Sobre as dificuldades de aprendizagem e a metempsicose

Sonho CCLXXV

A Maria do Mar sonhara que, com um dos amores mais incompreensíveis e intermitentes, ao longo da sua vida, tivera, não três, mas cinco séries de encontros.

No sonho pudera ver com absoluta nitidez as portas e os corredores das casas onde se tinham encontrado, uma no Largo de São Carlos, outra na Rua da Misericórdia, em Lisboa.

Vira as escadas de madeira, os tapetes, os canapés, os sofás, as janelas, os corredores antigos e apertados e as camas onde se tinham deitado. Vira também aquela qualidade única da luz da manhã e a suave penumbra dos corredores, por onde tropeçavam, abraçados.

Ao que parecia, também nesses encontros se lançavam nos braços um do outro como se não houvesse ontem nem amanhã e com a mesma urgência em despir-se.

A nitidez do sonho fora tal que a Maria do Mar acordara com a sensação de que essas eram memórias da sua vida, memórias que teria esquecido de um modo involuntário, como alguém que tivesse estado alcoolizado de um modo muito grave.

Demorou ainda algum tempo a equacionar que tudo não passava de um sonho.

«Deve ser por causa destas experiências que criaram as teorias da metempsicose.» - pensou a Maria do Mar.

Porém, ao observar que essas casas oitocentistas mais pareciam arrancadas de um romance do Eça, foi assaltada por aquela feroz mistura de ironia e humor que sempre a tomava de imprevisto, sem nenhuma espécie de deliberação.

Porque, se ao senso comum é agradável fantasiar nos pressupostos destas teorias uma espécie de progresso que serve, à laia de consolação, como apanágio da felicidade moral, a Maria do Mar tudo o que percebia era que, talvez como aqueles alunos cujas dificuldades de aprendizagem atingem o ponto da exasperação, o seu progresso moral, espiritual, ou fosse o que fosse, teria sido, de uma vida para a outra, pouco mais que nulo.

Sobre a angústia que pode causar a aplicação rigorosa do princípio da indeterminação nas nossas vidas

Sonho CCLXXIV


Anaïs D. cometera a imprudência de se apaixonar de novo por um antigo amor.
Passado um longo intervalo de silêncio, teve a alegria de receber uma mensagem, só que não conseguiu perceber o significado do que estava escrito.
Era um desses casos comuns em que as perguntas são inúteis.
Anaïs D. olhou para o céu e viu um conjunto de lustres de cristais que planavam entre as nuvens, como se fossem discos voadores.
«Então agora as coisas são assim?...» - interrogou-se Anaïs. - «Existem coisas destas a voar pelo céu?...»
Viu também um enorme rochedo flutuante que era exactamente igual ao daqueles famosos quadros de Magritte, com a diferença que, no interior, anichada numa espécie de gruta, estava uma maravilhosa cidade iluminada que era tão bela como as luzes ao longe quando guiamos na autoestrada ao lusco-fusco, com aquela incrível qualidade suave e leitosa, transparente e difusa, como um pico máximo da sensualidade possível no mundo.
«Como é que havemos de despedir-nos desta vida, se nos são dadas a ver estas coisas?»
Anaïs D. elaborava teorias que respondessem às suas perguntas, como um cientista que tentasse compreender a origem da matéria, ou um filósofo que tentasse destrinçar o sentido da vida.
Porém, perante todas essas teorias que porventura pudessem trazer-lhe um pequeno grão de alegria, tudo o que podia realmente dizer era: «Não sei.»
Que fazer?
Anaïs D., como todos a quem a lucidez varre, sabia que nada se faz quando não se sabe o que fazer.