Francisca M. (1)



Parece que estou a vê-la, a Francisca, no terraço da última casa em que morámos, com a Maria do Mar, em Viana do Castelo, antes de se operar nela aquela estranha reviravolta que a transformou completamente, portanto, antes da escrita do livro de orações.

Com o rosto apoiado sobre as mãos e aquele misto de candura e desencanto na expressão, uma vaga tristeza na forma como inclinava a cabeça, em suave abandono, e quase uma espécie de ausência, um estranho e perpétuo desligamento, que poderia até confundir-se com fragilidade, podia ver os seus largos olhos cinzentos que fitavam a paisagem, poisando nos campos como um pássaro que voasse da cúpula de um sonho ou do topo uma nuvem.

Parece mesmo que estou a vê-la, agora, tão perto, e ao mesmo tempo inatingível.

Em redor de uma mesa de verga, nesse terraço de velhos mosaicos de tijoleira quebrada e cujo barro se esfarelava como minúsculas migalhas de um pão duro e avermelhado, ao fim da tarde, gostávamos todos de beber, estendidos ao sol, a nossa colecção de bebidas fortes. Bebíamos rum, tequilla, às vezes vinho do porto, irish coffee ou vodka com limão.

Nessas alturas, estendidos nas espreguiçadeiras, cada um com o seu livro no colo, viajávamos, imóveis e em silêncio, sob o sol, diante da paisagem.

Julgávamo-nos acompanhados, mas estávamos, cada um, isolados na nossa cápsula invisível, submersos nesse curioso estado de suspensão anestesiada e nessa estranha solidão que é, para quem a conhece - a paradoxal solidão entre os outros.


Sobre o mínimo espaço

Sonho CXLV
 
 
Estávamos num mundo totalmente hierarquizado, com poderes firmemente estabelecidos.
 
A Maria do Mar olhava sentada no chão de um terraço para as varandas envidraçadas de duas casas em frente.
 
As casas eram feitas de madeira pintada e as varandas estavam suspensas do primeiro andar.
 
As varandas eram brancas e azuis e tinham em vez de beirados duas palas de madeira rendilhada e pintada nos mesmos tons.
 
A Maria do Mar observava cuidadosamente o interior das casas que se via através do quadriculado dos caixilhos brancos das janelas das varandas.
 
Podia ficar ali entretida durante horas, pois adorava olhar para o interior das casas e imaginar como as pessoas aí viviam.
 
Porém interrompia esta actividade e saía do terraço para entrar numa loja de roupa.
 
Precisava de comprar qualquer coisa urgentemente - porque se sentia tão feia e queria sentir-   -se bela de repente.
 
Encontrava no meio de máquinas fotográficas uma saia de veludo vermelho, uma suave camisa de seda vermelha e ainda uns sapatos que eram feitos de um material esquisito, uma borracha macia.
 
Sentia-se tão ansiosa e desconfortável que saía da loja vestida com a roupa sem tirar os preços nem as etiquetas, com uma sensação de culpa insuportável.
 
Se ao menos aqueles sapatos ultra-modernos lhe aliviassem o vazio tremendo que a devorava por dentro... e se a suave seda da caríssima camisa pudesse travar o angustiante movimento da hélice fatal que lhe girava na alma, reduzindo tudo a pó e a nada...
 
Parecia não encontrar neste mundo um modo eficaz de escapar de si mesma.
 
Passado algum tempo, entre dois homens, numa esplanada, debaixo de uma mesa, encostava cada uma das suas pernas a cada um deles, numa onda de luxúria.
 
Um deles era tímido e por isso a Maria do Mar escolhia o pior dos dois, como já vinha sendo hábito.
 
Depressa se arrependia, fugindo por um elevador para a subcave desse mundo fortemente hierarquizado.
 
Tinha despertado nesse homem um desejo insatisfeito que o levava a querer vingar-se e tinha agora de fugir como uma ratazana entre os móveis abandonados e a comida que armazenavam nos corredores das imensas subcaves.
 
A fruta estava cuidadosamente distribuída em cima de tabuleiros cobertos com folhas de papel absorvente, para não apodrecer, e a Maria do Mar escondia-se atrás de um armário enquanto o homem passava a correr, em busca de vingança.
 
O coração batia-lhe tanto que parecia querer saltar-lhe pela garganta, como um pássaro alucinado de Hitchcock.
 
Mas a Maria do Mar não se mexia, encolhida de cócoras atrás do armário e procurando com o corpo ocupar o mínimo espaço.
 
O mínimo espaço possível.


Sobre o teatro balinês - Artaud

Fragmento 166
 
«O que há, com efeito, de curioso em todos esses gestos, nessas atitudes angulosas e brutalmente cortadas, nessas modulações sincopadas do fundo da garganta, nessas frases musicais que abortam, nesses voos de élitros, nesses frémitos de ramos, esses sons de caixas ocas, esses rangidos de autómatos, essas danças de manequins animados, é: que, através do seu dédalo de gestos, atitudes, de gritos lançados ao ar, através de evoluções e das curvas que não deixam nenhuma porção do espaço cénico inutilizada, se liberta o sentido de uma nova linguagem física com base em signos e não já em palavras. Aqueles actores com os seus fatos geométricos parecem hieróglifos animados. E tudo, até mesmo a forma dos vestidos que deslocam o eixo da altura humana, cria, ao lado da roupagem desses guerreiros em estado de transe e de guerra perpétua, uma espécie de roupas simbólicas, roupas segundas que inspiram uma ideia intelectual e se ligam, por meio do entrecruzamento das suas linhas, a todos os entrecruzamentos das perspectivas no ar.»
 
[trad. de José Gil in Os Poderes da Pintura (2015), p.17]
 
«Efectivamente, o que há de impressionante neste espectáculo, - tão bem feito para nos desviar das nossas concepções ocidentais do teatro, que frequentemente lhe recusarão qualquer qualidade teatral, ainda que esta seja uma das mais belas manifestações de teatro puro que aqui nos foi dada a testemunhar, - o que é impressionante e desconcertante para nós, Europeus, é a intelectualidade admirável que sentimos crepitar por todo o lado no interior da trama serrada e subtil dos gestos, nas modulações infinitamente variadas da voz, nesta chuva sonora, como de uma imensa floresta que gotejasse e suspirasse, e nestes rendilhados, também eles sonoros, dos movimentos. De um gesto a um grito ou a um som não existe passagem: tudo corresponde como que através de bizarros canais cruzados a um mesmo espírito.»
 
(...)
 
«Uma impressão de inumanidade, de divino, de revelação milagrosa se destaca ainda da requintada beleza dos penteados das mulheres: desta série de círculos luminosos sobrepostos, feitos de combinações de plumas ou de pérolas multicoloridas e de um matizado tão belo que a sua reunião tem um aspecto justamente revelado e cujas bordas tremem ritmicamente, respondendo com espírito, parece, às vibrações do corpo. - E há ainda os outros penteados com aspecto sacerdotal, em forma de tiaras e encimados por penachos de flores em linhas rectas, cujas cores se opõem duas a duas e assim se casam estranhamente.»
 
«Este conjunto lancinante e cheio de foguetes, de fugas, de canais, de desvios em todos os sentidos da percepção externa e interna, compõe para o teatro uma ideia soberana e tal que nos parece conservada através dos séculos para nos ensinar aquilo que o teatro jamais parou de ser. E esta impressão duplica-se com o facto de que este espectáculo - popular, parece, e profano - seja como o pão elementar das sensações artísticas desta gente aqui.»
 
«À parte a prodigiosa matemática deste espectáculo, o que me parece feito para nos surpreender e para nos espantar ainda mais é este lado revelador da matéria que parece de repente espalhar-se em signos para nos ensinar a identidade metafísica do concreto e do abstracto e em gestos feitos para durar. Porque o lado realista encontramo-lo em nós, mas elevado aqui à enésima potência, e definitivamente estilizado.»
 
«Neste teatro toda a criação vem da cena, e encontra a sua tradução e as suas origens íntimas numa impulsão psíquica secreta que é a Fala antes das palavras (la Parole d'avant des mots).
 
[Artaud, «Le Théatre et son Double» in Oeuvres Complétes, Gallimard, 2004, pp. 538-539, trad. minha] 
 




 
 

(Auto)-repetição

Fragmento 165


De todos esses amores
fora o mais triste - o primeiro.

Nem amada, nem recebida,
na casa onde fora nascida.
 
 

Maria do Mar

Fragmento 116

 
 
Primeiro Primeiro
 
- BRULADO, BRULÊ,
MARILÊ!
 
- PORQUÊ?
PORQUÊ O PORQUÊ?
 
- (por favor: não grite.)
 
O silêncio treme, na ante-espera das palavras.
Bruquibraque... – é só um ruído, afinal.
 
Luvinhas brancas já não nos afectam,
nem os empoeirados de pó de talco,
como que de personalidade.
Melhor fariam, se praticassem
correr como o coelho
da Alice dormindo
à beira das águas
brilonantes briling
águas do sono infinito
das meninas-brico-brinking.
 
 
(e esta frase, peço-lhe apenas
que ma despedace até
que ela gema, suspire
e se dissolva como espuma
fumo-lume   FUM-LUM.)
 
 
Olhe: o cão que ancára, a cara que treme,
o vento que éme, o corpo que mára.
Rifo que réc, réc, réc, réc,
régua riscada no rio do corpo.
 
Ri lua, ri tu lua, rima lua, ringla comigo!...
...fala comigo finalmente a outra língua,
essa língua gás e grão de poeira
que se desfaz e faz com a língua-lua
dentro da boca, mmm… beijo que suspende
o corpo numa escada de raios lunares, d-graus de luz
ou de lágrimas-trancadas-arrancadas em que agora se destila
o corpo intensivo que tem pele infinita
e onde a nossa fala desliza
como as mãos.
 
-  ARA OCARA PÁCÁRÁ TREMBE!
 
Não de encolhas, menina-ringle,
as folhas voam primeiro enquanto
dobramos o papel.
 
 
Alçapão – Quadrados no Chão.
 
Por baixo dele, a vida acontece
mas não aqui, CUBRIQUE RUDO,
aqui há um segredo por trás do medo,
aqui é tremendo:
o ar.
 
 
Segundo
 
O que é tremendo é o ar.
Não se enganem, esses que descobrem
a violência nas grandes coisas.
Não são sublimes os rochedos,
nem as nuvens imensas, carregadas
de electricidade, o que é tremendo,
o que é tremendo é o ar,
caos irisado de onde as cores
emergem, como borboletas.