Tché

 Sonho CCCIX

O patriarca de uma família que em tempos se tornara ilustre pelos seus músicos e intelectuais mostrava-se profundamente desapontado com grande parte da sua descendência. "Porquê?" - havia quem lhe perguntasse. "A culpa é do tché." - dizia ele. Eis uma palavra que nunca ouvira em toda a minha vida. "O tché" - dizia ele - "é o medo português." "O medo português?" Eis as coisas em que quase chegando à segunda metade da vida se desconhecem em absoluto." - pensava eu. "O tché é o medo português de não ser igual aos outros." - esclarecia o patriarca. Medo de não usar a roupa certa, as palavras certas ou a atitude certa e assim ser desprezado ou olhado de lado pela maioria do grupo, neste caso, pela família. "Ai... como me desgosta tudo isto... por que raio vim chegar a este papel, patriarca? Eu só me casei... e foi por amor... e agora estou cheio de filhos... todos eles cheios de tché." Realmente, parecia-me que o pobre homem estava cheio de razão. Haverá lá faísca de criatividade ou sentido crítico que possa sobreviver ao tché? Mas também há aqueles que querem ser diferentes de todos. E não é  precisamente a mesma coisa, mas ao contrário? Como a anorexia e a bulimia. Ou o esbanjamento e a avareza. Há sempre aquelas coisas que sendo o contrário umas das outras são precisamente o mesmo - e nisso opera a ilusão de muitos.







Vantagens e desvantagens de se empielar

Sonho CCCVIII


Afinal, Anaïs D. nunca tinha parado de beber. Apanhara uma grande piela com vodka e ia em alta velocidade pela A5, com o seu pai ao lado, muito satisfeito. "Afinal, que vantagem existe para um alcoólico em não beber? Não é tão bom desligar deste mundo? Deixar tudo para trás das costas e sobrevoar a dor como um surfista?" Anaïs não conseguia abrandar a velocidade do carro e já tinha passado para o sentido contrário, mas lá se ia safando. Não conseguia ir a menos de cento e quarenta, mas, entre morrer dessa maneira ou de outra, vá-se lá perceber como, não via grande diferença.




A migração intergaláctica

Sonho CCCVII


Estávamos no meio da marginal, de noite, uma multidão, entre conhecidos e desconhecidos. O que estávamos ali a fazer? Não sei. Pelo vidro do meu carro podia ver o edifício do Hotel Palácio do Estoril a voar pelo céu fora. "Extraordinário." - pensava eu. "Estas são as novas naves espaciais?" Janelas. Desenho oitocentista. Ao meu lado estava um miúdo com o avô e a avó, mas os seus corpos eram muito lisos e ligeiramente brilhantes e vagamente faziam pensar em desenhos japoneses. Perguntava-me se eles seriam deste mundo e rapidamente descobri que não, que eram extraterrestres. D. também tinha emigrado para Marte e agora o seu corpo tinha aquele aspecto liso e vagamente brilhante, bem acabado. "Não é demasiado desolador viver em Marte? Não sentes muita falta do céu azul, das oliveiras, dos ciprestes e dos telhados vermelhos das casinhas?" Ele mostrava-me uma fotografia de Marte, um deserto desolado de poeiras e crateras. "Não." - respondia ele. "Vemos coisas em que antes não reparávamos. E essas coisas são muito belas. Sublimes, na verdade." Valeria a pena emigrar para tão longe? "Estamos em paz e aprendemos a contemplar os neutrões entre as frestas dos átomos. O nosso olho afinou-se." Nada mais precioso que a paz. E os corpos deles respiravam estranha beleza.