Maria do Mar I

Fragmento 171


Há muitos anos atrás, talvez dez, ou nove, não sei bem, escrevi nas costas de uma ficha sobre figuras rítmicas a seguinte nota: «Maria do Mar - Das ideias em geral - Crítica da Razão Pura - p. 308 - Poética».
 
Agora, como estou precisamente a trabalhar num dos livros da Maria do Mar, decidi-me a investigar essa nota.
 
O receio era tanto, passados todos estes anos, de que o sentido da nota se revelasse completamente opaco, que andei a inventar muitas coisas para fazer, em vez de investigar a nota.
 
Escrevi três sonhos e ainda uma pequena crónica e depois fiquei, durante cerca de uma hora, a olhar para o computador.
 
Comecei a pensar: «Já é tarde. Sinto-me desanimada. Já passou muito tempo. Não tenho forças para ir ver a nota.»
 
A Crítica da Razão Pura do Kant, por causa desta nota que estava pendurada na parede com fita cola, ao lado da escrivaninha, já desde o final de Julho que aguardava em cima da cauda do piano, em posição de destaque.
 
Felizmente, um outro lado de mim decidiu falar: «Toma o teu tempo, mas não desistas. A noite ainda está longe - e tu já dormiste a sesta... Olha para o ar o tempo que quiseres, antes de ires buscar o Kant, mas dispõe-te pelo menos a ir buscá-lo.»
 
Mais uma vez, e curiosamente, a boa vontade funcionou, ao contrário da força de vontade.
 
Pude então maravilhar-me com o conteúdo da nota, que surgiu brilhantemente intacto, passado tanto tempo, como uma mensagem lançada ao mar dentro de uma garrafa de água.
 


Sexo por sexo... e a prova da realidade.

Sonho CLII
Uma vez que o professor se tinha esquecido das horas, a lição de música prolongava-se.
A Maria do Mar dizia, olhando para o relógio:
«Professor, já está na hora.»
Mas o professor desejava que terminassem a escrita de um coral que se estava a tornar empolgante, por causa de uns saltos atípicos na voz do tenor.
Antes de terminar a aula, chegava a mulher do professor com uma amiga e pedia ajuda para mudar os móveis da casa.
O professor era Biagio Yamaguti.
A casa era um velho quinto andar sem elevador e com umas escadas de madeira bastante empenadas.
Quando a Maria do Mar estava a descer as escadas com a sua cúmplice - uma mulata de aspecto muito agradável -, ouviu lá em cima Biagio gritar bem alto:
«Tenho de ir comprar cigarros!»
E a Maria do Mar sentiu no peito uma alegria galopante, ao ouvi-lo descer as escadas.
Biagio rapidamente as apanhou e, como sabia que a Maria do Mar era muito difícil de conquistar, começou a beijar a sua cúmplice.
Mesmo não sendo uma cena propriamente atraente, a Maria do Mar estava com uma dor de estômago terrível, semelhante àquelas que temos nas descolagens dos aviões, por causa da excitação que aquilo lhe causava.
Biagio Yamaguti era um desses raríssimos homens que lhe inspirava um desejo sem reservas, ao ponto de querer despir-se num ápice e atirar a roupa toda para o chão.
«Como é que se pode desejar tão intensamente uma coisa nem por isso assim tão boa?»
Questionava-se a Maria do Mar.
Já estavam encostados a um muro da estrada e Biagio continuava a beijar a sua cúmplice, quando passou um bando de raparigas que, pelas risadas, todas se tinham deitado com ele.
«Aproveita, aproveita!...» Cantarolavam as raparigas. «Esse, esse... Nem queiras saber!...»
Mas a Maria do Mar não podia deixar de olhar para tudo aquilo com a tristeza antecipada de conhecer por experiência própria o sabor da amargura posterior.
Rudemente comparado, era como comer uma taça inteira de mousse de chocolate e ficar depois com uma valente dor de barriga.
- Mas claro!... - pensava a Maria do Mar - Há sempre quem tenha o estômago de um verdadeiro lagarto pré-histórico!...
Aliás calculamos, com o auxílio dessa insana e desmesurada faculdade da fantasia selvagem, que o estômago desses lagartos seja das coisas mais resistentes que a evolução da biologia animal alguma vez na Terra produziu.

Sarrasinoso*

Fragmento 170
 
Agarrado à gravatinha, como se a uma pilinha (mas de um modo vagamente delicodoce), o nosso Primeiro Ministro dá cor à capa do livro com que o badalado título «Somos o que escolhemos ser» atafulha as montras e os escaparates de tantas livrarias portuguesas.
 
Parece ficção de mau gosto, mas não é. Como tantas vezes costuma ser comum na publicidade, na propaganda e noutras estratégias de marketing, mais uma vez nos impingem pirosas e ofensivas barbaridades como se fossem alegres evidências do senso-comum.
 
Assim, ao contrário do que acontece com toda essa imensa zona involuntária da nossa identidade, ou personalidade, ou singularidade, como lhe queiram chamar, numa simples frase se enaltece o imenso poder da vontade pessoal sobre a vida e o destino.
 
O nosso brilhante Primeiro Ministro que vá vender a sua moral aos judeus gaseados nos campos de concentração alemães, às meninas casadas à força no Afeganistão, no Sudão Sul e em tantos outros países do mundo, aos refugiados afogados no Mediterrâneo, a quem trabalha a troco de uma côdea de pão, às populações encurraladas no meio de conflitos armados e às meninas Yazidi que agora mesmo no ano de 2015 estão a ser vendidas como escravas na Síria.
 
Quero colocar apenas uma pergunta.
 
Como é possível que tantos milhões de pessoas (nós, a população portuguesa) possam ser governados por inteligências tão reduzidas?
 
 

*A palavra «sarrasinoso» não existe. Certos elementos da ala feminina da minha família, pela linha materna, que a propósito de qualquer pequeno incidente sacavam de um poema de Camões, Pessoa ou Sá-Carneiro, o qual, fosse no café, na esplanada, ou num corredor de supermercado, declamavam com as mais dramáticas e assustadoras inflexões de voz, tinham o hábito de inventar palavras para as mais variadas circunstâncias. «Sarrasinoso» era aplicado a comentários de agreste maledicência, o que me convenceu, desde tenra idade, que a palavra seria composta a partir de uma mistura de «sarro», com «resina» (sujo como sarro, peganhento como a resina). Isto é, quanto mais agreste, quanto mais maldoso, quanto mais ranhoso, enfim, quanto mais mal-cheiroso - mais «sarrasinoso».
 

Como é que, de tanto, pode sobrar tão pouco?

Sonho CLI


A meio da noite, ao acordar de um sonho, pensei: «Que belo sonho! Vou escrevê-lo!»
 
Não valia a pena pegar imediatamente na caneta, pois era um sonho absolutamente inesquecível.
 
No dia seguinte, empenhei-me animadamente a pintar as grades da varanda, tomar um duche e fazer uma tarte de limão merengada para o almoço dos tios.
 
Foi só em casa dos tios, ao ouvir «O Anjo do Selo», de Rodion Schedrin, que me lembrei que houvera qualquer coisa empolgante, no meu sono.
 
Mas o quê?
 
Puxei, puxei... e, com um esforço notável, consegui obter duas palavras:
 
«Coke» (de Coca-Cola). 
 
E «Côcô-ri-cô».
 
(...)
 
Por coisas como esta é que venho a acreditar que tenho um malicioso génio interior cujo importante propósito me parece unicamente consistir em pregar sofisticadas partidas e assim poder divertir-se supremamente às minhas custas.
 

Britten - Rejoice in the Lamb op. 30

Fragmento 169


Para todos os gatos: 
a passagem sobre o gato Jeoffry,
a que Britten dedica um solo de soprano,
com algum humor (felino) - subtil que baste.


Christopher Smart (1722-1771) é o autor de Jubilate Agno, o poema a partir do qual Britten compôs a cantata em epígrafe.
 
Jubilate Agno glorifica Deus e o Cordeiro ao longo de cento e vinte sete versos - sete dos quais começados pela palavra «let», quarenta e quatro pela palavra «for», e, destes últimos, doze que são finalizados pela palavra «like». 
 
Esta repetição mecânica destila uma obsessiva luz maquínica sobre todo o poema e produz um imediato efeito de estranheza - mais ou menos como se encontrássemos uma linha de produção em série no meio de uma floresta de eucaliptos.
 
Por outro lado, não deixa de ser curiosa e absolutamente idiossincrática a agilidade com que Cristopher Smart passa dos exemplos clássicos para o seu gato Jeoffry, para um rato (que é «uma criatura de grande valor pessoal»), para a linguagem das flores («a poesia de Cristo») e para um conjunto de instrumentos musicais, passando por quatro letras do alfabeto - HKLM.
 
Cristopher Smart foi julgado por uma «Comissão de Loucura» e foi admitido como «doente curável» no St Luke´s Hospital for Lunatics, em 6 de Maio de 1757.
 
Foi aí que escreveu Jubilate Agno.
 
Mais tarde passou de «curável» a «incurável» e foi transferido para o Asilo de Mr. Potter, por razões monetárias.
 
Porém, certos factos sugerem que a admissão de Smart num asilo para loucos não se deveu tanto à deterioração da sua saúde mental como ao seu talento incorrigível para contrair dívidas impossíveis de pagar.
 
Apesar de ter saído do asilo, Smart acabou por morrer em 20 de Maio de 1771, numa prisão para devedores.
 

 
 
 
 
For I will consider my cat Jeoffry.
For he is the servant of the living God.
Duly and daily serving him.
For at the first glance
Of the glory of God in the East
He worships in his way.
For this is done by wreathing his body
Seven times round with elegant quickness.
For he knows that God is his saviour.
For God has bless'd him
In the variety of his movements.
For there is nothing sweeter
Than his peace when at rest.
For I am possessed of a cat,
Surpassing in beauty,
From whom I take occasion
To bless Almighty God.