Sobre a impotência perante os outros

Sonho LXXVI



Afinal, a Maria do Mar tinha feito amor diversas vezes com Biagio Yamaguti, e não apenas uma.

A Maria do Mar dizia-lhe: «Quanto mais depressa isto acabar, melhor, que é para eu sofrer o menos possível, percebes?...»

Andavam sempre por sítios escuros e incrivelmente desarrumados e num dos quartos em que faziam amor estava um guarda-chuva aberto em cima de um reposteiro, o que não fazia qualquer sentido.

Porque haveria alguém de deixar um guarda-chuva aberto em cima de um reposteiro?

Eis uma questão pertinente.

A Maria do Mar tentava explicar a Biagio Yamagutti que ele era adicto ao sexo e ao jogo, mas Biagio Yamagutti não percebia o termo «adicto».

«Há vários tipos de adições.» Tentava explicar a Maria do Mar. «Ao álcool. Às drogas. Ao sexo. Ao jogo. Ao trabalho. Às relações amorosas. À comida. À falta de comida…»

Biagio Yamagutti não conseguia perceber, era como se tivesse um grande muro dentro da cabeça.

A Maria do Mar tinha muita pena dele.

«Eu sei do que estou a falar porque sou alcoólica!...»

Disse-lhe a Maria do Mar, num derradeiro esforço.

Ele ficou abismado. Ela sempre se disfarçara tão bem.

Passados uns minutos a Maria do Mar pôde porém observar que ele percebera o que lhe dissera, não em relação a si mesmo, mas pelo menos no que lhe dizia respeito, e, pela expressão do seu rosto, pôde ainda perceber que Biagio Yamagutti estava a pensar que aquilo afinal fazia muito sentido, uma vez que explicava muitas lacunas realmente intrigantes no seu comportamento, ao longo dos últimos anos. 




René Magritte, «Hegel em Férias», 1958, óleo sobre tela,
50 cm x 70 cm, Colecção Privada



Bach, de Pedro Eiras

Fragmento 194





Neste livro, as inesperadas páginas em branco do capítulo «Ich habe genug...» (Cantata BWV 82) - seis ao todo -, são eloquentes quanto à dificuldade que temos em falar de música e, em particular, quanto ao impasse e resistência avassaladora que percebemos ter sentido o autor ao tentar escrever, ao longo de muitos anos (na verdade, décadas), sobre a sua paixão por Bach. O fruto desta resistência consubstanciou-se na estratégia elíptica, laboriosa, porventura afim da de Esther Meynell (ainda que no caso de Esther esta fosse involuntária), que ao escrever The Little Chronicle of Anna Magdalena Bach escreve, diz-nos Pedro Eiras, não sobre Anna Magdalena Bach, mas sobre Esther Meynell e «sobre a sua paixão por Bach, disfarçada de biografia.» (p. 27) Com uma diferença assinalável, porém. Que o disfarce adoptado para esta «pura paixão que não se pode escrever», para este «texto que se deseja», mas que irá falhar-se (p. 32), para além de voluntário é aqui uma tessitura a várias vidas, homenagem em viés ao gigante da polifonia e mestre insuperável do contraponto, tido pelos seus contemporâneos por «irrascível, envelhecido e fora de moda», mas cuja música, ao contrário de todo um mundo que pereceu, hoje vive. (p. 29)

Assim se erguem uma a uma, e de um modo pungente, as várias vidas (e as várias vozes) daqueles que terão amado Bach e a música de Bach, ou que terão sido amados por ele.

Anna Magdalenna Bach, viúva no ano da morte de Bach, em 1750, escreve aos Senhores de Leipzig uma carta que terá sido rasgada, por tão confessional e irreverente. Acompanha-a a referência discreta, no fundo da página, ao Motete BWV 225, essa música tão incrivelmente veloz, tão leve e tão exultante e que começa com o verso «Cantem ao Senhor uma nova canção».

Segue-se a descrição de uma pesquisa sobre Esther Meynell, assinalada com a data da Pequena Crónica de Anna Magdalena Bach e, no fundo da página, com a referência à Cantata BWV 8. Quase cândida esta cantata em que o canto dos pássaros distribuído pelas flautas, ou melhor, os "pios" dos passarinhos que nos lembram divertimentos mais antigos como os de Clement Janequin, pontuam com leveza a gravidade do texto:

Querido Deus, quando morrerei? 
Esvai-se o meu tempo sem descanso.
O legado de Adão é ser pobre algum tempo na terra,
e depois em terra também eu me transformar.

É possível que não exista nunca mais uma tão notável e paradoxal combinação entre seriedade e humor, entre leveza e gravidade, como nesta música e neste espírito tão extraordinários. «Nos meus ouvidos, ela diz o que nunca saberemos por inteiro, a mais funda dor, a alegria». (p. 30) Não a alegria dos levianos ou dos fúteis - mas a alegria que chega depois da violência e que é como o verde que floresce após o degelo: um acto de resistência - porventura redenção ou remissão... E eu diria: a existência em acto... qualquer coisa muito maior que amor entre gente... Porque supra-humano ou transumano parece ser o afecto indizível que dá sentido à frase com que é rematada a difícil descrição: «E eu amo tudo o que vejo.» (p. 30)

Não há espaço aqui para comentar uma paisagem tão vasta. A Arte da Fuga. O Prelúdio e Fuga em Mi bemol Maior, do primeiro caderno. As Variações de Goldberg. O concerto para oboé e violino. A (terrível) Passacaglia e Fuga em dó menor. A Missa em mi menor. A Cantata BWV 198. O Magnificat em Ré Maior. O concerto para flauta transversal, cordas e baixo contínuo em si menor. O coral «Junto aos rios de Babilónia». A Paixão de São Mateus.

De acordo com esta ordem de obras ergue-se o edifício da paixão de Pedro Eiras pela música de Bach. 

Jean-Marie Straub e Danièle Huillet e a referência ao filme de 1968 que recupera a obra de Meynell ao mesmo tempo que introduz a figura de Gustav Leonhart, pioneiro na defesa da execução da música de Bach em instrumentos originais. Glenn Gould que elabora, a partir de Bach, «uma música de vanguarda». John Cage. Leibniz, escrevendo sobre o melhor dos mundos possíveis e as percepções subtis enquanto lá fora um cavalo atropela uma criança. Maria Gabriela Llansol, cujo corpo é tomado «por tema», pela música. Martin Luther, discutindo o livre-arbítrio ao mesmo tempo que lhe morre uma filha bebé. Jeshua Ben-Josef (Jesus), em cuja vida, pelo menos como surge descrita nos Evangelhos, não se encontra música. Etty Hillesum, jovem judia a caminho da morte num comboio apinhado de condenados. Albert Scweitzer, médico e Nobel da Paz em África, recordando a dedilhação do coral An Wasserflüssen Babylon («Junto aos rios de Babilónia estávamos sentados e chorando, lembrando-nos de Sião»), enquanto carrega madeira para construir um hospital. Uma criança que se embala para adormecer ao som de «Mache dich, mein Herze, rein» (Ária da Paixão de São Mateus, «Torna-te puro, meu coração, que eu quero sepultar Jesus»), em 2002.

Quem como eu criança e que ainda antes de saber que músicas fossem essas cantarolava em surdina «Jesus, Joy of Man's Desiring» e o tema da Tocatta e Fuga em ré menor; e que desde os catorze anos, quando finalmente comecei a tocar de piano, encontrei no estudo das Invenções, das Suites e dos Prelúdios e Fugas o meu único templo terrestre, círculo de paz, casa... casa de oração para um credo ainda por encontrar - não seria um leitor fácil.

Oiço de novo «Ich habe genug» («Tenho o suficiente»), a Cantata que dá o título às seis páginas em branco do décimo segundo capítulo do livro de Pedro Eiras e, por segundos, o voo é de tal modo abstracto e intensivo que eu, que sou míope e que vejo tão bem ao perto, poiso os olhos na minha agenda e tenho grande dificuldade em focar e compreender a minha caligrafia.

Estranheza absoluta de quem chega de uma outra luz, e cujos olhos não se habituam.

Braço sem corpo brandindo um gládio

Fragmento 193



BRAÇO SEM CORPO 
BRANDINDO UM GLÁDIO



Entre a árvore e o vê-la


Que arco da ponte mais vela

Deus?... E eu fico tristonho


Por não saber se a curva da ponte


É a curva do horizonte...






Entre o que vive e a vida


Pra que lado corre o rio?


Árvore de folhas vestida -


Entre isso e Árvore há fio?


Pombas voando - o pombal

Está-lhes sempre à direita, ou é real?







Deus é um grande Intervalo,

Mas entre quê e quê?...



Entre o que digo e o que calo


Existo? Quem é que me vê?


Erro-me... E o pombal elevado

Está em torno na pomba, ou de lado?







Podia ser o título de um quadro, este título de poema que traz imediatamente uma imagem fortíssima, uma imagem nua do desespero. O andamento é majestoso, largo, e tem algo de marcha fúnebre. O tom grave, subliminar, por vezes soprado entre dentes, é como o da voz de um mago, com pequenas, suavíssimas, milimétricas intonações de escárnio, ténues melodias para o agudo de uma ironia desencantada e desligada, não por indiferença ou futilidade, mas por tão sofrida. Leio este poema de Pessoa em voz alta, na cama, interrompendo as cartas de Sá-Carneiro que me deixam sobremaneira irritada. Enquanto o leio, totalmente imbuída daquele ritmo obscuro e lento, intensíssimo, o que não interessa para a crítica mas que me interessa a mim é que todos os pelos da minha pele se eriçam como se em contacto com uma fonte eléctrica, como se uma onda que partisse dos pulsos me varresse até à ponta dos pés. O coração aperta-se, os olhos aquecem - e abre-se um espaço imenso. De repente estou no alto de qualquer coisa muito alta e vejo uma paisagem muito vasta. Não sabemos como sabemos, mas eu sei como dizer este poema. Que andamento, que curva melódica em cada frase, que registo nas palavras, que respirações, que pausas, que cortes. E o poema é toda uma síntese (insuperável) de uma entrada no caos, uma síntese da minha própria existência. Porque não chorar, se estas lágrimas, de uma forma tão obscura, me redimem? «Que arco da ponte mais vela / Deus?...» Quem algum dia lhe aconteceu perguntar «Entre a árvore e vê-la / Onde está o sonho?» e entrou no caos, naquele caos em que a pergunta «o pombal está-lhes sempre à direita, ou é real?» faz sentido e em que a dor não dá tréguas, nem aquelas que se conquistam com os ciclos torturados da morte lenta e ressureição por meio do álcool ou de outras drogas, sabe que a heteronímia não é mais que um recurso (um entre poucos) para se ficar inteiro.