reflexões ocasionais I

 

Por vezes acontece que o pensamento por dentro me dispara sob a forma de páginas de um livro que estou a ler. Não tenho propriamente nenhum livro, nenhuma página, nenhuma folha impressa na minha imaginação. Nada disso. É aquela corrente do texto lido, aquela fala muda, a voz imaginada, mas não ouvida, que segue pela minha cabeça fora, principalmente quando ando a pé ou viajo de carro. Que belas coisas, irrepetíveis e inéditas, me foram dadas a ler!... (Pelo menos na minha imaginação eram de enorme beleza e pertinência, essas coisas que me causaram profundo maravilhamento e que nem li como se fossem minhas, embora aparentemente fossem produzidas por qualquer coisa em mim.) No outro dia, caminhando à beira mar, era um texto sobre o suicídio, a propósito da Isabel Aguiar. Ficou-me o tom e algumas notas que consegui tirar, na esperança de o escrever, ou melhor, de escrever qualquer coisa levemente aproximada a isso, pois é tudo o que a lucidez e a humildade permitem. Isto porque a prosa tem sempre esta fluidez, esta velocidade maior e um som que é mais interior do que exterior, ela é como um voo de pássaro que me atravessa. Que velocidade... que fascínio me imprime... E muito pouco dela se consegue realmente agarrar. Escrever depois é toda uma recriação de tonalidades e ambientes, todo um novo esforço para pensar. Mas quando a poesia aparece, curiosamente, o gravador do telemóvel já serve para qualquer coisa. Talvez aquela monumentalidade das frases, aquela coisa mais esculpida e pesada. A poesia é mais lenta, tem intervalos que dão para repetir o verso no microfone e o som dela pesa mais, é como se fosse mais material e exterior, mais físico. 





A roda da fortuna é mais imprevisível que o voo da vespa. 

#8






Não é só o corpo que arde, arde,
enquanto espero por ti, querido amor.
Tudo brilha na paisagem da tarde
em que te espero, tudo é esplendor.

Agora sou talvez como uma chama,
estrela corredora, dourada e fina,
vasto fogo abstracto, coisa estranha,
que correndo a escuridão ilumina.

Tudo parece que tem luz em frente:
os relvados, as árvores do costume
ardem como coisas incandescentes!...

... e as flores que se erguem como lume
são de súbito as tochas ardentes
a que o fulgor tocasse com um gume.







#7



"Vai, meu amor, vai. Vai como um deus
de outros tempos em que os deuses
tinham forma humana ou de animais
e eram feitos de carne e de ossos.

Vai sobre as nuvens como um cavaleiro
de pés alados e que o vasto mundo
seja todo teu e as naturezas
das paisagens por conhecer também.

Vai, meu amor, e que os céus sejam
para ti como as coroas de alegria
que estão sobre as cabeças das crianças.

Invisíveis mas brilhantes as coroas
de quem por acaso anda no colo,
ainda, do amor e da esperança."





 

corpo ardente

aqui

 


poema diminutivo: o grito

aqui

Um corpo que dança, de Marcos Martins


Uma das coisas que me tocou profundamente neste documentário sobre o Ballet Gulbenkian foi que, de algum modo, no enquadramento político, cultural e musical do Portugal que vai da década de sessenta a 2000, se espelhou o enquadramento da minha própria vida e das suas dificuldades, enquanto mulher e enquanto artista, até hoje. Toda uma memória viva e por vezes dolorosa irrompeu das imagens de arquivo da RTP, dos penteados, dos colarinhos, das roupas, dos sotaques, dos automóveis antigos, dos olhares despidos. Vieram também à tona das sensações vivas as minhas próprias experiências de dança... de noite, em delírio, na solidão, em transe, no carro, em festas de criança ao som da Barbara Ann, no quarto, na sala, enquanto a minha avó de costas tocava Scott Joplin, em abstracto, caminhando e dançando na imaginação com o som mudo das cores dançantes, nos espectáculos Acarte, pregada na cadeira e dançando tanto. Velho sonho da menina de três anos que não cerrava os olhos de sono para poder ver o Lago dos Cisnes na televisão e a que agora dou uma forma humilde, mas resistente, na minha disciplina diária de me alongar ou dançar. Foram alguns os momentos em que chorei, coisa tão rara para mim nestes tempos da dita maturidade, não pelo filme, mas porque ele tocou naquela corda mais fina dentro de mim e que sabe o que é mais valioso, o que mais vale a missão de uma vida: essa dança dos gestos tantas vezes secreta e obscura que se faz para Deus, essa verdade selvagem de ser si próprio e que exige tanta liberdade, lucidez, desapego e coragem. E lá estava também o querido José Gil, a Vera Mantero. Ecoando a lógica subliminar e obscura dos encontros.


https://umcorpoquedanca.pt/o-filme/



A paz e a terrina de porcelana azul e branca

Sonho CCCX

Estava num grande jardim onde ao longe conseguia distinguir a velha casa de aspecto senhorial que fora dos meus avós, mas que já não era nossa. No jardim havia muitos eucaliptos cujas sementes perfumavam a terra com uma sensualidade inebriante. "Jamais deveria ter vindo viver para a cidade." - pensava eu. Tudo ali me fazia vibrar e agitar suavemente as cordas do corpo, como se eu fosse um instrumento musical. O som das águas correndo. O restolhar do vento nas árvores. O grasnar dos pássaros e os mil perfumes que se elevavam da terra. Sentia-me tão viva e desperta e com vontade de ter os pés descalços e as pernas ao léu e de dormir a sesta em cima de uma manta. Tinha nas mãos uma terrina de porcelana azul e branca do século XIX, de um velho serviço chinês. Tirei a tampa da terrina e observei que por dentro o pintor se dera ao trabalho de pintar em pequenos quadrados as cenas da vida de um jardim. Pensei também naqueles artistas árabes que burilavam os móveis por todos os lados, mesmo nos que são impossíveis de ver, pensando em Deus que os veria por todos os lados. Também o artista da terrina devia pensar de igual modo, pois o que estava lá dentro era ainda mais belo e interessante do que o que estava cá fora. Sentia que podia compreender muito bem esta espécie de artistas, frequentemente anónimos. Também eu tentava fazer do meu dia como que essa missão artística para Deus, mas tinha ainda de encontrar o plano da gentileza singular que me permitisse não me sentir em falta permanente. Dentro da terrina estava uma esplanada com muitos e delicados chapelinhos de sol e, a dado passo, um fonte feita em degraus com taças de cerâmica de autor. Tinham aproveitado um renque de árvores recém-floridas, de trocos esbeltos e maleáveis, que se dispunham alinhadas ao longo de uma suave inclinação. Assim, em frente desses troncos tinham disposto as taças em degraus e a água corria por elas em cascata até chegar a um pequeno tanque. Era tão lindo... Rapidamente percebi que no meu jardim estava exactamente uma composição igual a essa do interior da terrina. O mesmo renque de árvores, as mesmas taças azuis e irregulares e eu podia ouvir o som mágico da água a correr enquanto saltitava de umas taças para as outras. Uma coisa tão simples e tão incrível... Sim, iria fazer um pequeno filme desses trajectos da água com o meu telemóvel. Sim, iria ficar ali apenas a ver e a ouvir, mergulhada na suavidade do calor inebriante. Não queria saber de mais nada. Principalmente e durante algumas horas não queria ter notícias de nenhuma guerra nem de como os homens destroem tudo o que encontram e num segundo arrasam as vidas, ferem de morte as almas e ofendem para sempre a alegria e a inocência, arrasam casas e cidades inteiras e fazem sangrar paisagens por décadas e décadas. Ali, é verdade, podia sentir a paz, mas era mais e menos que uma sensação, essa paz que se libertava do som das águas e das árvores e do desenho da velha casa senhorial que ao longe parecia um quadro de Cézanne. Fria, imensa e monumental, que poderia dizer de uma coisa tão estranha e tão imensa, tão desumana? Era uma paz e estava presente, imensamente presente, tomava todo o espaço com uma presença viva e não humana e que na imaginação só me parecia equiparável ao que fosse um grande silêncio cósmico, indecifrável e inacessível, mas intensamente omnipresente.



Milhões


Era uma vez um homem muito forte, mas sem princípios. Tinha porém muito poder, muita força e, além disso, uma grande máquina de destruição. O homem abusava desse poder dentro da sua própria casa e os vizinhos sabiam disso. Mas quem interfere na casa dos outros? Já diz o velho ditado popular: entre marido e mulher não se mete a colher. E assim vai também a ordem do mundo, enquanto ardem os países, como casas alheias. Cada qual com seus tribunais, cada qual com suas leis e seus juízes. E onde está o bem e o mal? Onde está o limite do intolerável? No outro dia, o homem lançou-se sobre uma casa. Tomou tudo, destruiu tudo. Mas ninguém fez nada, porque ele era muito forte. Uma casa é apenas uma casa, que se poderá fazer? Antes uma casa só do que mais casas ainda, mais ainda as casas de quem interferisse. No outro dia, o homem lançou-se sobre uma aldeia, pegou-lhe fogo e ardeu tudo, mas ninguém fez nada, porque o homem era tão forte, podia ainda irritar-se e usar a grande máquina de destruição que tinha nas mãos. Das suas janelas, os vizinhos das outras aldeias ficaram a ver os outros a arder dentro das suas casas. Ouviram os gritos das mulheres e das crianças. Souberam que os velhos se arrastavam. Mandaram-lhes pão e sapatos. Os mais generosos abriram as portas da sua casa. E muitos viraram a cara para não ver, porque era insuportável. Quase todos comeram os corações. E continuaram as suas vidas, conforme podiam. No outro dia, o homem lançou-se sobre uma cidade. E assim foi, dia após dia, cidade após cidade. Ardiam casas e casas. Hospitais, teatros, ruas, fábricas, pontes, portos, campos e estradas. Não era uma casa, nem uma família. Milhões, milhões, milhões. E o que são milhões? Já não sabemos o que são milhões? Cada criança na fronteira com a sua roupita e um peluche nas pequenas mãos, na temperatura gélida, cada criança é só uma criança. E milhões de crianças? Cada mãe só uma mãe. E milhões? Se Hitler tivesse tido poder nuclear, isso teria sido argumento para não agir em nome da justiça e da defesa da inocência, perante a catástrofe humanitária do holocausto? Até quando e a que preço imperará a lei da força no mundo e poderá ser justificada a nossa inacção, com os argumentos da "sensatez"?

Tché

 Sonho CCCIX

O patriarca de uma família que em tempos se tornara ilustre pelos seus músicos e intelectuais mostrava-se profundamente desapontado com grande parte da sua descendência. "Porquê?" - havia quem lhe perguntasse. "A culpa é do tché." - dizia ele. Eis uma palavra que nunca ouvira em toda a minha vida. "O tché" - dizia ele - "é o medo português." "O medo português?" Eis as coisas em que quase chegando à segunda metade da vida se desconhecem em absoluto." - pensava eu. "O tché é o medo português de não ser igual aos outros." - esclarecia o patriarca. Medo de não usar a roupa certa, as palavras certas ou a atitude certa e assim ser desprezado ou olhado de lado pela maioria do grupo, neste caso, pela família. "Ai... como me desgosta tudo isto... por que raio vim chegar a este papel, patriarca? Eu só me casei... e foi por amor... e agora estou cheio de filhos... todos eles cheios de tché." Realmente, parecia-me que o pobre homem estava cheio de razão. Haverá lá faísca de criatividade ou sentido crítico que possa sobreviver ao tché? Mas também há aqueles que querem ser diferentes de todos. E não é  precisamente a mesma coisa, mas ao contrário? Como a anorexia e a bulimia. Ou o esbanjamento e a avareza. Há sempre aquelas coisas que sendo o contrário umas das outras são precisamente o mesmo - e nisso opera a ilusão de muitos.







Vantagens e desvantagens de se empielar

Sonho CCCVIII


Afinal, Anaïs D. nunca tinha parado de beber. Apanhara uma grande piela com vodka e ia em alta velocidade pela A5, com o seu pai ao lado, muito satisfeito. "Afinal, que vantagem existe para um alcoólico em não beber? Não é tão bom desligar deste mundo? Deixar tudo para trás das costas e sobrevoar a dor como um surfista?" Anaïs não conseguia abrandar a velocidade do carro e já tinha passado para o sentido contrário, mas lá se ia safando. Não conseguia ir a menos de cento e quarenta, mas, entre morrer dessa maneira ou de outra, vá-se lá perceber como, não via grande diferença.




A migração intergaláctica

Sonho CCCVII


Estávamos no meio da marginal, de noite, uma multidão, entre conhecidos e desconhecidos. O que estávamos ali a fazer? Não sei. Pelo vidro do meu carro podia ver o edifício do Hotel Palácio do Estoril a voar pelo céu fora. "Extraordinário." - pensava eu. "Estas são as novas naves espaciais?" Janelas. Desenho oitocentista. Ao meu lado estava um miúdo com o avô e a avó, mas os seus corpos eram muito lisos e ligeiramente brilhantes e vagamente faziam pensar em desenhos japoneses. Perguntava-me se eles seriam deste mundo e rapidamente descobri que não, que eram extraterrestres. D. também tinha emigrado para Marte e agora o seu corpo tinha aquele aspecto liso e vagamente brilhante, bem acabado. "Não é demasiado desolador viver em Marte? Não sentes muita falta do céu azul, das oliveiras, dos ciprestes e dos telhados vermelhos das casinhas?" Ele mostrava-me uma fotografia de Marte, um deserto desolado de poeiras e crateras. "Não." - respondia ele. "Vemos coisas em que antes não reparávamos. E essas coisas são muito belas. Sublimes, na verdade." Valeria a pena emigrar para tão longe? "Estamos em paz e aprendemos a contemplar os neutrões entre as frestas dos átomos. O nosso olho afinou-se." Nada mais precioso que a paz. E os corpos deles respiravam estranha beleza.




Os espíritos, a casa e os pterodáctilos

 Sonho CCCVI


Ao chegar a casa, depois de um longo dia de trabalho, verifiquei que a casa tinha sido visitada por um espírito. "Deve ter sido um espírito bom." - pensei eu. Pois os cortinados do quarto estavam delicadamente abertos de um modo muito suave e com um jeito especial para amparar a queda do tecido. Só um espírito muito particular poderia ter esse género de delicadeza e, na verdade, teria de ser obrigatoriamente bom. Até agradecia que a casa fosse visitada por um espírito que fizesse algumas tarefas domésticas, ainda para mais com tal sensibilidade e bom gosto. Mas que fora feito da cama? A cama desparecera. Talvez não fosse um espírito assim tão bom. E que ideia fora aquela de arrumar toda a loiça da cozinha no topo dos armários da roupa? Não devia ter sido com má intenção. Para um espírito certamente tanto faz. Eles já não precisam de escadotes, tanto lhes faz que as coisas estejam à mão como não. Voam sempre que querem, com certeza. Mas que confusão. Afinal a casa estava cheia de espíritos e havia comida por todo o lado. Um verdadeiro banquete. Na bancada da cozinha estava uma enorme pavlova meio comida e uma data de tacinhas de leite creme com açúcar queimado. Que festim, meu Deus... Estava já numa grande aflição, vendo a casa cheia de espíritos que andavam de um lado para o outro, muito satisfeitos. A única consolação era que, apesar de conseguir vê-los, eles não pareciam ver-me a mim. Decidi ligar para uma grande amiga que tinha poderes paranormais. Mas o estado de pavor em que estava era tal que não me saía um único som pela boca, embora mexesse os lábios, tentando articular as palavras. Também não me conseguia concentrar de modo a escrever uma mensagem, pois não conseguia tirar os olhos do que me rodeava. Um dos espíritos aproximou-se de mim com uma taça de leite creme na mão, observando-me com os olhos muito abertos. Era uma jovem rapariga mulata, muito bonita, e olhava para mim com enorme curiosidade. Decidi pôr-me em fuga da minha própria casa. Talvez conseguisse chegar a casa da minha amiga e então as duas juntas conseguíssemos libertar a casa de todos os espíritos, bons, maus, ou o que fossem. A caminho, porém, desceu sobre mim um bando de pterodáctilos. Estes animais não foram extintos há milhares de anos? Pelos vistos, não. Ali estavam eles, voando e gritando, os enormes pássaros. Era o meu dia. E nada do que estava no presente pudera alguma vez ter sido imaginado como ideia de futuro.