Milhões


Era uma vez um homem muito forte, mas sem princípios. Tinha porém muito poder, muita força e, além disso, uma grande máquina de destruição. O homem abusava desse poder dentro da sua própria casa e os vizinhos sabiam disso. Mas quem interfere na casa dos outros? Já diz o velho ditado popular: entre marido e mulher não se mete a colher. E assim vai também a ordem do mundo, enquanto ardem os países, como casas alheias. Cada qual com seus tribunais, cada qual com suas leis e seus juízes. E onde está o bem e o mal? Onde está o limite do intolerável? No outro dia, o homem lançou-se sobre uma casa. Tomou tudo, destruiu tudo. Mas ninguém fez nada, porque ele era muito forte. Uma casa é apenas uma casa, que se poderá fazer? Antes uma casa só do que mais casas ainda, mais ainda as casas de quem interferisse. No outro dia, o homem lançou-se sobre uma aldeia, pegou-lhe fogo e ardeu tudo, mas ninguém fez nada, porque o homem era tão forte, podia ainda irritar-se e usar a grande máquina de destruição que tinha nas mãos. Das suas janelas, os vizinhos das outras aldeias ficaram a ver os outros a arder dentro das suas casas. Ouviram os gritos das mulheres e das crianças. Souberam que os velhos se arrastavam. Mandaram-lhes pão e sapatos. Os mais generosos abriram as portas da sua casa. E muitos viraram a cara para não ver, porque era insuportável. Quase todos comeram os corações. E continuaram as suas vidas, conforme podiam. No outro dia, o homem lançou-se sobre uma cidade. E assim foi, dia após dia, cidade após cidade. Ardiam casas e casas. Hospitais, teatros, ruas, fábricas, pontes, portos, campos e estradas. Não era uma casa, nem uma família. Milhões, milhões, milhões. E o que são milhões? Já não sabemos o que são milhões? Cada criança na fronteira com a sua roupita e um peluche nas pequenas mãos, na temperatura gélida, cada criança é só uma criança. E milhões de crianças? Cada mãe só uma mãe. E milhões? Se Hitler tivesse tido poder nuclear, isso teria sido argumento para não agir em nome da justiça e da defesa da inocência, perante a catástrofe humanitária do holocausto? Até quando e a que preço imperará a lei da força no mundo e poderá ser justificada a nossa inacção, com os argumentos da "sensatez"?