Sobre a importância de andar ao contrário do trânsito

Sonho CCLIV


A Françoise estava de férias na casa de praia da sua melhor amiga, que acabara de comprar legumes frescos na praça.
 
A Françoise pegou nas cenouras e observou que estavam enroladas em forma de crepes e que tinham, como os alhos franceses, muita terra lá dentro.
 
Nunca vira nada assim.
 
Que faria com aqueles legumes?
 
Ocorreu-lhe que poderia gratiná-los no forno com queijo e molho branco e que ficariam certamente sublimes e deliciosos, assim enrolados em forma de crepe.
 
Conforme a Françoise lavava as cenouras, porém, saltavam moedas de euro.
 
Tão pouco que tinham dado por aqueles legumes, comparado com o que tinham lá dentro.
 
A Françoise somou nove euros.
 
Entretanto, a mãe da sua amiga dizia:
 
- Para virem para cá é melhor virem ao contrário do trânsito.
 
É sempre melhor andar ao contrário do trânsito e, de preferência, ao avesso de modas e contentar-se com o essencial.
 
Quem madruga sempre encontra as estradas vazias e o canto dos pássaros.
 
E nas praias apenas o rasto das gaivotas.
 
Nos sinais de trânsito, como nas flores - Deus. 

Sobre a necessidade de inventar uma nova relação com a consciência

Sonho CCLIII


A Maria do Mar era empregada doméstica numa grande casa onde havia muitas coisas para fazer.
 
Todos os dias de manhã a Maria do Mar se levantava para trabalhar e ganhar o seu sustento, durante muitas horas seguidas.
 
Quando chegava, cruzava-se com a patroa que também saia para o seu trabalho.
 
A patroa não era simpática. Vestia-se de um modo extremamente elegante e conservador, com peças caras e bem cortadas, quase sempre assinadas.
 
Pelo contrário, a Maria do Mar levava sempre um pormenor de indumentária extravagante.
 
A patroa detinha o olhar com uma expressão de tal modo crítica e analítica nesses pormenores da indumentária da Maria do Mar, que era impossível não depreender o que estaria a pensar.
 
Ou era um lenço, ou um chapéu, ou uns sapatos, ou um vestido de veludo.
 
Era um modo de a Maria do Mar tentar não pertencer a lado nenhum.
 
Dentro de casa, a Maria do Mar tinha por hábito fazer planos para se embebedar.
 
Desta vez, colocara mais de um litro de gin puro dentro de um jarro de água, para disfarçar, mas, ao invés do que tinha previsto, a casa estava cheia de gente.
 
Era a avó, as crianças, os amigos das crianças, o cão e o gato e com certeza ainda mais gente.
 
Todos estavam em casa, andando de um lado para o outro.
 
A avó não percebia porque é que a Maria do Mar limpava as casas de banho com um jarro de água poisado no chão.
 
A Maria do Mar estava numa grande angústia, que não confessava a ninguém.
 
À vinda cruzara-se com um animal abandonado, magro e com o pelo todo sujo, que passara de fugida.
 
Esse animal deixara-lhe dentro do peito tudo aquilo que mais a aterrorizava.
 
A morte, a invalidez, a penúria, a dor, o absurdo, a ausência de Deus e a carne.
 
A Maria do Mar não sabia como viver.
 
Como é que se pode viver com a lembrança de tudo o que se passa no mundo, com o sofrimento dos animais e dos homens, mesmo quando nós não sofremos?

Tudo isso era demasiado para o que conseguia suportar.

Era uma sensação avassaladora, como se fosse submergida por uma avalanche.

Quase não conseguia respirar.
 
Tinha de limpar toda a casa muito bem, muitíssimo bem.
 
Isso deixá-la-ia, pelo menos, aliviada.
 
Tinha de encher o corpo todo de gin, para conseguir respirar um pouco.
 
Pois, sem ser o álcool e o alívio do dever cumprido, que outros modos existiriam, inéditos, para se relacionar com a consciência? 

Nos sonhos a actividade do cálculo não parece tão profícua como na vigília

Sonho CCLII


A Maria do Mar guiava em alta velocidade enquanto falava com a mãe no auricular.
 
A autoestrada, porém, ao invés de continuar após uma determinada curva, como seria suposto, interrompia-se num abismo.
 
Era um abismo com milhares de metros de altura.

O seu carro voava sobre um imenso vale, em queda livre.
 
A Maria do Mar considerou que não tinha tempo para grandes explicações, mesmo estando ao telefone e ainda com os segundos do tempo restante de uma queda tão longa.
 
Calculou que, de uma queda de tantos milhares de metros, seria impossível sair viva, e disse:
 
- Mãe, morri. Mas fica sabendo que te amo.
 
Seguiu-se um intervalo de total inconsciência, pois a Maria do Mar não sentiu o carro a bater, nem qualquer espécie de dor, mas, passado algum tempo, deu por si, incólume, a andar de um lado para o outro num sítio que nada tinha a ver com o abismo onde caíra.

A Maria do Mar encontrou o seu irmão que chorava, dizendo:

- Nunca imaginei que fosse tão difícil ser honesto consigo mesmo.
 
- Ah!... - disse-lhe a mãe, quando deu de caras consigo. - Eu sabia que estavas a exagerar!...

- É uma prova para todos os minutos das nossas vidas. - disse a Maria do Mar ao seu irmão.
 
A Maria do Mar ficou em silêncio, meditando na dificuldade do esforço de ser exacto consigo mesmo, por um lado, e, por outro, no dever e na necessidade de dizer a verdade quando certas explicações não merecem nem podem ser dadas.

A casa e o mundo

Sonho CCLI


Era preciso acolher as pessoas, porque muitas pessoas estavam sem casa.
 
A guerra tinha tirado a casa a muitas pessoas.
 
Observava que a minha casa tinha umas portas que nunca abrira.
 
Havia afinal muitos mais quartos na minha casa.
 
Nesses quartos havia outras portas que davam para outros quartos e nos outros quartos por sua vez havia mais portas que davam para outros quartos.
 
Nunca mais acabava!
 
Podia acolher a Dona Maria José e o Senhor Virgílio, que estavam reformados mas que ainda cuidavam da limpeza do prédio, a Dona Maria Idalina, médica, o Senhor João, que era porteiro no colégio, a Adélia, a Rosarinho, funcionárias de limpeza, a Esmeralda que cuidava dos coelhitos no pátio para as crianças e todos os que precisassem de casa.
 
Havia espaço para toda a gente!
 
Esses quartos estavam cheios de pó, e cada um teria de os limpar.
 
Como é que, sozinho, poderia limpar tantos quartos?
 
Maravilhado, descobria que uma das portas dava para um grande jardim, um jardim no meio de um vale à beira de um lago e ao longe via-se uma floresta e o pico gelado de uma montanha nevada.
 
«Meu Deus, tudo isto dentro da minha casa, e eu não sabia!...»
 
Havia muitas outras portas fechadas que não queria abrir, pelo menos imediatamente.
 
Ter essas portas por abrir aumentava a minha vontade de existir, por um lado, e uma visão empolgante e aventurosa do futuro, por outro.