outro tempo, um outro plano da minha vida, ou melhor, da minha existência. O ecrã gigante da sala, onde de repente começaram a circular os recortes, as fotografias, os pedaços de papel escritos à máquina e de que a voz, sóbria e reservada, extraía o som. Viajei no passado, para a jovem rapariga da minha adolescência e para as suas intensidades secretas que agiam entre a música, as palavras e as imagens. Viajei no presente para um plano quase intocável do meu espírito, um plano que habito sem quase nunca o partilhar, secretamente, ainda que esse plano não tenha nada que o obrigue a ser secreto, apenas a sua (talvez extrema) singularidade. Há esses vazios imensos nesse plano. Esses silêncios. Há essa solidão cósmica das galáxias mudas e que aqui aparece na justaposição dos quadrados. De que falas? Poderão perguntar. Aparece como? Falo do que sinto. Não sei como "aparece." Há esse "por dizer" que vem no quase absurdo de introduzir um recorte de um corte de medula na imagem da paisagem de uma ilha. Mas não é absurdo. Cada corpo atravessa a sua visão, factualmente. Não é verdade que vemos assim porque temos um corpo assim? Pôr isso a nu é só uma espécie de rigor ou de exactidão. Estes poemas tocaram-me muito profundamente. O seu ritmo lento, atravessado pela sensação muda das imagens, trouxe a mim a vida do meu próprio pensamento, esse estar-aí no mundo, sem mais, sem grandes coisas. Estar-aí a existir, a ver, a sentir, a pensar ainda sem palavras, numa grande queda pelo infinito. Recebo este livro único na minha caixa de correio, e abro o embrulho com um arrepio.









Piraí

 

Tem tucano, tem sabiá,
tem preguiça, tem maritaca,
tem macaco e tem gambá.
Preguiça musical, subtil, sensual.
Maritaca verde de bico amarelo:
"käkäkä!..." "käkäkä!..."
Sabiá cantando com quinze notas,
fazendo ninho de barro,
esvoaçando.
Tem lagarto, tem capivára,
tem jacaré e tem arara.
Arara preta, araraúna,
arara-hiacinta, araruna,
ararinha, araracanga,
arara-azul-de-spix.
Me deixa falar esta língua -
certas palavras são fetiche.
Estão na língua como nos dedos -
como teclado debaixo dos dedos.
Palavra rara em que som vira barro,
vira lama, porcelana, vira tinta e vira cama.
Me deixa falar esta língua -
quero ser índio de pés nus,
gambá com suas orelhas redondas
e bolsinha para os ninos.
Sariguê, sarigueia,
tacaca, ticaca, micurê,
timbu, taibu...
quantos nomes tem gambá?...
Tem garça, tem jacu
(jacu que parece um perú)
tem rato e tem cutia.
Rato encurvado: acouti, 
acouchi, aguti, acuti...
quantos nomes tem cutia?...
Um nome é trilo de outro.
Uma palavra, mordente da outra.
Língua tupi, que delírio sem fim.
"käkäkä!..." "ta-rát!..." -
gritam os pássaros.
Também tem surucucu,
A COBRA
que dá várias dentadas.
Coral, cascavel, jararaca.
Tem sagui, tem quati,
tem tatu e urubu.
Quati de nariz pontudo,
espécie de guaxinim.
Urubu empertigado.
Sagui de rabo enrolado.
Sim, este poema é para ti
que estás no sítio do Piraí.
Paraíso, para ti -
que este poema seja pássaro,
garça, borboleta, atiati,
na beira do rio castanho,
na fazenda da avó Mimi.