Sobre o mar e a morte

Sonho CCXLIII


Era um dia de tempestade.
 
O mar estava revolto.
 
O hotel tinha vários andares, alguns por baixo do mar e outros sobre o mar.
 
Os andares por baixo do mar tinham vista sobre o fundo do mar e os andares sobre o mar tinham vista sobre o mar.
 
A Maria do Mar não queria dormir num quarto por baixo do mar.
 
Tinha medo das ondas, das tempestades e dos trovões.
 
Os quartos que tinham vista sobre o mar estavam degradados e por isso era necessário pintar todas as portas.
 
- Eu preciso de um litro de tinta. - disse o amigo da Maria do Mar.
 
- Eu preciso de setenta mililitros de tinta. - disse a Maria do Mar.
 
- Isso é pouco. - disse o amigo da Maria do Mar - O que vais pintar com setenta mililitros de tinta?
 
A Maria do Mar tinha horror ao desperdício. Na verdade, pensava esticar a tinta. Ficava doente com a ideia de que podia sobrar tinta e que então teriam de deitar fora o resto da tinta.
 
- É melhor pagarmos a alguém para pintar as portas. - disse a Maria do Mar.
 
- Assim aproveitamos o tempo para visitar os nossos mortos no cemitério. É uma forma melhor de passar o tempo. Muito melhor do que passar o tempo a pintar portas.
 
Sentar-se-iam à beira das campas, ainda que chovesse.

Em silêncio, mas falando interiormente, sem que ninguém de fora desse por isso.
 
 

Sobre a lingerie e o assassino

Sonho CCXLII

 
Ainda era Inverno, mas estava um belo dia.
 
Inspirada pelo sol, a Maria do Mar decidira tirar a roupa e caminhar pela areia na beira-mar, entre os rochedos, chapinhando alegremente nas poças.
 
Inesperadamente, deparou-se com um grupo de adolescentes que tinham tido uma ideia semelhante, mas que estavam adequadamente vestidos com fatos de banho e bikinis.
 
Convencera-se erradamente de que ninguém teria a mesma ideia, e agora ali estava ela, de cuecas e soutien, sujeita à reprovação de um grupo de adolescentes.
 
Apesar de considerar que havia muitos argumentos a favor de uma total indiferença no que diz respeito a estas peculiaridades esporádicas da nossa indumentária, também considerava que a discrição nestes casos é uma virtude que não causa dano cultivar.
 
Mas o pior foi quando a maré começou a subir e a Maria do Mar se viu na iminência de perder a sua roupa e ter de andar na via pública naqueles trajes. Já o anterior problema lhe parecia uma ninharia, comparado com esse, quando deu por si sentada numa confortável poltrona de cinema a ver um filme.
 
Era uma mulher que tinha de matar rapidamente um homem, por uma questão de vida ou de morte.
 
A mulher erguia um machado e enterrava-o no estômago de um homem que estava de costas para nós e de lado para ela, sem que se visse o rosto.
 
Quando o homem voltou o rosto, ela percebeu que tinha matado o amor da sua vida.
 
- Shhhhh.... - Disse ele, com o dedo indicador em frente da boca, como quem pede silêncio.
 
Afinal a Maria do Mar não vira bem, o machado estava enterrado no topo da cabeça do homem.
 
De revólver em riste, o homem preparava-se para disparar sobre o verdadeiro assassino.
 
No rosto da mulher podia-se contemplar o horror de quem comete um crime que não tem reparação possível.
 
Iria ela sobreviver?
 
O homem disse ainda mais duas vezes:
 
- Shhhhh..... - inclinando-se suavemente para a mulher.
 
Era talvez como um desses animais a quem cortam a cabeça e que andam durante algum tempo de pé, como se não fossem morrer.
 
O homem apontou o revólver e os braços não lhe tremeram, no momento em que disparou.