Divertimento

 
 
abelharuco
abelharuco-persa
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águia-calçada
águia-cobreira
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arrabio, alcaravão, alfaiate
cagarra, carriça, calhandrinha
galinhola, ganso-patola
garçote, garajau
mocho-d'orelhas, papa-moscas
pardal-espanhol, pardal-francês
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tarambola-dourada
plim
plim-pia
plim
plim-piu
 

 

 
 
 


Sobre a diferença entre sexo e amor

Sonho CCXL


 
Numa mesa com um casal e mais duas pessoas, uma rapariga falava das suas aventuras amorosas.
 
Ao que ela tinha achado mais graça, num encontro ocasional a caminho do aeroporto, fora a um comentário do seu amante fugaz, quando começaram no vaivém sobre a cama de hotel:
 
- Será que o carpinteiro construiu bem esta cama? Isto range por todo o lado!
 
Mas os ouvintes estavam chocados com a ligeireza risonha da rapariga.
 
Embora fosse possível que a maioria dos ouvintes não compreendesse a causa da sua perturbação instintiva, na verdade esta devia-se ao facto de que a separação pragmática entre sexo e amor não faz parte da educação habitual das raparigas, embora faça parte da formação comum dos rapazes.

Se uma rapariga sente aquele frisson ou aquelas dores de estômago, de um modo geral ela acreditará que está apaixonada, enquanto um rapaz percebe que se sente atraído.
 
- Essa frase migrava directamente para um romance. - disse eu para consolar a rapariga, que não obtivera o efeito esperado com a sua graça.
 
Ela conquistara de um modo solitário e improvável a percepção da separação entre sexo e amor, mas, com essa conquista (que poderia até ser uma preciosa mais-valia no saudável exercício da lucidez), não se livrara da dupla tragédia paralela que precisamente e  pelo mesmo mecanismo assombra o sexo oposto.
 
Por um lado, a tragédia da leviandade e, por outro, de uma passagem sem saída pelo território mortal da indiferença.

Duas amputações paralelas da sensibilidade.
 
 
 
 
 
CARTA DE UM ESPÍRITO MATERIALISTA
 
 

 
 
 
O escritório das Edições Sem Nome (2017)

 
 
 
 
AS PRIMEIRAS CHUVAS
 
 


Sonhos



Podemos acreditar na interpretação finita de um sonho como acreditamos que sabemos o que queremos das nossas vidas, ou que pessoas somos.

Dizemos: «Ah!... Este sonho!... Realmente este sonho quer dizer isto!...»

E sentimo-nos esclarecidos.

Existem até livros publicados onde se explica o significado dos sonhos, ponto por ponto, e em que se parte do princípio que todos os sonhos se referem ao futuro.

«Queda de um dente: morte de parente.»
 
Mas o que são as nossas vidas?
 
Que o sonhador se arrisque, sozinho e pela sua própria cabeça, com o intuito de interpretar um sonho, a recorrer ao método da associação livre, tal como Freud o descreve na Interpretação dos Sonhos, isso pode ser, não o equivalente a um simples cataclismo, mas a um tremor de terra de grau oito na escala de Richter, seguido de tsunami.
 
Não é exagero.

Pois existe a ideia comum de que a alegria dos homens tem um carácter universal, quando na verdade se trata de um juízo totalmente falso.

Segundo os nossos sonhos, parece que a alegria de cada um é tão pouco universal como as brincadeiras das crianças e, além disso, que as fontes da nossa alegria raramente são perfeitamente conhecidas por nós mesmos.

Vou dar o exemplo de uma criança que podia brincar durante horas com um punhado de contas coloridas e um tabuleiro.

Colocava as contas no tabuleiro, agitava-o, parava, e ficava a ver o modo como o movimento das contas ia abrandando, até que ficassem totalmente imóveis. De cada vez que repetia este jogo, as contas formavam constelações diferentes, como as estrelas no céu.

Como definir a actividade da criança?

Uma contemplação?

Uma produção de mundos?

A alegria é, por assim dizer, um mistério a desvendar.

Mas talvez não venha a ser nunca um atraente interesse social que cada um aceda à essência da sua alegria.

É possível que toda a sociedade, tal como a conhecemos, se esboroasse, se reduzisse a pó... E isso seria uma bela coisa, certamente!

Mas em lugar do que temos, o que teríamos?

A alegria é feita de pequenos momentos e de ínfimos cumes. E, como o que de mais universal existe no desejo dos homens parece ser a sua facilidade em ser capturado (aliás, como acontece também com o desejo das crianças), uma vulnerabilidade confrangedora aos mais inanes projectos de sedução, a todas as formas massivas de cobiça e rapina social (que por sua vez produz as estratégias mais caricatas, quando não mesmo vis ou criminosas, de propaganda, de política, de consumo, de domesticidade e de comércio na nossa pequena sociedade actual); o sonho parece existir como uma actividade de resistência, como um instinto anárquico.

Que fácil que é explorar o desejo dos homens!...

Foi este um dos aspectos em que Freud falhou totalmente, quando não percebeu que o sonho congrega uma actividade revolucionária. Talvez por isso seja tão angustiante ler as suas brilhantes análises, tal é a captura, o aprisionamento e a exiguidade a que ele submete esta qualidade móvel, liberta, criativa e imponderável do desejo. Apesar dos inúmeros e valiosos golpes de génio, entre os quais se conta a invenção do método de associação livre, ele reduz o desejo à satisfação e ao prazer e esquece-se de o ligar à alegria e à liberdade, ao puro jogo abstracto de poder inventar e gozar uma nova fruição. Mas que triste e monótono é o desejo que apenas corre entre a fome e a saciedade, entre a carência e a satisfação!... Que insuportável e entediante vaivém!...
 
Na verdade, os sonhos parecem afirmar-se como uma resistência a esta estereotipia do desejo. Uma resistência profunda, salutar e inclassificável, porventura como a resistência da vida contra a morte, do indivíduo contra a massa social que o pretende domar e explorar, do pensamento contra o lugar-comum, contra a inanidade.

Não há como evitar um sentimento de maravilhamento e de admiração. Que extraordinário que é o pensamento e a imaginação enquanto dormimos... Como são reais as nossas sensações e brilhantes todas as cores... Não cessamos de nos surpreender, de nos questionar. Quantos mundos existem para que nós os contemplemos? E como é que no sonho uma ideia se transforma logo em filme, directamente, sem intervalo, e se mostra em salto, em movimento, em palavras vivas e audíveis e em sensações?... Nem sequer imaginamos o que pensamos. Acontece-nos o que pensamos. Movemo-nos no que pensamos. Ah!... Que velocidades, que quedas, que trapézios, que voos fabulosos e que visões sumptuosas!... Que mundos possíveis!... E como vibra o nosso corpo e reage a nossa carne... Como se dobra e desdobra o tempo... Sentimos de um modo claro que o pensamento pensa e que nós, em relação a ele, somos apenas os humildes espectadores, os incautos, distraídos, inconscientes e inadvertidos participantes.

Quem sabe...

Quem sabe é tão fácil explorar o desejo dos homens porque eles nem conhecem o que desejam, já se esqueceram dos seus sonhos quando acordam e limitam-se durante o dia e na maior parte dos casos a ser obedientes, esforçados e a fazer o que se espera deles.
 
 
 


Os problemas raramente são o que parecem

Sonho CCXXXIX


A Françoise M. estava em apuros para conseguir arrumar uma prateleira.
 
Havia três garrafas e algumas coisas inúteis, como um palhacinho de pano, uns crisântemos de plástico e a imagem da Nossa Senhora, também em plástico.
 
Nunca a Françoise teria tais objectos em casa, mas, naquele momento, a verdade é que também não teria paz enquanto os não arrumasse.
 
Haveria certamente uma forma de os compor, pensava a Françoise, uma forma de os combinar que deixasse de causar-lhe aquele doloroso desconforto.
 
Por causa deste problema, a pobre Françoise não conseguia concentrar-se em coisa nenhuma.
 
Finalmente, surgiu uma solução.

O problema não era exactamente o que parecia.
 
Afinal, o maior problema eram as garrafas.
 
Uma de absinto, outra de gin, outra de vodka.
 
A Françoise tirou dali as garrafas e sentiu um alívio extraordinário.