Sobre uma parede demasiado grande

Sonho CCXXXIII


Era uma parede altíssima, mas queria ser eu a pintá-la, sem a ajuda de ninguém.
 
Não conseguia porém iludir-me sobre a minha capacidade para o fazer.
 
Sabia lixar, pintar, restaurar o estuque da parede, mas como chegar lá acima?
 
Sem dúvida, era preciso um andaime.
 
Mas onde poderia arranjar um andaime?
 
Talvez fosse possível colocar um escadote em cima de uma mesa?
 
Mesmo um grande escadote em cima de uma grande mesa não permitiria chegar ao tecto.
 
E como montar um andaime?
 
Principalmente, como montar um andaime com a necessária técnica e segurança que impeça que o andaime se desmorone, estando uma vez nós em cima dele?
 
Um andaime não é bem um jogo de lego nem um móvel em peças com o respectivo livro de instruções.
 
Ah!...
 
Não sermos capazes de fazer tudo sozinhos!...

Sobre os restos de um casamento

Sonho CCXXXII


Já todos os convidados tinham comido e agora formava-se uma longa fila para o café.
 
Eu andava de roda dos restos dos canapés, surripiando umas coisas aqui e ali.
 
Principalmente aquelas mini salsichas enroladas em queijo gratinado e presas com um palito e os ovos mexidos com pimentinhos coloridos sobre as minúsculas tostas, essas coisas que se podiam meter todas de uma só vez dentro da boca, à socapa, eram verdadeiramente irresistíveis.
 
Por mim, dispensava o café.

Preferia andar por ali como um ladrão clandestino, surripiando, entre a delícia e a culpa, aquilo que podia.
 
 
 


Sobre a anulação de todas as previsões realistas

Sonho CCXXXI
 
 
Guiava em cima de um carril, no caminho de ferro, e toda a gente se metia à minha frente.

Primeiro foi um urso, mas consegui travar a tempo.

Depois foi um adolescente, com uma mochila às costas.

Depois uma pequena criança.

De todas as vezes consegui travar, mas com uma enorme angústia.

O atrito do carril era de tal modo diferente do da estrada que todas as previsões de travagem se mostravam impossíveis.

Apareceu um daqueles doidos de gabardina que se querem mostrar nus por baixo, um exibicionista.

A esse ameacei atropelá-lo e ele fugiu como um cão, com o rabo entre as pernas.

Por fim, deparei-me com um enorme tanque de guerra, parado no fim do carril, antes de uma ravina sobre o mar.

«Estamos todos perdidos!...» - Pensei.

Nesse momento a única coisa que procurei fazer foi calcular os movimentos que me permitiriam ter um mínimo de contusões depois do embate.

O meu carro era descapotável e saltei para cima da tampa do motor com esperança de saltar para cima do tanque antes do choque.

Atrás de mim vinha um comboio, em alta velocidade.

Não sei como fiz, mas consegui gritar para o condutor do tanque:

- Dê-me a sua mão!

Precisava que me desse também a outra mão, mas ele estava a falar ao telemóvel.

Como é realmente admirável a capacidade do egoísmo humano!...

Uma só mão porém foi suficiente para amortecer o choque e cair de uma forma não tão má, pela ravina abaixo.

Fiquei à espera de ouvir o estrondo do choque do comboio, mas não ouvi nada.

Tudo o que via eram enormes barcos de guerra que deslizavam na terra e não no mar.

E dentro deles, gigantes - os peixes enormes, cintilantes e tranquilos.

Cada barco levava um só peixe que o ocupava por inteiro.

Que imagem extraordinária!
 

Sobre as mentiras em que acreditamos ao longo das nossas vidas

Sonho CCXXX


Estava a dar um filme sobre as mentiras em que acreditamos ao longo das nossas vidas, principalmente aquelas que nos instruem sobre os caminhos da nossa felicidade.
 
Era uma aula de filosofia. Esse tinha sido o método que o professor escolhera para obrigar os alunos a pensar naquilo que se aceita sem pensar, talvez porque a imitação seja o instinto mais universal do ser humano.
 
Em geral, começamos por acreditar que a nossa felicidade pode depender do amor, da fama, do dinheiro ou do sucesso - e isto acontece até mesmo quando acreditamos nas versões suaves destas teorias sobre a felicidade, como aquelas que nos dizem que podemos ser felizes a fazer bem aos outros.
 
Raras são as propostas que nos explicam que a essência da alegria é ainda mais delicada e difícil de perscrutar do que a filigrana dos átomos invisíveis que compõem o ar, e que alcançá-la passa mais por estarmos atentos a coisas que geralmente ninguém vê.
 
Que dificuldade!... Estar atento!...
 
Alguém nos disse que a essência da nossa alegria é em geral singular e inimitável e, além disso, desconhecida em todos os nascimentos, como nós mesmos?
 
Para nada disto estamos preparados.
 
Eu saía do filme pois descobria que estava cheio de nódoas de sopa na roupa.
 
«Já não tenho idade para me sujar desta maneira!...»
 
Despi a roupa na casa de banho, com esperança de a limpar, mas houve quem olhasse para o meu corpo com espanto.
 
Essa pessoa estava deveras surpreendida porque com roupa eu tinha um aspecto bastante diferente.

Em público, há pessoas que preferem esconder-se.

Vesti a minha roupa sem conseguir tirar as nódoas e meti-me no carro para voltar para casa.



O que decidimos fazer numa situação-limite

Sonho CCXXIX


Começara a guerra.
 
Em Aranjuez preparava-se um êxodo.
 
O que Françoise mais gostara em Aranjuez não fora o Palácio Real, nem a Casa del Labrador, mas os plátanos do jardim do palácio.
 
Eram plátanos muito antigos a quem ninguém cortara os ramos como se faz habitualmente nas cidades; e os ramos rasavam o chão, numa expressão de volúpia.
 
A Françoise não sabia se havia de fugir de metro ou de carro.
 
Para onde?
 
Em direcção ao centro da Europa ou em direcção a Portugal?
 
Será que o velho Opel aguentaria a viagem?
 
Era preciso reunir mantas, mantimentos e garrafões de gasolina.
 
A sua avó que tinha morrido há tantos anos estava ali e a Françoise correu a abraçá-la.
 
- Queres ir comigo no meu carro?
 
Portugal, pela sua insignificância, era um destino mais seguro.
 
A Françoise aproximou-se do carro de Heinrich Hart e disse:
 
- Não parta sem mim.
 
- Não sou seu amigo nem seu pai, porque haveria de partir sem si?
 
A Françoise sorriu com um sorriso de circunstância, guardando os sentimentos no fundo de si como num cofre.
 
- Tem toda a razão. Porque haveria de partir sem mim? Se vir algum perigo, por amor de Deus, parta imediatamente. Mas se puder esperar, espere por mim que eu vou atrás do seu carro.
 
Fora apenas por causa de Heinrich Hart que a Françoise decidira arriscar a viagem de carro.
 
Mas isso ela nunca diria. 
 
 

Sobre a culpa e a sobrevivência

Sonho CCXXVIII


Seguíamos por uma dessas estradas de montanha, íngremes e sinuosas, quando o meu companheiro foi arrebatado por um tigre.
 
Cobarde, desatei a fugir.
 
Mas talvez me sentisse melhor se tivesse morrido com ele.
 
Tudo o que vi foi um pedaço de tripa que vinha arrastada pela água da cisterna dos bombeiros, estrada abaixo, e que desapareceu numa sarjeta.
 
Agradeci ao realizador do sonho que não tivesse mostrado mais.
 
Ver apenas aquela parte do corpo foi suficiente para que ficasse morto por dentro.
 

Sobre a culpa indirecta ou a causalidade excêntrica

Sonho CCXXXI


 
A Maria do Mar queria realizar um pedido de desculpas, mas era muito difícil.
 
Os seus maiores defeitos de carácter eram o orgulho e a teimosia.

Quando era criança, a ideia de pedir desculpa era equivalente à ideia de lhe arrancarem a língua.
 
Com a agravante de que a pessoa a quem queria pedir desculpa estava muito zangada e sem disposição para perdoar.
 
Essa pessoa deu-lhe a seguinte notícia:
 
- Houve um homem que roubou o teu carro, teve um acidente - e morreu.
 
A Maria do Mar desatou a chorar.
 
Sentia-se culpada porque alguém que tinha roubado o seu carro tivera um acidente - e morrera.
 


Sobre a frequente incompatibilidade entre o desejo, as inclinações e o tempo

Sonho CCXXXI


Primeiro fora ele que, tomado por uma espécie de pudor por causa da diferença de idades, se coibira de avançar.
 
Depois fora ela que, por causa de uma mistura entre humildade e insegurança, não se achara digna de um homem tão admirável.
 
Um dia, a Françoise caiu aos seus pés e, abraçando-lhe os joelhos, exclamou:
 
- Sou inteiramente sua. Quer casar comigo?
 
Nesse dia ficou a saber que Heinrich Hart já há muito que casara.




Ingmar Bergman, O Sétimo Selo




 
 
 
A CARTA DE UM ESPÍRITO SINGULAR
 
 

Sobre a relação entre o amor e o silêncio

Sonho CCXXX


Finalmente, a Françoise M. conseguira cruzar-se com o grande amor da sua vida.
 
Que alegria, estarem sentados um diante do outro!...
 
Mas a Françoise sentia uma terrível timidez e por causa disso estava completamente paralisada e sem ideias para dizer coisa nenhuma.
 
Tantos anos se tinham passado, e não fazia diferença nenhuma.
 
- Sabe, - dizia ele - você fala demais. Você é uma tagarela.
 
- Pois, - retorquia a Françoise - a culpa é sua. Se eu estivesse consigo já não falaria assim tanto.