Corpo - matéria e fibra de universo





Corpo – matéria e fibra de universo,
átomos, linhas finas e partículas,
abismos e clareiras infinitas,
resto de estrela ou de poeira em verso.

Ser tocado não é só ser tocado,
mas é ser abalado noutro espaço,
imponderável, subtil e sem traço –
coisa dormindo em sono abismado.

Nem carne, nem espectro, nem coração.
Que cordas ressoam quando te oiço?
Conheço de cor as notas que acordam

as pradarias por dentro do corpo.
Que desertos? Que infinitos aguardam
ser tocados por dentro como em esboço?

Soneto #4




Se uma paixão dissesse a sua causa
e fosse, em vez de um triste hieróglifo,
mais simples e transparente que um grito -
certo é que o caos nunca teria casa.

Nem casa, nem fulgor, nem velocidade
para o caos que faz voar em cascata
em rodopio de folhas e de cartas
o sentido das coisas estabelecidas.

Nada. Nada. Desse rastilho ardente
e que faz vibrar as cordas sombrias
de um corpo rarefeito e mais pungente

nada sobraria. Nem mesmo angústia,
nem mesmo pó, queda ou voo ascendente,
nem sombra de mundo - breve luz fria.


Soneto #3



Quem nos dera que o amor não doesse
mas apenas florisse, tão suave
como diáfano de cor ou frase
que em vítrea Primavera jubilasse.

Alegria tão breve e que demora -
onde estás?... Onde estão esses planaltos
do prazer fluído e sem sobressaltos
e do indizível que não tem hora?

Tão estranho amor que dói e acontece
 e sem razão suaviza os caminhos.
Estepe de Verão. Tapete que floresce.

Brandura dos vazios desaparecidos.
A suavidade e o velho deserto
coexistem, absurdos e floridos.

Se pudéssemos avançar no tempo das nossas vidas e, quem sabe, usar um chapelinho com véu


Anaïs D. conhecera um rapaz simpático, que parecia muito encantado com a sua presença. Anaïs observava os seus traços finos e agradáveis, o seu ar distinto, e pensava: "Era tão bom que me apaixonasse!..." Estava cansada de viver intermitentemente o mesmo amor impossível ao longo de vinte anos, de um modo por vezes inconsciente, outras involuntário. Mas nada. O seu coração não vibrava. "Que estranho órgão, este!..." Entrava na casa desse rapaz, que era muito pobre. A sua casa tinha apenas duas divisões e nenhuma janela. Numa das divisões estava a sua cama e na outra a cama dos pais que tinham tido recentemente um outro bebé. Anaïs não dizia nada, mas pensava nas condições duras em que vivem tantas famílias. "Uma vantagem desta crise é que os preços das casas pelo menos vão baixar." - comentou. Era um comentário bastante infeliz, mas os preços das casas tinham-se tornado escandalosos. O rapaz olhou para ela como se estivesse a falar numa língua estrangeira. Porque, sim, hoje em dia para um certo senso-comum parece natural que um gang de assaltantes de bancos à pistola seja preso, mas não parece natural que haja regulamentação dos preços no mercado. Como se para o senso-comum a natureza da flutuação dos preços nos mercados fosse e tivesse de ser intrinsecamente fora da lei (como o estado do tempo), quando na verdade essa é apenas uma conquista do liberalismo económico, sustentada e defendida por certos interesses e actos de fé. "Mas os preços não têm de ser como os dias de sol e de chuva e andar ao sabor de regras não humanas." - disse Anaïs D., enquanto entravam os dois num centro comercial que tinha um chão tão escorregadio que dava para patinar com os próprios sapatos. Era fantástico. Começaram a patinar. Toda a gente patinava por ali. Às duas por três a Anaïs caiu de rabo e foi a patinar de rabo no chão até chegar a uma balaustrada de onde caíam muitas pessoas, por não conseguirem controlar bem a velocidade da patinagem. Viu uma senhora a dar uma grande cambalhota no ar e a cair. Mas em baixo havia uma corrente de águas transparentes com muitas cascatas onde circulavam equipas de pronto-socorro em motas de água, dado o elevado número de pessoas que ali caíam. Também havia outras equipas de desinfecção das águas, com barcos munidos de mangueiras. "Muito bem organizado." - pensava Anaïs que entretanto com a velocidade que ganhara também levantara voo sobre a balaustrada e caíra. Anaïs nadou durante algum tempo nas águas transparentes até que chegou a um local seco onde se pôs de pé. A seu lado estava uma velhota muito aprumada, com um chapelinho de véu e uma expressão tão inteligente e imperscrutável como a da rainha de Inglaterra. "Nem sequer a maleta lhe caiu." - pensou Anaïs, observando a maleta preta que trazia no braço. De repente, Anaïs D. apercebeu-se que à frente de ambas se aproximava uma onda enorme. "Aaaaah!... Aaaaaah!..." - gritou Anaïs, enquanto a velhota permanecia imperturbável. A onda chegou, mas não era mais que uns respingos, uns respinguitos muito suaves. "Era só isto?... Era só isto?..." - repetia Anaïs, perplexa. A velhota permanecia imperturbável, com o seu chapéuzinho e a maleta. Não há dúvida de que estavam as duas lado a lado, mas a segunda levava um grande avanço.