Sobre a perspicácia natural das crianças, quando comparada com a dos adultos


Crianças 15
(Madalena e Teresa, de oito anos)


As aulas de piano, talvez pelo seu espaço pequeno e circunscrito e pela sua qualidade intimista, transformam-se muitas vezes em confessionários. Os mais estranhos e inusitados diálogos se desencadeiam e, de um modo bastante inesperado, prosseguem.
 
- Ó professora, a Teresa continua a escrever bilhetinhos de amor ao Francisco, mesmo depois de ele os rasgar debaixo dos olhos dela!
 
- A sério, Teresinha?
 
- Sim.
 
- Mas Teresinha, tu és magnífica... Estes olhos azuis... Estes cabelos de ouro.... Pareces saída de um conto de fadas...
 
- Eu só estou a dar um tempo. Depois escrevo-lhe outro bilhetinho.
 
- Logo o Francisco... que é um fanfarrão, um arrogante e que não se importa de ser cruel...
 
- Não sei o que é nada disso.
 
- Fanfarrão?
 
- Sim.
 
- É um vaidoso, um convencido, alguém que acha que sabe tudo.
 
- Ah!... Mas não é dessa parte que eu gosto nele...
 
- Podias gostar do Diogo ou do Tomás, que são uns amores.
 
- Não sou capaz.
 
- Ao menos finge que gostas de outro, para ver se o Francisco fica menos vaidoso.
 
- Não serve de nada. O Francisco nunca vai gostar de mim.
 
- Então, Teresinha?... Não podemos gostar de quem não gosta de nós...
 
- Ai!... Mas aqui dentro não muda nada...
 
- Pelo menos guarda segredo e finge que o ignoras, não lhe escrevas bilhetinhos para ele rasgar em frente de toda a gente...
 
- Pois, - diz a Madalena - eu também gosto do Diogo e guardei segredo. Ninguém sabe a não ser o João.
 
- Eu agora também sei. - diz a Teresa.
 
- Como é que sabes? - pergunta a Madalena.
 
- Madalena!... - respondemos as duas em coro.
 
É caso para dizer que o juízo sofre sérias convulsões, cada vez que nos apaixonamos. 
 
 

O fox-trot e o vestido azul

Sonho CCXX


Estávamos a aprender a dançar o fox-trot mas não conseguíamos por causa daquele vestido azul.

Sobre um noivo desconhecido

Sonho CCIX


Por causa de um desses mal-entendidos que nos podem causar o maior dos constrangimentos, a Françoise M. estava a ser alvo da corte de um fidalgo alentejano, um desses grandes proprietários de gado, que era amigo de seu pai e com cuja filha em tempos apanhara umas terríveis bebedeiras.
 
A Françoise M. via-se às aranhas para chegar à franqueza sem passar pela indelicadeza ou pela ofensa.
 
O fidalgo por seu lado exibia a sua propriedade como se de um penacho num chapéu se tratasse.
 
Mostrava-lhe com orgulho as várias salas e, numa delas, que era oval, quatro plasmas que permitiam ver televisão de todos os ângulos.
 
- Eu não tenho televisão... - dizia a Françoise, timidamente, com esperança de que isso pusesse a nu o abismo que os separava.
 
Mas o fidalgo era tão orgulhoso que não conseguia perceber que a Françoise não tinha televisão porque não queria.
 
Por fim, a Françoise lá conseguiu agarrar um pretexto e fugir dali para fora, de uma vez por todas.
 
Uma vez lá fora, suspirando de alívio, a Françoise olhou para as linhas de um muro alto caiado de branco, que emoldurava um pátio.
 
O pátio era inteiramente vazio e o muro inteiramente branco.
 
A Françoise respirou fundo, no meio daquela brancura, e entregou-se por um momento ao sol.
 
Aquela simplicidade, sim!... - aquela simplicidade é que não tinha nada a ver com esse excesso de coisas e com as coisas em quadriplicado, que não servem para nada.
 
- O que basta, basta. - pensava a Françoise.
 
Não conseguia perceber como é que todos não sofriam com a futilidade e com o lixo que constantemente produziam e, pelo contrário, pareciam tão felizes e satisfeitos com isso.
 
Se a Françoise não amasse sempre mais as cores do mundo e as estrelas, os animais, os rios e as árvores, esse que tinha desenhado aquele muro, com esse ou com essa é que a Françoise poderia ter uma relação de noivado.

Sobre a angústia de querer salvar um passarinho

Sonho CCXIII



Durante um passeio, a minha amiga C. encontrou um passarinho no chão.
 
Era pequeno como um pardal, cor de cinza prateado, com uma suave faixa branca no peito e uma popa verde-alface.
 
- Olha!... - exclamou ela. - Um passarinho!...

Distraída nos meus pensamentos, eu nem sequer vira o passarinho.

Olhava para ela sem saber o que fazer, considerando-a mais capaz de salvar um passarinho.
 
- Está tudo bem. - Dizia ela, pegando nele com as duas mãos. - Vê como ele é forte, bravo e corajoso.
 
Lançava-o no ar - e ele voava.
 
Começava por me sentir muito feliz, mas, observando melhor, conseguia ver que o pássaro voava de cabeça para baixo.
 
Mais adiante ele caía, e, apesar de ter voado um bom bocado, talvez uns bons metros, era aos nossos pés que ele caía, como se o espaço fosse um harmónio e tivesse sido todo dobrado.
 

Carpe Diem, Nuvem, de Françoise M.