Sobre um lírio desprezado

Sonho CCXII


 
A Françoise estava mergulhada na água de uma piscina natural, no meio das rochas, com uma pequena criança.
 
A criança estava muito alegre e entusiasmada com tudo o que havia para explorar nas rochas.
 
Minúsculas enseadas e praias se multiplicavam por todos os bordos e os seus habitantes interessavam-na vivamente.
 
As anémonas agitavam os suaves tentáculos como se fossem os bailarinos de um espaço celeste, os pássaros de uma gravidade zero.
 
Por todo o lado as cores, no meio das estrelas faiscantes que o sol fazia brotar na superfície da água, compunham variações inesperadas.
 
Apareceram diante dos seus olhos minúsculos balões de água que se soltavam da espuma de uma onda e que reflectiam as cores ácidas do arco-íris: azul, amarelo, rosa, verde, branco...
 
E a criança ria.

O seu riso fazia trilos.
 
A alegria que ambas partilhavam por estar imersas naquele espaço fazia-as voar por dentro do corpo como cometas no espaço, como se compusessem a linha de força de uma energia puramente musical.
 
A Françoise então uniu as mãos debaixo de água e, discretamente, dirigiu-se a Deus:
 
«Não permitas que a minha alma fique um dia indiferente a tudo isto.»

Antes morrer-lhe o corpo que morrer-lhe a alma e ficar, como uma noz queimada por dentro, o fruto ausente de uma casca vazia.

Quando estava imersa nestes pensamentos, caiu à sua frente, na água, um lírio que tinha sido há pouco arrancado da terra, um lírio quase intacto.

A criança pegou nele e lançou-o para longe, como se fosse um pedaço de lixo, mas à Françoise o lírio lembrou-lhe o corpo de Ofélia sob as águas, de Millais, e o seu coração começou a arder como uma sarça que fosse usada para velar um morto.

Com a corrente, o lírio desprezado voltou, e de novo a criança o lançou para longe, como uma coisa sem importância.

A Françoise voltou o rosto e seguiu-o com o olhar e viu que o lírio ficara entalado no primeiro degrau da escada que ambas teriam de subir para sair da água.

«Aquilo que um dia desprezares há-de estar sempre a meio do teu caminho.»

Foi no que pensou, por causa do lírio.

Sobre o Gato das Botas

Sonho CCXI


 
Eu e uma amiga estávamos a passar férias num hotel de luxo, mas sentíamo-nos muito infelizes.
 
Incomodava-nos o luxo e o ócio.
 
Queríamos sair dali o mais rápido possível, só que não havia transportes.
 
Mesmo assim fizemos as malas e pusemo-nos a caminho da saída, para o que desse e viesse.
 
Por uma coincidência incrível, encontrámos a Esmeralda que conduzia uma grande carrinha, fazendo trabalho voluntário no transporte de doentes com mobilidade reduzida.
 
Como é que a Esmeralda, que trabalhava tanto, ainda arranjava tempo para ajudar os outros?
 
A Esmeralda uma vez interpelara um bando de miúdos que arrastavam uma pomba com um cordel ao pescoço, e que já estava ferida:
 
- Meus meninos, não querem dar-me essa pombinha, para eu cuidar dela?
 
E a pombinha salvara-se.
 
A Esmeralda também um dia lhe lera um poema que fizera em menina para o seu avô, que era moleiro num velho moinho, e ela lembrava-se de ter chorado, ao ouvir o poema, porque tinha uma cadência tão certa e era, além disso, tão inocente.
 
E ali estava a grande e boa Esmeralda.
 
Mas a Esmeralda era tão grande, tão grande, tão grande que fazia três vezes o seu tamanho, quer o seu, quer o da sua amiga.
 
Como eram ambas pequenas, ao lado da Esmeralda!...
 
- Ó Esmeralda!... As suas botas!... - Exclamara de repente, ao reparar nas suas enormes botas.
 
A Esmeralda mirou as suas botas com orgulho.
 
Parecia o Gato das Botas.

Apesar de não estarmos doentes, nem com mobilidade reduzida, estaríamos a salvo, pois havia espaço na carrinha.

A Esmeralda nunca nos deixaria ao abandono por causa de umas regras que naquele momento a ninguém prejudicava quebrar.

Como era a história do Gato das Botas?

Parecia que já não se lembrava.

Apenas da sua avó, a contar a história do Gato das Botas.

E de como o Gato das Botas era bom e dedicado, esperto e encantador.

Noite

 
 
 
 
 
 
20-03-2017
 
 
 
 
 




Nem o futuro é previsível, nem o presente é garantido



As Mães da Síria, de Isabel Aguiar


 
 



Na sequência de um Requiem por Auchwitz (1), este livro reata quase sem fissura a mesma urgência, a mesma qualidade das palavras quase em bruto que estão à beira de um grito sufocado.

Tantas vezes desatamos a rezar, ou uma coisa em nós começa a rezar, diante de uma árvore, da morte, do mar ou de uma catástrofe.

Aqui levamos de chofre com as palavras e o fluxo que está à beira da oração intermitente e incontida perante a devastação, à beira do abismo interior que o testemunho da guerra e, afinal, as acções reais, possíveis, embora no limite do imaginável, da história viva da humanidade, podem desdobrar, replicar, ou revelar.
 
É isto o que mais impressiona nesta poesia.
 
Multiplicam-se as referências bíblicas, ou melhor, há todo um vocabulário bíblico, um imaginário bíblico. A fonte, a água, o deserto, as chagas, os anjos, os pregos, as sandálias, a areia, os jumentinhos, o sangue, o arqueiro, a flecha, os peixes, a nuvem... Mas este vocabulário não nos chega como uma ruína, como uma coisa velha ou morta de outro tempo. Ele chega-nos puro e intacto. Diríamos: transparente, novo, lavado. É impossível não pensar nos profetas do Antigo Testamento e na qualidade única que têm as frases e as palavras nesses livros pré-cristãos. 
  
V
 

Os jumentinhos estavam tristes
Eram jumentinhos que davam abraços às jumentinhas
 
As jumentinhas tinham vindo de longe para brincar com as meninas
Eram jumentinhas que conheciam as searas de trigo
Duas rosas nasceram num jardim
As jumentinhas não comeram as rosas
 
As rosas eram as chagas de uma menina
As rosas eram duas e as chagas eram duas uma em cada mão
 
As jumentinhas nunca tinham visto tanta maldade
Ofereceram uma lágrima à menina
Que não resistiu muito tempo
 
Aos pés da menina brotou uma fonte
 
A fonte era uma luz
A fonte era uma luz
A fonte era uma luz
 
A luz guiava as jumentinhas na noite
 

 
Qualquer coisa, como sublinha Luís Quintais, de não moderno, qualquer coisa «de prévio à enunciação» (ainda que não tenhamos a certeza de que esta coisa seja o resultado de uma intenção de «contrariar a dissociação da sensibilidade moderna») (2) qualquer coisa faz arder esta escrita de lés-a-lés. Na verdade, a escrita de Isabel Aguiar parece situar-se mais na quase extinta linhagem dos profetas, do que na dos poetas.
 
Há uma sensação omnipresente de estar no limite da urgência, no limite da sensibilidade e no limite do suportável.
 
Perguntamos: porque é que no terceiro poema estamos em lágrimas e o nosso corpo arde de alto a baixo, como se tivesse sido atado a uma pira?
 
Nestes versos sem pontuação nenhuma, sem uma única vírgula presente, sem um único ponto final, despidos de qualquer travessão, versos que às vezes parecem até a letra de uma música ausente, de um hino, ou de um salmo, e em que o andamento e o ritmo fluem com uma certeza arcaica, com uma força de pedra levantada, de monumento, as repetições nuas, os quiasmos, os ecos, a simplicidade quase pré-literária da sintaxe, criam um efeito de acumulação progressiva, na verdade, um efeito em que a intensidade do desespero é acumulada para lá do suportável, e ficamos dessa intensidade com um elemento tão real (na imobilidade e no espanto), uma prece tão pura e tão espontânea que de facto parece que só de um outro tempo nos pode chegar.
 
IV
 
Anjo triste
Anjo puro
Anjo que dormes nos umbrais
Anjo das manhãs
Anjo que não dormes
Anjo que não desces de uma nuvem
Anjo da terra no céu
Anjo da água aspergida
Anjo possível e real ao mesmo tempo
Anjo que bebe a água que não tem
A fórmula química da água
Anjo terreno na tua condição eterna
Anjo que não és só eterno
Anjo que viste os copistas de deus
Escreverem esta tragédia
Anjo que assististe ao fiat
Anjo que te alarmaste quando a
Luz não se acendeu nas escadarias terrestres
Anjo com uma materna face que perdeu o esplendor
Anjo concebido nos desertos sem matéria
Traz a tua vida
Santa solidão é a tua vida
Anjo ser espiritual que enternece
Anjo com um manto tecido nos teares eternos
Anjo que tens um sorriso incorpóreo
Que desafia a física nuclear
Nada explode em ti
Nenhuma partícula se perde
Anjo que te separas da matéria
Por uma homeostasia
Anjo que só vês escuridão
Sem um único ponto luminoso que sobressaia
Sem tréguas o teu coração volta-se para o céu
E rezas uma prece infinita
Noites a fio vês as meninas e as suas mães
Sem que possas ser visto
A tua dor não conhece os limites
Anjo que não bebes água por nenhum copo
Anjo que prodigalizas o ser em completo recolhimento
Tão alheado do corpo que outrora te conteve
Pudesses tu salvar as meninas da Síria

 
 
 
 
(1) AGUIAR, Requiem por Auschwitz (Lisboa: Licorne, 2016).
(2) Prefácio de Luís Quintais, p. 9 in AGUIAR, Isabel, As Mães da Síria (Lisboa: Licorne, 2017).