Carros e pilecas


A minha mãe agora tinha um Porsche descapotável que queria a toda a força que eu conduzisse, só para dar uma voltinha. Mas eu não queria conduzir o Porsche, preferia de longe a minha pileca. A minha mãe porém insistia e dizia-me que eu não podia continuar pela vida fora sempre com o mesmo temperamento tão rebelde. Há um limite para a extravagância e para a rebeldia, dizia ela. Qual é o problema de dar um voltinha, ir até ao Guincho e voltar? Um belo passeio, só isso, e sempre ficas a saber o que é conduzir um verdadeiro carro. Para minha desgraça e contra a voz da minha intuição, lá acedi a dar uma voltinha no Porsche, esse símbolo de tudo que desprezava, só para fazer a vontade à minha querida mãe, que já tanto sofrera por causa desse feitio intratável, segundo o descrevem. Pois não é que me estampei mesmo com o Porsche? Eu que nunca tivera um acidente com a minha querida pileca, em quinze anos! Que infelicidade. A vã vaidade e acima de tudo a complacência, contra a intuição, nunca deixam de dar os piores resultados.


Suportar os privilégios


Estava de férias numa casa agradável, na Riviera, que tinha um belo piano de cauda onde se podia tocar. Tocava ali muitas horas e como gostava tanto de lá estar, decidia passar lá mais uns dias. Saía e, quando regressava, podia ver que fora tudo impecavelmente limpo. A casa na verdade tinha muitos mais quartos do que aqueles que precisava. As camas impecavelmente feitas estavam abertas com um uma pequena dobra, familiar, acolhedora e convidativa. Cheirava tudo a lavado e havia nos pormenores sobriedade, requinte, delicadeza e um bom-gosto invulgar e agradável. Porém, o velho piano de cauda tinha desaparecido e, no seu lugar, estava um outro instrumento musical. Se fosse um clavicórdio, como parecia, valeria a pena passar ali mais uns dias. Mas era um daqueles pianos para crianças, muito maus, que dizia Kinder Piano e cujas teclas produziam um som horrível - tléc, tléc, tléc. Com grande desapontamento, comecei a explorar melhor a casa, coisa que ainda não fizera, apesar dos dias agradáveis que lá passara. Não precisava daquele espaço todo, nem de tantas salas e camas, nada. No fim da casa que descia em patamares brancos e arejados por uma espécie de encosta  solarenga, estava um buraco, um exíguo buraco encarvoado onde vivia uma família com quatro crianças, seminuas, esfomeadas, sujas e descalças. Fiquei a olhar para aquilo em estado de choque. Parecia um quadro da revolução industrial. A senhora era quem limpava a casa, e eu dizia-lhe: "Não preciso daqueles quartos." "Ai." - suspirava ela. "A nós bem que nos davam jeito!..." Nada daquilo era meu, para que o pudesse oferecer, mas de repente senti uma vergonha horrível por dormir naquelas camas de suaves colchões de penas e macios lençóis de linho bordados, com aquelas pessoas, ali, a sobreviver em buracos fuliginosos. Não ia conseguir gozar nem mais um dia de férias, todo o meu prazer se fora. Alastrava em mim um nojo de todas essas coisas confortáveis e finas, paredes meias com tanta penúria. Como se vive do lado da abundância, com a miséria dos outros marcada a ferro na alma?

Sobre o esforço que implica voar


Afinal, éramos santos e podíamos voar, mas, apesar da nossa santidade, voar não era uma coisa fácil. Tínhamos por dentro uma espécie de motor que nem sempre funcionava. Esse motor fazia lembrar aqueles carros que quando não arrancam têm de ser empurrados. Assim era. Por cima da cidade em ruínas, por cima das casas em cinzas, nós voávamos, talvez para nos salvar. Salvar do quê?... Dos erros e de tantas tentativas goradas de alegria?... De sermos menos que essa promessa com que chegáramos à vida?... Voávamos com esforço, correndo com dor e um aperto na garganta, para tomar balanço. No meio da devastação, as minhas vestes eram longas, brilhantes, brancas e azuis, entre o céu e as nuvens, as minhas roupas eram tão suaves, brilhantes e fantásticas como as túnicas dos ícones que por vezes se vèem nos templos.




Trégua


Tinha dois animalzitos na mala, muito pequenos. Que animais seriam? Pareciam ser daqueles que as crianças adoram com paixão, desvelo e alegria. Gatitos, coelhos, ratinhos da Índia? Não tinha maneira de ver porque atravessava um enorme abismo, numa ponte. Mas não era uma dessas pontes antigas de lianas. Era uma estrutura frágil, composta por pequenas grades e ferros, qualquer coisa muito mal improvisada e instável. A razão porque me tinha metido ali, naquele sítio tão perigoso, era algo que desconhecia. De repente, toda a estrutura abanou, e fiquei totalmente imóvel com o terror. Gritei, mas, quem estava a ver, riu-se. Não havia maneira de obter socorro. Não conseguia dar meia volta, por isso comecei a andar em marcha atrás, como se fosse um carro. A cada passo a estrutura cedia, caíam bocados, e era impossível ouvir o ruído que faziam ao cair, de tal modo o fundo era distante. Avancei passo a passo, de costas, em silêncio total, agarrando a mala com toda a força, para salvar os animaizitos. Quando cheguei ao fim, estava em chão firme, mas tinha a mesma sensação de queda e vertigem, como se estivesse na ponte. Não conseguia parar de gritar. "Agarrem-me!" Era o que gritava, repetidamente. Precisava que alguém chegasse e me segurasse nos braços, para exorcizar aquele terror, mas, com o medo do contágio da nova doença, ninguém fazia isso. Todos passavam ao largo. Gritei durante muitas horas até não ter voz e ficar num tal estado de exaustão que caí de joelhos e adormeci de cansaço ali no chão, ali mesmo onde estava.