Sonhos



Podemos acreditar na interpretação finita de um sonho como acreditamos que sabemos o que queremos das nossas vidas, ou que pessoas somos.

Dizemos: «Ah!... Este sonho!... Realmente este sonho quer dizer isto!...»

E sentimo-nos esclarecidos.

Existem até livros publicados onde se explica o significado dos sonhos, ponto por ponto, e em que se parte do princípio que todos os sonhos se referem ao futuro.

«Queda de um dente: morte de parente.»
 
Mas o que são as nossas vidas?
 
Que o sonhador se arrisque, sozinho e pela sua própria cabeça, com o intuito de interpretar um sonho, a recorrer ao método da associação livre, tal como Freud o descreve na Interpretação dos Sonhos, isso pode ser, não o equivalente a um simples cataclismo, mas a um tremor de terra de grau oito na escala de Richter, seguido de tsunami.
 
Não é exagero.

Pois existe a ideia comum de que a alegria dos homens tem um carácter universal, quando na verdade se trata de um juízo totalmente falso.

Segundo os nossos sonhos, parece que a alegria de cada um é tão pouco universal como as brincadeiras das crianças e, além disso, que as fontes da nossa alegria raramente são perfeitamente conhecidas por nós mesmos.

Vou dar o exemplo de uma criança que podia brincar durante horas com um punhado de contas coloridas e um tabuleiro.

Colocava as contas no tabuleiro, agitava-o, parava, e ficava a ver o modo como o movimento das contas ia abrandando, até que ficassem totalmente imóveis. De cada vez que repetia este jogo, as contas formavam constelações diferentes, como as estrelas no céu.

Como definir a actividade da criança?

Uma contemplação?

Uma produção de mundos?

A alegria é, por assim dizer, um mistério a desvendar.

Mas talvez não venha a ser nunca um atraente interesse social que cada um aceda à essência da sua alegria.

É possível que toda a sociedade, tal como a conhecemos, se esboroasse, se reduzisse a pó... E isso seria uma bela coisa, certamente!

Mas em lugar do que temos, o que teríamos?

A alegria é feita de pequenos momentos e de ínfimos cumes. E, como o que de mais universal existe no desejo dos homens parece ser a sua facilidade em ser capturado (aliás, como acontece também com o desejo das crianças), uma vulnerabilidade confrangedora aos mais inanes projectos de sedução, a todas as formas massivas de cobiça e rapina social (que por sua vez produz as estratégias mais caricatas, quando não mesmo vis ou criminosas, de propaganda, de política, de consumo, de domesticidade e de comércio na nossa pequena sociedade actual); o sonho parece existir como uma actividade de resistência, como um instinto anárquico.

Que fácil que é explorar o desejo dos homens!...

Foi este um dos aspectos em que Freud falhou totalmente, quando não percebeu que o sonho congrega uma actividade revolucionária. Talvez por isso seja tão angustiante ler as suas brilhantes análises, tal é a captura, o aprisionamento e a exiguidade a que ele submete esta qualidade móvel, liberta, criativa e imponderável do desejo. Apesar dos inúmeros e valiosos golpes de génio, entre os quais se conta a invenção do método de associação livre, ele reduz o desejo à satisfação e ao prazer e esquece-se de o ligar à alegria e à liberdade, ao puro jogo abstracto de poder inventar e gozar uma nova fruição. Mas que triste e monótono é o desejo que apenas corre entre a fome e a saciedade, entre a carência e a satisfação!... Que insuportável e entediante vaivém!...
 
Na verdade, os sonhos parecem afirmar-se como uma resistência a esta estereotipia do desejo. Uma resistência profunda, salutar e inclassificável, porventura como a resistência da vida contra a morte, do indivíduo contra a massa social que o pretende domar e explorar, do pensamento contra o lugar-comum, contra a inanidade.

Não há como evitar um sentimento de maravilhamento e de admiração. Que extraordinário que é o pensamento e a imaginação enquanto dormimos... Como são reais as nossas sensações e brilhantes todas as cores... Não cessamos de nos surpreender, de nos questionar. Quantos mundos existem para que nós os contemplemos? E como é que no sonho uma ideia se transforma logo em filme, directamente, sem intervalo, e se mostra em salto, em movimento, em palavras vivas e audíveis e em sensações?... Nem sequer imaginamos o que pensamos. Acontece-nos o que pensamos. Movemo-nos no que pensamos. Ah!... Que velocidades, que quedas, que trapézios, que voos fabulosos e que visões sumptuosas!... Que mundos possíveis!... E como vibra o nosso corpo e reage a nossa carne... Como se dobra e desdobra o tempo... Sentimos de um modo claro que o pensamento pensa e que nós, em relação a ele, somos apenas os humildes espectadores, os incautos, distraídos, inconscientes e inadvertidos participantes.

Quem sabe...

Quem sabe é tão fácil explorar o desejo dos homens porque eles nem conhecem o que desejam, já se esqueceram dos seus sonhos quando acordam e limitam-se durante o dia e na maior parte dos casos a ser obedientes, esforçados e a fazer o que se espera deles.