Sobre a maldade, o mundo e as leis



Estávamos numa fila, parados no sinal vermelho.

A Françoise era a segunda da fila, mas, quando o sinal ficou verde, o condutor que ia à sua frente sacou de uma saqueta de tabaco e começou a enrolar um cigarro.

A Françoise pensou que o condutor estivesse distraído e apitou ao de leve, para avisar.

O homem então saiu do carro e, encostando-se ao sinal, continuou a enrolar o cigarro.

Depois de o enrolar, dedicou-se a fumá-lo, lentamente, com longas baforadas de fumo.

O sinal mudava de verde para vermelho e de vermelho para verde, enquanto a fila crescia.

Atrás estavam dois autocarros apinhados de gente que viajava de pé.

A Françoise media as suas forças com as do homem, na imaginação, e verificava que não tinha qualquer hipótese.

De resto também não era impossível que ele fosse apenas mais um desses loucos com uma arma de fogo ou uma arma branca escondida no bolso e que estivesse precisamente à espera de acender o rastilho de uma briga.

Atrás, ninguém se mexia.

Por fim, o homem cansou-se de fumar o seu cigarro e decidiu arrancar.

«Isto acontece num país que está em paz e onde há leis, tribunais e polícia de segurança pública.» - pensou a Françoise.

O esforço de imaginar como seria num país em guerra e onde, regra geral, o que se segue à violência é a impunidade, era mais desesperante para a Françoise do que deter-se na ideia de um infinito para além do cosmos, ou de um infinito para além de um infinito.




A sós com Deus

Fragmento 15


Em frente à janela, quando tomava o pequeno-almoço na madrugada escura (eram 6:00 da manhã), a minha leitura foi interrompida pelo som infinitamente delicado e suave das incontáveis gotas de água caindo sobre a estrada, sobre as casas e sobre as árvores.

Chovia suavemente e de repente, levantando a cabeça e olhando pela ampla janela dei de caras com uma paz infinita, um silêncio apenas tocado pelo som do toque dos cordões de água noutras matérias. Reflectiam-se espelhos no alcatrão negro da estrada, aqui e ali, com fulgurantes emissões de luz dourada – a luz dos candeeiros eléctricos ainda acesos na madrugada.

Através da auréola de uma das suas lâmpadas, a mais próxima da minha janela, via as linhas de água prateadas e contínuas, interrompidas quase imperceptivelmente pela velocidade da intensidade das gotas que caíam, pontilhando com cintilâncias esparsas essas finas correntezas luminosas, a tracejado. Um minúsculo insecto parecia estontear-se nessa luz, voando em elipses.

- A alegria acontece nos lugares mais inesperados. – disse uma vez Tolentino Mendonça.

É verdade. Preciso tanto destes momentos de silêncio e solidão em que tudo dorme e eu estou acordada, gozando imprevisivelmente a alegria de me encontrar a sós com Deus.


Sobre a diferença entre estar acordado e a dormir

Sonho CCIII



Julgava que tinha os cabelos compridos, mas afinal estavam muito curtos.

«Como podem estar tão curtos?»

Uma combinação entre dois espelhos mostrava-me que atrás da minha cabeça os cabelos estavam muito mais curtos do que poderia alguma vez imaginar.

«Eu que pensava que tinha os cabelos compridos, e afinal estão curtos!...»

No livro que tinha na mão, podia ler-se uma única frase:

«Se estou no meio do caos, devo elaborar uma pergunta que me salve do caos?»

Era Descartes, concerteza. Mas qual das meditações?

Não seria a primeira, essa em que se afirma que ninguém pode decidir com absoluta segurança se está a dormir ou acordado.

Também não seria a segunda, onde, depois de colocar a hipótese de um Deus enganador e malicioso, Descartes começa a duvidar da existência do corpo, do espírito e de todas as coisas que para si se apresentavam como existentes.

Descartes observou que, no meio do caos gerado pelas suas dúvidas, pelo menos sobrava o acto de duvidar.

Foi por isso que escreveu a famosa frase: «Penso, logo existo.»

Certas frases têm este destino. Adquirem ressonâncias profundas, magnéticas ou de mistério, e espalham-se pelo mundo correndo de boca em boca.

Tão frequentemente amputadas do seu meio natural, atraem ou intrigam muita gente com o que têm de improvável e exótico, como uma pena de papagaio pendurada da orelha de um urso, numa montanha gelada da Noruega.

Neste caso porém a pobre frase era só uma tábua de salvação para quem sobrou apenas a actividade de duvidar e era preciso salvar a existência, mesmo que esta fosse inteiramente passada a dormir.

Sim, não há dúvida de que o meu livro de uma única frase pertencia a Descartes, mas porquê?

Porquê Descartes - e não outro qualquer?

No meio do caos, coloca-se a hipótese de salvação, por meio de uma pergunta.

Mas pergunta-se: «Devo elaborar uma pergunta?»

No espelho também podemos contemplar os nossos corpos, enquanto fazemos amor.

A intensidade multiplica-se só porque nos olhamos do exterior, como se fôssemos outro.

O espelho traz-nos várias surpresas, cada uma num pólo oposto.

Por um lado, os cabelos curtos.

Por outro lado, o prazer multiplicado.

Da desilusão, para a orgia, para a confirmação ou para o caos, afinal - tudo passa pela mesma operação.

Um desdobramento.



A artista e o presidente

Sonho CCII



A artista compunha músicas.

Como tantos artistas, não sabia muito bem como vestir-se e, em diversas situações de convívio social, destacava-se pela inépcia.

O presidente, por seu lado, levava uma vida dissoluta, era hábil em vestir-se, em conviver de um modo superficial, e em mentiras.

Aliás, a sua vida pessoal estava repleta de tantas mentiras que uma das suas mulheres só chorava e dizia: «Adeus!...», de um modo bastante patético, quando descobria que ele tinha dois filhos desconhecidos de uma outra relação.

Era um filme.

A artista discava num antigo telefone vermelho um número, mas fazia uma pose muito artificial para a câmara de filmar, colocando o telefone vermelho ao peito.

TRRRRRRRRR!... Fazia o disco do telefone, depois de cada número.

O presidente tinha muitas cartas em cima da mesa, muitos assuntos para tratar.

Uma das suas maiores qualidades era a velocidade com que despachava os assuntos.

Ora, neste preciso momento, uma das suas obrigações era fazer um telefonema à artista, congratulado-a por ter ganhado um importante prémio de composição.

O presidente logo imediatamente pegou no telefone, enquanto olhava para a partitura vencedora daquele importante prémio internacional.

Ainda não tinha ouvido a música, e pouco percebia de partituras, mas conseguiu distinguir um dó em clave de sol, de que se lembrava, dos tempos da sua infância, por ser parecido com as imagens do planeta Saturno.

- Muitos parabéns! - disse o presidente à artista - Extraordinário, aquele dó no compasso cento e vinte e três! De resto, há muitas coisas que não compreendo na sua brilhante composição, mas não posso deixar de a congratular!

A artista estava confundida. Qual seria o dó do compasso cento e vinte e três? Para si a sua composição não obedecia a uma geografia de compassos numerados, de modo que não fazia ideia do que estaria o presidente a falar. De resto, se havia tantas coisas que o presidente não compreendia, apesar de a elogiar tão efusivamente, talvez isso não abonasse muito a seu favor.

- Muitíssimo obrigada. - respondeu a artista, bastante confundida.

- Olha! Um carro voador! - disse B., o amigo que seguia ao meu lado enquanto eu guiava o carro.

Estiquei o pescoço para poder olhar o céu, e lá estava, o carro voador.

- Não sabia que já existiam!

- Olha outro! Olha outro!

- E outro!

- Fantástico, têm piscas prateados, mas o sistema é basicamente o mesmo, já reparaste?

- Deve haver aqui perto um estacionamento especial para carros voadores.





Fragmento 2





Tolentino Mendonça, na televisão:
«A alegria acontece nos lugares mais inesperados.»





Sobre o último sobrevivente de um serviço de chá

Sonho CCI



A F. de Riverday regressara a casa dos pais, mas preferia, em vez do seu quarto, o quarto das visitas. 

Esse quarto lembrava-lhe o quarto de Andrei Gorchakov, o poeta russo no filme «Nostalghia», de Tarkovski. 

As paredes caiadas tinham aquela superfície irregular e havia muito espaço, muito espaço vazio, o que lhe agradava sumamente.

A F. de Riverday desceu as escadas e verificou que a sua avó estava viva e queria usar um vestido de seda preta que era seu quando tinha dezassete anos.

«Já não podemos usar esse vestido. Esse tempo já passou.» - dizia a Riverday.

Toda a casa estava em obras e F. de Riverday pensava, a propósito de uma máquina de afagar o chão que lançava no ar tremendas nuvens de pó que, se fosse uma mulher a ter inventado aquela máquina, concerteza teria também inventado um balão para recolher o pó e não sujar a casa.

A Riverday tinha um pires numa mão, o último sobrevivente de um antigo serviço de chá que primava pela delicada e brilhante composição de cores - uma elegante e apertada filigrana de ouro sobre um fundo branco, com minúsculos e indefinidos botões de flores vermelhas, aqui e ali.

A F. de Riverday dizia, com profunda tristeza:

«Foi bom que este serviço ficasse para mim - mas eu consegui destruí-lo quase todo.»

Ao que o seu pai, habitualmente mudo e ausente, de um modo inusitado lhe respondia:

«Conseguiste dizer um coisa positiva. Agora corta a segunda parte - e continua.»

A F. de Riverday olhava-o, perplexa.

A verdade é que tudo lhe caía das mãos, naquela casa.

Ou seria intrinsecamente desastrada - ou andava sempre uma pilha de nervos, naquele ambiente doméstico.

Como livrar-se dessa ansiedade perpétua, que não a deixava respirar?

Nada de positivo lhe ocorria.


Episódio de Minimercado

Fragmento 126



Antes do minimercado abrir, já estava esperando à porta um velhote com um aspecto inofensivo, quase inocente, mas desleixado, desarranjado. Apareceu uma outra velhota também pobremente vestida, embora muito composta, e meteu-se com ele, cheia de mofa: «Por aqui logo de manhã, hem, compadre?... O que anda você por aqui a fazer?...» E no mesmo tom, continuava: «Olha, Olha!...Não me diga que já está atravessado!...» «É o travéssio!...» Respondia ele, com um riso triste e uns laivos ironia combalida, como alguém que aprendeu a rir num extremo de miséria. «É o travéssio, é o travéssio é!...» Ecoava ela, adoptando de imediato a palavra inventada, piscando os olhos como uma mãe a uma marotice de criança. «E a menina, o que faz por aqui?» Retorquiu o velhote. «Ora!...» Respondeu a velhota matreira. «O mesmo que você!... O que é que havia de ser?» E acrescentou, rindo: «A sede é muita!...» 

«Eu já venho de Cascais.» Confessou-se o velhote. «Já me levantei há muito tempo.» E ela, sempre a rir: «Eu hei-de contar à sua senhora!... Eu hei-de dizer-lhe das suas andanças!...» E lá se misturaram os dois pelos corredores, rindo com aquela seca e dura arte de vencer o desespero. O diálogo quase em gritos que ninguém entende, mais essa angústia subtilmente encoberta de esperar à porta de um minimercado para poder comprar umas garrafas de vinho. Só a mim que ali estava sem que dessem por isso parecia doer aquela cumplicidade condoída, vendo passar os dois velhotes que formavam um par na elegância combalida da sua mútua ironia.