O salto

Sonho CCXCIII



Estávamos naquela parte das aulas de ballet, no fim, quando o corpo está quente e maleável e fazemos saltos variados e rápidos traçando diagonais pelo comprimento completo da grande sala, uma aluna de cada vez.

Pode faltar-nos o ar, e até a força, mas nunca o entusiasmo.

E de resto há sempre, como no depósito de gasolina depois de soar o alarme, mais um pouco de ar e de força (e muito mais do que esperado, na verdade).

Desta vez, porém, em vez de começar o grand jeté com um chassé, eu lançava-me numa grande corrida e saltava no ar com tanta força que conseguia flutuar dois metros acima do chão, com as pernas em split.

O que era aquilo? Uma sensação de voltar a ser pássaro?

Quando fora afinal esse tempo - o tempo de ter sido pássaro?

Em que vida?

Estava tão embriagada com aquela alegria e o prazer de me sentir flutuar no ar, que começava a improvisar uma série de saltos totalmente inexistentes, uma mistura entre piruetas, sisonnes, glissades e fouettés, e em que me sentia, ora como se estivesse dentro de água, ora no ar, mas quase nunca na terra.

Era uma espécie de delírio.

Seria um sonho?

Que bela descoberta...

Entre a inocência e a perversidade, entre o esplendor e a dor, entre o olhar vivo do cosmos e o deserto de nenhuma atenção, há esse trilho inesperado a ser traçado - um caminho sem nome, ainda por inventar.

#5 Auto-retrato com disparo involuntário







da série "auto-retratos" (ou despedidas) -
ao tentar fotografar um título





O último segundo

Sonho CCXCII



Era uma história inaudita, mas verdadeira.

Uma engenheira, totalmente sozinha, tinha construído um foguetão com recurso a uma estratégia de crowdfunding.

O foguetão era muito giro, aos quadrados brancos e vermelhos.

A mulher montou-se nele e disparou pelo céu fora mas, como não era um grande piloto (segundo algumas opiniões), ou porque tivesse construído um foguetão demasiado potente, na altura de aterrar, aterrou com tanta força que a terra abriu uma fenda e se partiu ao meio.

Cada metade da terra desatou a rolar pelo cosmos, como duas metades de uma chávena que cai no chão e que saltitam até que a inércia se instale.

Parecia uma segunda versão em acto da expulsão do paraíso.

Não é que a mulher tivesse trincado uma maçã, mas, graças a isto, nós, os sobreviventes da humanidade, deambulávamos cada grupo por uma metade da terra rolando no universo, ao deus-dará.

No jardim do Casino Estoril, caíam grandes pedregulhos cinzentos do céu desconhecido. Não eram parecidos com nenhuma pedra que tivesse sido jamais vista à face da terra. Não sabíamos o que fossem, nem quantos minutos de vida teríamos ainda para rolar assim através do cosmos incógnito, mas, pelo sim pelo não, eu e todas as minhas crianças esgueirámo-nos para debaixo dos automóveis, para nos protegermos dos pedregulhos.

Parecia que os pedregulhos, afinal, eram leves como pedra-pomes.

Quando achei que tínhamos uma brecha, dei-lhes ordem que corressem em direcção ao Deck. As crianças desataram a correr e eu corri por último, para ajudar quem caísse, mas ninguém caiu: salvámo-nos todos.

No Deck havia duas portas - teríamos de seguir por uma delas.

Não fazia a mínima ideia de qual fosse a melhor escolha, nem tinha meios para decidir, mas, como não podíamos ficar ali, tínhamos de tentar qualquer coisa.

Se tomássemos o mau caminho, seria um doloroso e triste arrependimento o resultado. Se tomássemos o bom, quem sabe nos alegrássemos. 

Avançámos.

Talvez tivéssemos apenas uns minutos de vida. Talvez tudo explodisse no minuto seguinte. Talvez de repente toda a ordem das coisas conhecidas se revolucionasse de um modo inesperado e impensável e nós viéssemos a habitar um novo mundo... quem sabe?...

Era preciso ficar de pé e lutar até ao último segundo.

Sobre as palavras que não há

Sonho CCXCI


Do nada, num encontro de amigos, a Maria do Mar ficou apaixonada dos pés à cabeça.

Era qualquer coisa naquele rapaz, a sua magreza excessiva, os caracóis brilhantes e negros, um pouco disparatados, o rosto anguloso e medieval, os dentes tortos e os olhos brilhantes, qualquer coisa que lhe tocava como uma composição mágica ou um hieróglifo que trazia em si a promessa certa de uma máxima alegria e de um encontro transcendental, indecifrável.

Não, a Maria do Mar não podia ficar sem fazer nada perante aquele acontecimento raro e a graça daquele entusiasmo que nem sequer de dez em dez anos a visitava.

Correu pela Rua Garrett acima para saber o nome do rapaz que entretanto se despedira, mas ele era gago e tinha dificuldade em pronunciar o seu nome, o que o deixava envergonhado.

Isto só tinha o poder de a encantar ainda mais, contra tudo o que ele pudesse pensar.

Ele correu como uma criança a quem a vergonha faz fugir, e depois voltou:

- Io non mi sento solo. - era o seu nome.

- Estranho nome!... - pensou a Maria do Mar, a quem nunca passara pela cabeça que frases numa língua estrangeira pudessem servir de nome a alguém.

E desapareceu. Mas a Maria do Mar não desistiu enquanto não o reencontrou.

Descobriu que o rapaz era indiano e que ele e a sua mãe estavam à procura de uma nova casa para viver, por causa da velocidade com que agora se renovavam os contratos de arrendamento, sempre com rendas cada vez mais altas. 

A Índia moderna não tinha fama de ser gentil com as mulheres, mas a Maria do Mar, ainda assim, não quis ficar refém de um mero preconceito e foi ver com ele um espectáculo de danças tradicionais indianas.

As crianças dançavam em grandes serpentes de mãos dadas no meio da penumbra e da escuridão, enquanto as mulheres giravam com saias de fogo. 

A Maria do Mar estava maravilhada e queria dançar também, com as crianças e as mulheres.

Ninguém dançava para ser visto. Todos dançavam na semi-obscuridade de um campo aberto, numa quase escuridão perfumada pelo cheiro das ervas, do orvalho e da terra batida.

Tudo aquilo era tão fascinante que a Maria do Mar não parava de absorver e gravar tudo com os olhos, como se estivesse hipnotizada.

As orlas das saias das mulheres ardiam com chamas verdadeiras, mas elas tinham uma técnica para não se queimarem.

A Maria do Mar queria aprender, mas o rapaz estava verdadeiramente irritado com a Maria do Mar.

- Tu e esses teus livros, - dizia ele, com uma mal disfarçada impaciência - julgas concerteza que o amor que começa no estômago não passa para o coração?

Na meia luz não se viam as lágrimas nos olhos da Maria do Mar, que se levantou sem sequer dobrar o casaco.

Ela queria tanto não ter percebido nada do que fora dito, nem essas notas de impaciência naquela voz, que lhe diziam que ela já se tinha tornado insuportável, de um modo perfeitamente involuntário.

Queria tanto não sentir aquela espécie de opressão, como um laço de forca na sua garganta, mas de nada lhe servia esse desejo. Mesmo sem falarem, o pensamento dele já tinha treslido e julgado tudo o que ela pensava, sem sequer saber o que ela pensava, realmente.

Como era possível que viessem a entender-se?

Havia também aquele pequeno ódio contra o seu eixo de alegria, os livros. Podia ter sido isso ou outra coisa qualquer, talvez fazer jornalismo activista pelos direitos humanos, qualquer coisa, pequena ou grande, com que inventasse um sentido para a sua breve vida e que a mantivesse de pé, qualquer coisa com que valesse a pena viver e fazer uma pequena diferença.

E ali estava aquele pequeno ódio, como um veneno intolerável.

- Adeus. - disse a Maria do Mar. 

Mas enquanto se afastava ainda desejou com todas as suas fibras que ele quebrasse com boas palavras aquela triste coisa, que emendasse de algum modo aquele abismo e que a salvasse de uma lucidez tão crua.

Mas não houve nenhuma palavra.

A Maria do Mar tomou o caminho mais longo, à beira do mar.

O vento era frio e cortante, o ar perfumado de iodo e sal, as ondas erguendo a sua crista de espuma, no cinza brilhante e esbatido que unia o mar e o céu, sem linha de horizonte.

Que paisagem magnífica...

Aí podia caminhar-se entre o esplendor.



Sobre a culpa que frequentemente se atribui às mulheres

Sonho CCXC



Estavam todos num grande auditório, atulhado à pinha, quando um homem decidiu atacar a Maria do Mar.

O homem atirou-se à Maria do Mar e estava disposto a violá-la, mas ela desatou a gritar e a dar pontapés com a sua máxima força, até que conseguiu imobilizar o homem e metê-lo dentro de um saco.

Ele só queria o seu corpo, não queria a sua alma.

Na verdade, parecia ter alguma espécie de atraso mental.

De repente, o homem tinha ficado tão pequeno, que ela o tinha enfiado no saco das sapatilhas.

O homem era do tamanho de uma sapatilha, mas estrebuchava e dava coices dentro do saco.

A Maria do Mar entregou o saco ao seu pai, para que ele o levasse à esquadra.

Apesar de nem por sombras pensar libertá-lo, fazia-lhe impressão o sofrimento do homem dentro do saco.

Havia, entre aquela grande multidão, muitos que achavam que a responsabilidade pelo comportamento do homem era da Maria do Mar.

Porque a Maria do Mar tinha comprado umas meias de vidro demasiado baratas, que estavam rotas.

Uma relação de causa efeito que ultrapassava de um modo absolutamente radical toda a sua capacidade de raciocínio e especulação.

Tarântulas e convenções sociais

Sonho CCLXXXIX




F. de Riverday estava num pic-nic e decidiu juntar-se ao grupo das crianças.

Descobriram uma coisa muito divertida: a maneira como certos animais do parque brincavam com um buraco que havia na rede da baliza.

Os animais saltavam pelo buraco da rede em corrida, como se este fizesse parte de um circuito de obstáculos para cavalos.

Riverday lembrava-se dos seus encontros inesperados com animais, ao longo desse doloroso e malfadado Verão. 

Não se lembrava de alguma vez ter sofrido tanto, nem de nunca lhe ter doído tanto o peito e o coração, ao ponto de lhe parecer que iria adoecer.

Faz parte da natureza humana que o mais depressa possível nos esqueçamos dos sofrimentos passados.

Estava convicta de que todos esses encontros teriam um significado, mas ela não tinha meios de o descortinar.

Seria o universo em urgência a tentar transmitir-lhe alguma coisa?

À porta de casa, um coelho.

À beira do mar, uma serpente.

De novo à porta de casa, um pássaro morto.

Poisada no chão da berma da auto-estrada, uma águia, bem viva e alerta.

Pendurada do seu cabelo por um fio, uma aranha.

Era como se tocasse difusamente nas franjas de um conto encantado, e agora, no sonho, todos esses animais saltavam pelo buraco da rede.

Ela e as crianças contemplavam-nos, maravilhados, mas os adultos não percebiam a causa de tanto maravilhamento.

- O que estão para ali a fazer, especados? O que estarão a ver? - perguntavam eles.

De repente, aparecia uma funcionária do zoo, num grande alarido.

Tinha fugido uma das sete tarântulas que o zoo mantinha em exposição.

Riverday sempre detestara zoos. Depois da primeira visita, em criança, nunca mais fora capaz de lá voltar, para ver animais enjaulados.

Ficava contente pela tarântula.

No meio do silêncio geral, a F. de Riverday disse:

- Ai...

O que a deixou muito mal colocada perante o grupo, pois não era suposto que se fizesse nenhum comentário do género, muito menos dizer «Ai».

A Riverday voltou a sentir aquela velha perplexidade infantil que sempre sentira perante o comportamento de todo o tipo de massas, fossem elas as grandes massas de guerra, das classes, dos povos em marcha ou do consumo, ou fossem as pequenas massas das famílias e de outros grupos numericamente mais singelos.

Como poderiam as pessoas assim em matilha desejar as mesmas coisas, subscrever as mesmas opiniões e repetir os comportamentos uns dos outros, nessa estranha mecânica da reprodução social, que garantia, no fundo, a coesão das estruturas, mas também o seu anquilosamento?

Não há dúvida: seria sempre uma espécie de pequeno pária.

O seu instinto de rebeldia e liberdade extravasava por todos os poros.

As sapatilhas

Sonho CCLXXXVIII



Enquanto arrumava as gavetas da cómoda que viera de Macau há quase cem anos atrás, descobrira, totalmente esquecidos, vários pares de sapatilhas para dançar. 

Como pudera esquecer-se de um tal tesouro?

Havia sapatilhas mais macias que eram perfeitas para fazer meia ponta, outras que eram boas para girar e outras para escorregar. Havia ainda umas mais rijas e tesas que pareciam maravilhosas para os equilíbrios. 

Todas as sapatilhas estavam bastante sujas e gastas.

Faziam lembrar uma fotografia das sapatilhas do Nureyev, num camarim, muito estragadas.

Como pudera esquecer-se das sapatilhas, numa casa tão meticulosamente arrumada?

Como pudera esquecer-se de tantas horas da sua vida?

Havia talvez, na casa e em si, um caos que transcendia a sua consciência, de um modo profundo e irrevogável?

Seria talvez urgente tomar uma resolução, fazer qualquer coisa, inventar uma estratégia?

Inventar um novo mundo?

Dentro de si havia uma segurança que se desmoronava como terras em derrocada, como cartas dispersas no vento, para nunca mais.

Havia uma inocência que nunca mais poderia ser recuperada.

Porque há uma estranheza avassaladora quando algo aparentemente insignificante nos faz balançar entre a vida e a morte. Entre dobrar a roupa limpa e arrumá-la, nessa luta diária contra a entropia que parece querer instalar-se em tudo, subrepticiamente - ou diluir-nos na escuridão, para sempre.