O pecado original

Sonho CCCIII

Isabella Roosevelt e Christie Mary eram católicas praticantes. Frequentavam a missa com regularidade e tinham comprado o último livro do Papa Francisco, A vida depois da pandemia. Anaïs D. gostava de entrar nas igrejas desertas e de se sentar lá dentro a olhar para a luz e a pensar e por vezes talvez se pudesse dizer que rezava ou que entabulasse um solilóquio com um deus desconhecido ou com um génio submerso nas trevas de si mesma, quem sabe? Nunca pudera entender a divina trindade, nem nenhum dos mistérios que lhe propunham. Nem mesmo em criança fora capaz de entender a pombinha, nem que as mulheres não pudessem ser padres. Não entendia que deus fosse pai em vez de mãe, ou que fosse alguma dessas coisas. Amava a história e a figura de Cristo, mas não tolerava nem compreendia a crucificação. Causava-lhe uma tristeza mais do que infinita que um homem ou um deus tivesse de morrer numa cruz para salvar os outros. Não entendia a abstinência sexual como forma de castidade. E então a sensualidade não é uma celebração? Talvez a coisa que entendesse melhor fosse aquele ritual estranho, mas sensual, de fazer parte do corpo e do sangue de deus, comendo-o. Mas causava-lhe uma angústia rasteira e malsã aquela culpa que vinha de Moisés, do velho Testamento. Não farás, não farás, não farás. Jesus trazia-lhe um "sim," nos seus dois únicos mandamentos. Ama os outros como a ti mesmo e Deus acima de todas as coisas. E bastava. Tinha tanta pena de não poder rezar em conjunto. Da sua fé poderia talvez dizer-se que era anárquica. Com dificuldade a comunicava, de tão fora de tudo que estava. Isabella Roosevelt tinha comprado um belíssimo guarda-chuva que se libertava automaticamente da água da chuva de maneira a não pingar o chão da casa. Anaïs D. considerou que esse artefacto era tão interessante que tinha de adquirir rapidamente um igual. Mas quando viu o trabalho que dava colocar as doze varetas do guarda-chuva em posição para que não pingasse a água no chão da casa, reconsiderou. Não achou que o resultado da equação entre o esforço e o resultado valesse o investimento. Mais simples era deixar o guarda-chuva à porta, a secar. Christie Mary, por seu lado, relatava que o pecado original fora cometido num cacilheiro a caminho de Cacilhas. E que o castigo atribuído à mulher consistira em obrigá-la a andar de cá para lá, entre as duas margens do Tejo, infindáveis vezes e pagando do seu bolso todas essas viagens inúteis. Que maldade!... - pensava Anaïs. Não basta a vida caótica e incompreensível. Não basta o infinito e o nada. Não basta a deriva. Não basta este profundo desamparo de existir. É preciso ainda castigar os frágeis seres humanos e mais ainda as mulheres por terem provado uma maçã.




Certas incógnitas nunca encontram solução

Sonho CCCII

Anaïs D. foi dar um passeio com Mikhail Ivanovich, Misha, e não resistiu a fazer um jogo de sedução um pouco infantil, na verdade, talvez demasiado infantil. Anaïs pendurou-se de um muro e pediu a Misha para vir buscá-la, mas Misha não foi. Misha amuou e sentou-se num degrau do passeio com os joelhos ao léu, por causa dos calções de Verão. "Que parvo!..." - pensava Anaïs. "Era uma maneira tão fácil de me pegar ao colo... e depois sabia-se lá o que podia acontecer..." Um casal de velhotes passeava por ali com a neta pequena, que devia ter nove anos. Eles perceberam de imediato a situação e olhavam de esguelha para Mikhail, sem disfarçar um certo dó. "E agora como é que saio daqui?..." - pensava Anaïs. Talvez pudesse saltar, mas ainda era um bom bocado. "Já me meti em sarilhos." Os velhotes mandaram a neta. Era uma miúda franzina, mas desempoeirada e esperta. Logo arranjou maneira de desenrascar a pobre Anaïs, a quem este estilo de planos de um modo geral saía sempre gorado, sem que chegasse nunca a perceber porquê.


A visita do médico



 Sonho CCCI

Com o uso da máscara, por causa da pandemia, Anaïs D. tivera um grave problema de pele no rosto. A reacção fora tão violenta que o seu rosto ficara em sangue. Mas o médico, um senhor muito perspicaz, fora capaz de a curar com uma simples observação, um antibiótico e algumas recomendações. A. usava agora mais a viseira que a máscara, sempre que possível. Passados alguns dias, o médico viera visitá-la a casa, para ver se estava tudo bem. Recuperar um rosto não é coisa de somenos. Anaïs sentia-se profundamente agradecida e reparou de repente que o médico era um homem muito interessante. Sentiu um desejo enorme de lhe lançar os braços ao pescoço e de o beijar, mas como é que se faz uma coisa dessas? «Você é um médico fantástico... e ainda por cima veio ver-me a casa... não sei como lhe agradecer!...» Já na saída, tudo lhe caía em cima da cabeça, ao médico. Eram os livros de uma estante que estava em cima da porta, era o bengaleiro. Os dois riam como dois palermas, porque era tão cómico. «Parece que temos qualquer coisa a resolver!...» - exclamou Anaïs. Mas se ficou ou não resolvido não se soube pelo sonho.