Irritações

Fragmento 180

 
Porque é que Proust não tem outro nome para dar ao desejo doentio de Swann por Odette, do Barão de Charlus pelo violinista Morel e de Marcel por Albertine? Como é que o patologista pode ter uma análise tão fina da doença, fazer um diagnóstico tão preciso de todos os seus males, descrever e nomear, por diversas vezes e com excepcional precisão, as sombras e as franjas das suas múltiplas degenerações (o ciúme, o controlo, a imaginação desconfiada e desregrada, o domínio, a paranóia, a perseguição, a desconfiança, a humilhação, a posse, o vício, a semelhança entre este tipo de apaixonados e os opiómanos...), e depois falhar de um modo tão grosseiro a catalogação da doença? Eu acredito que os grandes escritores usam a língua de um modo literal. E chamar amor a isto é praticamente a mesma coisa que chamar sede ao impulso que leva um alcoólico a beber.

Crianças 5

O armário


Ser um armário é muito chato. Abrem a porta, fecham a porta. Sempre a pôr e a tirar coisas. Estou sempre quieto, sempre quieto, sempre quieto. E abrem a porta e fecham a porta. Estou cheio, cheio, cheio. Estou tão cheio que não posso mais. E com certeza vou rebentar.

Sobre os tempos de guerra

Sonho CIV


Estávamos no meio de uma guerra e, portanto, as raparigas eram obrigadas a deitar-se com quem aparecesse.
 
Mesmo assim, a F. de Riverday conseguia escolher e, afinal, parecia que as coisas não eram assim tão más.
 
No fim, ofereceram às raparigas a possibilidade de escolher entre uns pijamas limpos que estavam expostos em cima de mesas, mas só havia partes de cima, não havia partes de baixo.
 
Foi isto que lhe inoculou uma angústia difusa e insuperável.
 
Quando terminou a guerra e a deixaram regressar a casa, a F. de Riverday não conseguiu reconhecer a casa.
 
O jardim estava transformado num matagal e, na sala, teve de dar um beijo a uma mulher velha que estava sentada e que não sabia quem pudesse ser.
 
Seria a sua mãe? A sua avó?
 
A mulher não se levantou.
 
Era uma mulher fria e antipática e a F. de Riverday não queria dar-lhe um beijo.
 
Na sala de jantar estavam várias pessoas à volta de uma mesa, mas também não conseguiu reconhecê-las.
 
De resto, ninguém se levantou.
 
Das janelas via-se uma praia de cores alegres, pontuada aqui e ali pelas copas circulares e coloridas dos guarda-sóis. 
 
Foi só perante essa visão alegre que Riverday sentiu a violência que antes não sentira.
 
A angústia perante a visão suave foi de tal modo insuportável que lhe fez faltar o ar.
 
Desfeito em mil pedaços que voavam em todas as direcções ao mesmo tempo.
 
O corpo.

Roturas e Ligamentos, de Rita Taborda Duarte e André da Loba

 
 
 
 
Acredito que poucas coisas há tão difíceis como escrever sobre poesia - e mais ainda sobre poesia quase acabada de fazer, ou ainda a fazer-se. Porque é que a poesia resiste tanto? Porque é que nos envolve e fascina e nos incomoda como se fosse alguém que de súbito nos entrasse em casa, sem ser convidado?
 
Quase sempre a poesia carrega um excesso de intimidade - um excesso de corpo - e uma ausência de distância. Aquele «tu» que tantas vezes os poemas convocam faz com que nos fitemos cara a cara sem um pedido de licença. E talvez por isso a poesia seja sempre tão difícil de ler até mesmo para o próprio que a escreve, como se o imprevisto em pessoa resolvesse entrar sem aviso prévio por nós adentro.
 
Não por acaso, este livro que foi editado de forma invulgarmente cuidada pela abysmo está composto em caracteres «Amor», de Frantisek Storm, em papel de cento e cinquenta gramas, e abre-se em duas vias, pelo fim e pelo príncipio, isto é, pelos poemas da Rita Taborda e pelas imagens especialmente planas e musicais do André da Loba.
 
Não deixa de ser fascinante como a própria forma física e desconcertante do livro que nos faz lembrar a de dois gémeos siameses rima com a tensão que atravessa os poemas e as imagens.
 
Reencena-se aqui uma tensão muito antiga, um conflito muito velho. É entre a vida e a arte, entre as palavras e os gestos, entre o poema que diz amor e o corpo que faz o amor que existe uma fractura exposta. E é de facto no plano desta fractura e desta violência que se criam as roturas e ligamentos que vão criar um novo corpo, porventura, uma nova poesia.
 
As palavras são as «pedras perfiladas que fazem os mundos», mas também são «uma porcaria imensa: / uma mistura líquida de cuspo e restos de comida.» «Não é possível fazer poesia com restos de palavras mastigadas / que azedam num instante, ainda para mais se está calor.» A palavra «amor» podia ser «amor» ou «Boby, Tejo ou Lassie». «Qualquer nome lhe daríamos, ao amor / e o resultado seria sempre o mesmo: / Um ganido tímido / a morder-nos de cio o coração da noite.»
 
Porque se por um lado o amor é sempre «amor não-dito», por outro lado diz-se que «É preferível escrever-te que beijar-te: / a folha rasa    limpa    é corpo    liso.» E é urgente soletrar a palavra que fariam os corpos dos amantes, pois «nada / existe sem a palavra que o diga». 
 
Porém, ao contrário do que sucede nas imagens de André da Loba, que tendem para uma resolução das tensões em jogo, nesta escrita o conflito não se resolve, o que lhe imprime um aspecto atonal, suspensivo e, paradoxalmente, pela qualidade aristocrática do desencanto, qualquer coisa de encantador.
 
 
Escrevi-te o meu poema   dicionário ao lado
silabar de laje e de granito na gravidade da mesa.
Mas nem ao de leve te raspou a pele,
sopro fátuo e lasso     agilidade de sombra sob o sol.
Sequer vento emaranhando o teu cabelo.