Sobre o medo e a coragem

Sonho LXXXV
 
 
 
À Maria do Mar tinham-lhe pedido que realizasse uma tarefa que a deixava bastante insegura.
 
Pintar em cima de azulejos do século XVIII um texto da sua autoria, num monumento antigo e grandioso.
 
A Maria do Mar preparava um conjunto de frases, mas sentia-me atemorizada.
 
Escrevia por isso primeiro com carvão, na sua letra inclinada, desenhando em grande as palavras gigantes, mas leves.
 
O texto ficava quase transparente, sobre as cenas azuis e brancas dos azulejos antigos.
 
Nessas cenas pintadas a azul e branco havia colinas, cavaleiros, moinhos, aldeias, árvores, castelos, caravelas e mar.
 
No momento em que desenhava essas grandes palavras (o que era uma espécie de ensaio), a Maria do Mar conseguiu perceber porque é que a tarefa lhe fora pedida.
 
Qualquer coisa valia a pena naquelas palavras sobre as paisagens, com as linhas que as atravessavam, intensamente.
 
«Curioso.» Pensava a Maria do Mar.
 
Escrever a carvão dava-lhe algum conforto e segurança, porque assim podia perfeitamente apagar o que já tinha feito.
 
A Maria do Mar estava em cima de um escadote, de carvão em punho, e via que as pessoas que passavam se esforçavam por ler aquelas letras quase apagadas, ficando depois maravilhadas, quando conseguiam ler.
 
Aquilo surpreendia-a muito, mas, como tinha aquele trabalho para fazer, também lhe dava alguma coragem.

Primavera

Fragmento 6



A Primavera explode e faz explodir. As flores comovem-me. O verde comove-me. Os pinheiros com os tufos de folhas novas e aparentemente fofas nas pontas comovem-me. Cada pétala que luz me comove com uma emoção que me dói, absurdamente. Esta fragilidade que está intacta, por um momento, no meio do infinito, abala-me.

 


Livro e Bolacha

Fragmento 190


 
 
 
 

A cama e o garfo

Sonho CLXXV
 

Três bispos iam visitar o Papa, apesar de um deles ter sido banido.

O Papa era um homem humano e compassivo, ainda que aceitasse usar aquele chapéu.

Os dois bispos eram homens mais duros.

O primeiro atirava-se aos pés da figura de Cristo que estava pregada na cruz e ficava com a testa colada ao chão.

«Não consegue refrear o seu amor por Cristo.» - comentava o segundo.

«Mas esta ovelha ranhosa, Sua Eminência, só nos traz problemas.» - dizia ele, apontando para o terceiro bispo.

«A sua vida é incoerente e absurda. Segue por encruzilhadas. Opta por caminhos de que se arrepende. Insiste em permanecer no deserto. Tem demasiadas coisas por acabar. E mil planos para outras coisas que ainda nem começaram. Não queira sequer olhar para os seus projectos, Sua Eminência!»

«De que lhe serve uma tal vida?»

«Insiste em questionar os nomes de Deus. E para quê?»

«Quantas lágrimas não são choradas depois de tais destruições?»

«Sua Eminência, gostaríamos que falasse ao coração desta ovelha tresmalhada, pois ela é demasiado preciosa para se perder.»

«De que lhe serve o desprezo incauto pelos caminhos já traçados, pelas ideias já feitas?»

«Impõe-se a si mesmo uma violência que só o deixa avançar aos tombos, aos tropeções!...»

«Veja, Sua Eminência, o sofrimento que se estampa na sua face. Valerá a pena lutar com armas tão insólitas, tão pouco experimentadas, por uma alegria que é, afinal, o que todos almejamos?»

Em resposta, o terceiro bispo apontava para a identificação bordada no fato de um piloto de Fórmula 1, ali mesmo ao lado, e dizia:

«Sem as peripécias da sua vida, como é que Hans Artz seria Hans Artz?»

Um Papa. A figura de Cristo. Três Bispos. Um piloto de Fórmula 1. De seu nome: Hans Artz.

Durante o sono, a relação era clara, simples e implacável.

O título: «A cama e o garfo».

É no que dá tomar notas mentais enquanto se sonha.

Fragmento 29

 
Na escrita de pensamento, uma pergunta é uma extracção.


A arte passa, a natureza fica.

Fragmento 189




«Andrei Rublev», o filme de Tarkovski sobre o pintor medieval homónimo passa do preto e branco à cor quando Andrei quebra o longo voto de silêncio e decide voltar a pintar.
 
Depois do lançamento de um balão que traz à morte o voador louco; depois da electricidade primitiva com que o jogral imprime ritmo ao discurso que o condena a que lhe seja cortada metade da língua; depois da violência extrema da invasão tártara; depois da lenta e espantosa fabricação do grande sino; de súbito, no grande ecrã - a orgia da cor.
 
São os grandes planos da pintura de Andrei Rublev. O ouro ardente; os rostos compenetrados dos santos, sérios, lúcidos, mas sem doçura; o azul, o rosa, o branco, o vermelho; a intensidade quase insuportável dos traços mínimos de amarelo, branco, rosa, e que em corrente formam centelhas; os entrecortamentos, como soluços; as dobras quase cubistas das vestes hieráticas das figuras e, na velocidade da câmara que capta a dança abstracta do infinitesimal das cores, os movimentos do pincel nas texturas que são só pintura, pintura pura sem figura nem tema e onde o que emerge não tem nome porque congrega toda a superação humana, toda a passagem que se faz da violência à esperança, da miséria à glória, da inutilidade à acção e do absurdo à fé.
 
Como dizê-lo?
 
Porque depois do penúltimo plano em que a humidade derrete a pintura do rosto de Cristo, o que fica são os cavalos no prado a pastar, debaixo de uma chuva suave e entre uma neblina que respira e que partilha algo afim de uma apaziguação, por causa disto fomos forçados a pensar: «Ah!... A arte passa, e a natureza fica.»
 
E no entanto foi na dança abstracta que a velocidade da câmara compôs sobre as tintas sem figura que algo ainda mais extremo e pungente nos foi dado.
 
 

A crueldade humana

Fragmento 188


 
Crueldade humana?
 
Não há crueldade que seja humana.