Sobre a porosidade involuntária da identidade linguística

Sonho CCXXXVIII

 
Há pessoas assim, como esponjas.
 
Mesmo sem querer, ganham logo o sotaque de quem está perto de si.
 
Numa mera conversa de circunstância, a elegante e sofisticada senhora, que fala português do Brasil, exclamou, enquanto subíamos no elevador:
 
- Que corte radical, hem?
 
(Ki cortchi radicau, hem?)
 
E logo eu, fazendo um esforço para pelo menos manter o sotaque do português europeu:
 
- Cansei!... Agora não tem trabalho nenhum mesmo... Você só penteia no banho... Chegou um dia, me olhei no espelho, tudo arrumadinho, e pensei: «Nossa!... Que pessoa é essa?...»
 
Um fenómeno surpreendente, a porosidade involuntária da identidade linguística. 

O monge e o príncipe

Sonho CCXXXVI


É verdade que em certos casos uma relação amorosa prestes a acontecer nunca chega a acontecer.
 
Estes casos são desafios permanentes à nossa capacidade especulativa.
 
A este propósito, Françoise M., sentada à mesa do café, conversava com Heinrich Hart:
 
- Você é orgulhoso e ágil como um lince, poderoso como uma ave de rapina. Eu, pelo contrário, sou altiva como um cipreste, mas humilde como a poeira dos caminhos. Como poderiam formar um par estes dois elementos tão diferentes - o monge e o príncipe?
 
Estão por inventar os seres humanos e a sociedade que tornariam possível um tal casamento.


 
 
 
MORANGOS SILVESTRES
 
 

Sobre o Imposto Verde

Sonho CCXXXV
 
 
A Françoise decidira regressar a um sítio que em tempos abandonara, um sítio onde se liam livros.
 
Estava nervosa e contente ao mesmo tempo.
 
Antes da primeira reunião geral, todos aguardavam numa espécie de sala de convívio.
 
Mas, como tinha chegado muito antes da hora, a Françoise sentou-se numa cadeira com os pés apoiados num pequeno tamborete e começou a ler.
 
De repente, alguém que se aproximou tirou o tamborete debaixo dos seus pés dando-lhe um pequeno piparote com a ponta do sapato.
 
A Françoise ficou furiosa e fez exactamente o mesmo.
 
Dando um sopapo no tamborete com a ponta do sapato, recuperou o tamborete.
 
O descarado fulminou-a com os olhos e a Françoise sentiu-se muito culpada por ser tão egoísta.
 
Mas logo começou a dialogar consigo própria:
 
«Que raio!... Agora és egoísta por teres recuperado o teu tamborete?... Era o que faltava!...»
 
E olhou o descarado com uma máxima indiferença, continuando a ler.
 
Porém, a Françoise absorveu-se de tal modo na leitura que esqueceu tudo em redor.
 
Nem deu pelas pessoas a irem para a reunião, nem pelo silêncio da sala, nem pelo tempo a passar.
 
A leitura era demasiado empolgante.
 
Quando acabou o livro, a Françoise apercebeu-se que tinha faltado a uma reunião importante e que era mais ou menos impossível deixar de ser julgada como irresponsável ou desinteressada.
 
Era até possível que viesse a ser expulsa ou recusada.
 
A Françoise sentiu-se muito abatida. Que triste que é não podermos modificar, nem a nossa espontaneidade, nem o nosso passado!...
 
Na verdade, o seu comportamento tinha uma lógica semelhante, na razão inversa, ao comportamento do governo quando decide taxar os combustíveis fósseis com um Imposto Verde.
 
Porque, se sob a capa de uma bela intenção, que é a de proteger o ambiente encarecendo o gasóleo e a gasolina, o governo arrecada uma bela maquia, pouco investindo em alternativas de transporte ou na fabricação em massa de carros eléctricos, do mesmo modo a Françoise, que tanto se entusiasmava por sítios onde liam livros, se esquecera de estar presente precisamente por estar com um livro.
 
Na verdade, um belo gesto que esconde uma acção grosseira acaba por ter uma lógica directamente inversa a um gesto infeliz que esconde uma acção valiosa.
 
Que tudo acabe por resultar numa mesma espécie de desastre - em escalas muito diferentes, obviamente - no fundo isso não é mais que a consequência comum desse famigerado destino que tão frequentemente caracteriza a incoerência e a infelicidade humana. 

 

NENÚFARES
 
 
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SEM TÍTULO
 
 

 
 
 
LINHAS DE FUGA
 
de Maria do Mar
 
 

 

 
 
ALMA DE RAPARIGA


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