Metáfora

Sonho CCCV

Guiava o meu carro num longo túnel debaixo da cidade. Com a ajuda do GPS e do Google Maps tentava seguir pelo mapa um caminho que me era perfeitamente desconhecido. Numa daquelas bifurcações manhosas, porém, não estive com a atenção necessária para seguir pelo lado certo e fui pelo lado errado. Como corrigiria o Google Maps a minha rota? De um modo muito surpreendente, o Google Maps mandou-me sair do carro e seguir a pé. Fui por uma escadaria em caracol que subia em direcção ao céu no interior de uma torre metálica muito estreita que parecia um silo. As escadas eram difíceis, como espaldares de ginásio ou escadotes, e faziam medo. Porém, eu contrariava o medo com golpes de coragem e içava-me para cima, socorrendo-me de forças que desconhecia possuir e que me eram totalmente inesperadas. Atrás de mim vinha uma turba de adolescentes com aquela peculiar euforia excessiva e um pouco desagradável, acompanhada por gritinhos e pelas vozes fora de tom. Por fim, quando chegámos ao topo, tudo o que havia era uma vista absolutamente magnífica da cidade inteira. Era de noite e toda a cidade luzia com uma sumptuosidade inenarrável. Parecia um enorme coral vibrante e iridescente. Fiquei ali num estado de abismação e extremo cansaço, pensando em como o Google Maps se tinha enganado e em como poderia agora voltar para trás com toda aquela turba na escada tão estreita. Tinha perdido um sapato e perguntei se alguém o teria encontrado. Ninguém. E eu não podia deixar de apreciar a vista, que me embriagava como uma espécie de álcool. Que vista deslumbrante e extraordinária! O meu corpo dançava fluída e entusiasticamente em cada um daqueles incontáveis pontos de luz. Também não conseguia lembrar-me mais de qual seria o meu destino inicial, o destino para o qual corria com tanta pressa, afã e esmero, com a ajuda do GPS e do Google Maps. Para onde me dirigia afinal? Para quê voltar para trás? Como é que alguém pode de repente ser atacado por uma amnésia tão completa em relação a algo que perseguia anteriormente com tanta motivação? Por mais que puxasse pela cabeça, não me lembrava. Seria que alguma coisa de muito grave se passava comigo? Alguém encontrou um sapato que me foi dado. E eu disse: "Sinto-me uma verdadeira Cinderela." Porém, o sapato era uma sapatilha demasiado larga e que não dava para dançar. "Não faz mal. Melhor andar calçado do que descalço." Ali estava eu no topo de uma escada em caracol com vista sobre a cidade. A minha pressa desvanecia-se como volutas de fumo e a minha angústia foi lentamente tomada por um vago sub-sorriso interior que me fazia lembrar o do gato do Lewis Carrol. Era todo um absurdo ridente, aquele somatório de erros e enganos. Parecia uma metáfora da própria vida. Tanta pressa para quê? Qual era afinal esse destino tão importante e de que me esquecera totalmente?



contraponto e confissão (18)

 

Sim, é preciso tomar em linha de conta que o género humano tem muita gente para entrar e sair das lojas e para estar a ser simulada em diálogos de metrópoles. Mais gente ainda que os grãos de areia numa praia, muito mais gente do que todas as estrelas visíveis a olho nu. Nascem com essa profundidade infinita nos olhos, como quem chega de longe. Dizem, com a alegria dos rostos minúsculos, puros e infantis, obrigada por estar aqui, a felicidade de chegar não tem nome, apenas este espanto filosófico e a beatidude estampada na expressão sem código ainda. Depois tornam-se pessoas com papéis utilitários ou párias, como poeiras irregulares em franjas, gente de lado nenhum, ainda que a tua ou a minha existência se desloquem amanhã para Paris, Nova Iorque, Dublin, Lisboa. Há quem esteja sempre deslocado e há ainda aqueles cujo desejo pretende apenas que se desloquem na abstracção de um verso. Os teus versos chegaram depois do meu pequeno filme de três minutos ou chegaram precisamente com ele, ao mesmo tempo que ele? Fizeste falar o meu coração mudo. Talvez a alma seja realmente um triângulo equilátero ou um além espaço onde circulam velhas forças mágicas e finas vibrações, afins de ondas sonoras. Eu só queria capturar a manhã, a filigrana tão subtil e lavada da manhã em que o mundo torna sempre a nascer, todo inteiro. Pensava num amor impossível e em poder talvez tocar a sua essência preliminar através do espaço e do tempo, para além do corpo e da alma e da morte e do nascimento. Havia essa doçura suave do dia acabado de nascer. Havia o esplendor da aurocária e dos cedros, além do gradeamento verde da varanda meridional. Havia os espaços amplos e desertos do silêncio monumental de tanta gente dormindo, a cúpula alta do céu, a estrada não circulada e o canto sumptuoso dos pássaros, todos piando. Que o coro dos pássaros me sustivesse nesse movimento apaixonado e que fosse o cortejo transcendental e alado de uma nova forma de fazer amor - era o meu desejo não pronunciado. E então tu que ressoas em consonância com tantas cordas invisíveis e em risco de permanente desagregação sentiste porventura esse élan abstracto, sentiste-o de tal forma que o puseste em versos. O que são versos? Vectores talvez de uma dimensão assim que descrevo mal e pobremente, dimensão rarefeita e inexplicável mas concreta ao ponto de fazer vibrar uma ressonância real e subtocável e parecida talvez com as ondas sonoras que vêm com o desenho das palavras.


Se trouxeres passarinhos pousados nas mãos, é porque estás viva – de mim para mim.

Os pássaros sobressaltam-se quando bebem água.

O que trina é o meu coração.

 




contraponto e confissão (17)

 


 

"Era ter vindo ter ali, estar a tremer de solidão,

 num ápice, não tinha ninguém, não reconhecia o lugar.

Tudo tão confuso.

 

Não se podia dizer que fosse o seguir o fio de uma alucinação.

 

As estrelas boiavam no fundo de um balde." 

 

(Quero apenas citar-te, sem nenhum comentário.)




Max Ernst





contraponto e confissão (16) - sonhos


Escrevo os meus sonhos, obsessivamente, em busca de uma espécie de verdade. Que verdade? Existe pelo menos a verdade do que sentimos e vemos, essa verdade simples que a toda a hora se escapa, porque o que sentimos e vemos é sempre demais para o que podemos sentir e ver. O que sinto e o que vejo tem uma intensidade que extravasa o que sou capaz de sentir. A minha alma está sempre em busca de pequenas estratégias involuntárias para não sentir, pequenas bolhas e analgias, pequenas mortes, êxtases físicos ou amortecedores. São duas lutas contrárias. Uma, para ser capaz de ver. Outra, para não ver. Que esta espécie de verdade coincida com a realidade, esse é outro passo, outra tarefa de escrutínio. Mas, se nem sequer acedemos ao que sentimos e vemos, que haverá para escrutinar? Sou tantas vezes incapaz de os compreender, minha querida amiga, estes sonhos. Certas frases, capto-lhes de súbito um sentido ou um novo sentido no final de décadas. Tento não travar a mão nem o pensamento, apenas deixá-los fluir, com uma máxima exactidão e sem ceder a nenhuma tentação, nem plástica, nem moral, nem musical, nem de algum facilitismo como causar impressão, ou mesmo a simples preguiça ou inércia comum. Difícil. São tão imensas as forças que nos dobram e nos levam a desejar ser simplesmente agradáveis e bem-amados. O tempo passa num ápice. Pensar é doloroso e árduo, como uma corrida em que falta o ar. Ponho-me em bicos dos pés, é certo. Consigo saltar? Tento deixar livre o movimento da escrita automática, concatenada quase sem intenção. Mas o pensamento é ultra-veloz. Muda, a escrita sem som desliza na cabeça como um rolo. Que beleza! Que entusiasmo! Dessa escrita, ficarei sempre aquém. Tenho a sensação de um outro voo, eu, que não sou pássaro, parece que sei tão bem o que é voar. Não percebo o peso do corpo, nem os pés colocados no chão.


Marx Ernst 1934

contraponto e confissão (15) - interlocutores de Sócrates


É possível que estas personagens tenham mais escolha sobre o que pensar, talvez mais escolha que eu que sou abalada por pensamentos como por placas tectónicas em movimento. Principalmente quando esta espécie de abalo diz respeito aos movimentos subtis, indetectáveis, e aos grandes movimentos que lançam grandes destruições. Cada personagem pode escolher a sua via, uma via a explorar intensa e radicalmente e até às últimas consequências, até à morte, se for necessário. Será isto uma espécie de hedonismo? É possível. Apesar de toda esta invenção, também não deixo de ser uma personagem. Preciso, de algum modo, de elaborar, sobre a vida, uma narrativa permanente, ainda que instável. Decidi chamar-me A. Por vezes escrevo no feminino, outras no masculino. Queria um neutro, mas em português essa proeza gramatical nem sempre é fácil. Optei então por seguir a tonalidade em que estou no momento. Ora feminina, ora masculina, ora neutra. Em geral identifico o masculino com o universal, por causa do tanto que li em masculino. O feminino tem qualquer coisa de mais íntimo e privado, mais musical, enquanto que o neutro me é sumamente agradável, em diversas circunstâncias. Também A. me agrada sumamente, não sei exactamente porquê. Sempre gostei da aliteração do "A" no meu próprio nome, desde o momento em que compreendi o que era um "A". Também gostei que o "A" estivesse, nesse nome, no princípio, no meio e no fim. Adriana. É uma espécie de círculo sonoro, uma pequena imagem do infinito. Mas também é possível que toda a existência seja uma espécie de hedonismo. Esse estar aí. Porque também existe o sol, a paixão e os banhos de mar. Essa suave penugem quase invisível no rosto e o sabor dos lábios, dos meus e dos teus, misturados. Existe o existir simplesmente, sem mais nada, como um milagre e uma coisa sumamente aprazível. Paraíso de mundo, esplendor de árvores que dão frutos que trincamos e se desfazem na boca. Pura volúpia. Personagens que são totens, amores, vias a explorar e interlocutores de Sócrates. Diques como os da Holanda e dos castores. Pois é preciso que a terra não seja tomada pelo mar, nem a alma pelo caos. Então vamos segurar um pouco o caos com estas divisórias que são as personagens. Françoise M., de olhos verdes e longínquos. Maria do Mar dançando. F. de Riverday - morta. Artur Borboleta, tão fino, Orlando I e António Pizarro, quase antagónicos, um, na sua sensualidade sofisticada e outro no seu peculiar ascetismo. Há-de chegar a seu tempo, o caos. Há-de chegar definitivamente e não sabemos em que forma. Será o desespero, o deserto, a ausência total de esperança, a degradação, a doença, a loucura ou a morte. Mas pelo menos por enquanto vamos ter o consolo dessa ilusão inocente, que certamente será um dique contra a loucura. E de facto estaremos menos sós, teremos com quem falar, mesmo que nenhum desses convivas se entenda. Não há dúvida. Quem escreveu assim em primeiro lugar foi Platão. Ele e os vários interlocutores de Sócrates, que falam de vinho, de amores, de estradas, de caminhadas e de galos. "Para onde vais, meu caro Fedro, e de onde vens?" "Venho de casa de Lísias, o filho de Céfalo, caro Sócrates, e vou dar um passeio até lá fora das muralhas. Estive muito tempo com Lísias, passei toda a manhã sentado!"

contraponto e confissão (14) - o rosto e a máscara

 

Mas eis que a expressão do rosto obedece a inúmeras regras não formuladas e não enunciadas. Algumas, como não deitar a língua de fora nem abrir desmesuradamente a boca, aprendem-se em criança. Outras, como não rir de boca aberta, só são explicitadas pelos mais velhos no florir da sexualidade, na puberdade. Não chorar. Não gritar. Não amuar. Não fazer "má-cara." Não torcer o rosto num esgar, mesmo quando se abomina a comida. O rosto está coberto de regras, de teias, de redes, de grades, de suposições, de ideias, de mentiras e depressa se enche de manchas, de feridas, de rugas, de borbulhas, de pequenas pastas que emergem, como suaves e torpes tumefacções. Há quem tenha vergonha de corar. Por fim, os vermes hão-de comer o rosto, assim como a carne. A energia libertada dessa bela decomposição talvez dê para criar um outro universo, paralelo a este. Bacon pintou com invulgar maestria a violência que subjaz e se impõe nos rostos. Dos rostos um outro olhar mais livre pode captar as equimoses, os derrames, as torções, os buracos e os abismos, como grandes pancadas e golpes infligidos na alma. Mas todos fingimos que não vemos. Ah!... Nada disso se vê, meus queridos amigos. Não se nota. Queremos acreditar que essas coisas não são visíveis, pois não? Um sorriso puro, sem mácula, exibindo uma fileira de dentes brilhantes. Um olhar confiante, mesmo quando a alma se arrasta como o mais miserável dos moribundos, tudo isso é tão necessário como não sair apenas de meias para a rua e andar de sapatos calçados. Sim, o rosto é uma regra social. Gente que traz nos olhos a vida, onde estais? Gente que olha para a câmara sem saber o que é uma câmara, sem trazer consigo a sua "pose," onde estais? Outra humanidade, onde estais? Seriedade selvagem, onde estais? Onde estais, revolta, desamparo, tristeza? Nascemos de rosto aberto e transparente, mas depressa ele aprende as suas mentiras. Não podemos chorar nem gritar a toda a hora, nem podemos torcer o rosto nessa careta que traduz a nossa náusea permanente, a náusea que o mundo nos inspira. Vivemos no tempo dos agradáveis sorrisos, do elogio da felicidade. Que linda, a felicidade.

contraponto e confissão (13) - médica sem fronteiras, escritora


Muito jovem, pensei que teria duas escolhas. Ou seria médica sem fronteiras ou seria escritora. A primeira tarefa parecia-me extremamente necessária, algo que tinha de ser feito. Uma forma pacífica de lutar, de transformar um mundo cuja visão me inspirava tanto sofrimento e revolta. Nessa altura, na minha primeira juventude, lembro-me bem de como tive de me obrigar a parar de pensar em muitas coisas, pois corria o risco de morrer a cada segundo. Como viviam as meninas na Nigéria. Como morriam os palestinianos. Como trabalhavam os pobres. Como se prostituia no Cais do Sodré uma menina de catorze anos que nascera na barraca em frente da minha casa. Como a lama cercava as barracas, no tempo da chuva, e tudo cheirava mal por ali. Como se tirava o leite das vacas e os ovos das galinhas. Como se cortava a carne nos talhos. Só na comida que chegava à minha mesa, a comida que comia com grande apetite, se pensasse muito, não conseguiria mais engolir, quanto mais comer. A vida dos animais. Um cão magro que passasse por mim, de olhos angustiados e famintos. Aquele casal de bêbados que vivia numa casa abandonada e arrastava nos braços os dois filhos escanzelados e minúsculos e onde se via sempre, nas carinhas sujas, os riscos marcados do choro. Em cada pensamento havia um risco de colapso absoluto, se me atrevesse a pensar e a sentir o que via. A minha alma era como uma esponja que podia absorver toda a dor e explodir. Mas senti cedo que poderia viver abdicando da primeira missão, interventiva, mas não da segunda, irrelevante em potência. Estranhas certezas. Esta foi uma forma de perplexidade que me acompanhou durante muito tempo. Porquê? Não havia nada de lógico nesta escolha, pelo contrário. Escrever poderia ser um acto simplesmente hedonista, delicadamente irrelevante, e o seu alcance real sempre impossível de prever ou medir. Então para quê? Durante muito tempo me consolei com o facto de que semelhante tarefa pelo menos teria a vantagem de produzir um lixo inócuo. Quer dizer: um dano irrelevante. Melhor do que andar de carro todos os dias. O António Pizarro dedicou-se a pensar nisso. Porém, fugir de casa é muito difícil, principalmente quando se é uma menina. Os perigos sopram por todo o lado. Não valemos muito. É impossível não reparar desde muito cedo nesse cinismo hipócrita da boa sociedade que defende grandes valores ao mesmo tempo que vai descartando vidas humanas, de forma mais ou menos encoberta e subtil. Uns ganham muito, outros quase nada. O tempo de uns vende-se caro, enquanto outros trabalham de graça. E nem sempre os primeiros são melhores ou mais inteligentes, está à vista de qualquer criança. Fugia de casa, sempre à frente de um pelotão de não-razões para sair. Como fazer mais? A partir desta estranha certeza comecei então a viver o meu tempo de ficção, mas não eram máscaras os meus falsos nomes, todos eles declarações de amor, pedaços de nomes de gente que amei. A minha única máscara era o meu próprio rosto, que disfarçava numa aparente uniformidade tanta gente por dentro, tantos amores.

Contraponto para Isabel Aguiar (12) - algumas palavras sobre o amor

 
Fugir de casa é muito difícil. Precisávamos de uma casa que não nos oprimisse e onde o espaço fosse em excesso. Foi a casa que inventei. Pensámos que nela poderíamos reinventar o amor. Todos os tipos de amor. O amor entre nós, os amigos, e a paixão, o amor sexual. O nosso fracasso foi absoluto. De um certo ponto de vista, sofremos todos de um excesso de sensualidade, a Maria do Mar, a F. de Riverday, a Françoise M., o Orlando I, o Artur B., o António e eu. Claro que esta expressão - excesso de sensualidade - pode gerar um infinito mal-entendido, simplesmente porque a visão da sensualidade nos tempos que correm se prende (como aliás acontece na maioria dos assuntos) com um rol de estereótipos e banalidades. O ar é irrespirável nos tempos que correm. As ideias e os comportamentos são de uma pobreza feroz, ofuscante. Os códigos chegaram ao estado de uma penúria confrangedora e perderam parte do significado, por exemplo, para nós, tornaram-se incompreensíveis. E as ideias gerais sobre o amor sofrem do mesmo mal, da mesma doença contemporânea da produção em série e dos conceitos massificados. Pode observar-se frequentemente uma rudeza, por vezes uma alarvidade, no tratamento entre os sexos, uma mudez doentia na abordagem do desejo. Os clichés repetem-se até à exaustão total, até que ninguém tenha mais nada para dizer. Talvez por isso o amor para nós tenha sido sempre um desastre. Éramos como bólides desgarrados, elementos sem par. Concordámos porém numa coisa. Pareceu-nos que Jesus e Espinosa foram quem mais avançou no campo amoroso, ainda que com revoluções mal compreendidas e por cumprir. É verdade que fomos forçados pelas circunstâncias desfavoráveis a viver mais o amor e o sexo na imaginação do que na prática. Talvez seja triste - ou talvez não. Talvez nesta ruína tenhamos preservado esse pequeno brilho de uma precária e breve inocência - e de uma certa falta de prática, irremediável. Mas não vamos dizer muito mais, porque o que há para dizer dá trabalho para muitos livros. Sabíamos que a situação se estava agudizando. O amor e a sua expressão e realização sexual, ou não, serão ainda os elementos pilares de um romance a vir. Há nisto, não há dúvida, uma urgência. A revolução urge. Estamos a dar pouco ao mundo, em relação ao que nos foi dado. É sempre pouco, pouco, pouco. E a angústia é tremenda.

Contraponto para Isabel Aguiar (11)

 

O rosto é que é a máscara. 
É preciso inventar qualquer coisa para poder tirar o rosto. 
É preciso fazê-lo depressa, antes que se acabe o tempo. 
Colocar chapeuzinhos de sol nos pulsos e nos tornozelos. 
Uma saia de palha, como nas tribos da Guiné. 
Máscaras rectangulares, como dançarinos do Mali. 
Que espanto, o rosto no espelho. 
Que estranheza. 
Teria três, quatro anos? 
Perguntava: é isto? 
Esperava talvez que fosse outra coisa. 
Koala, tigre, lagarto, borboleta, flor. 
Tudo num rosto parece tão desavindo. 
Os olhos, o nariz, os dentes, o cabelo, as pestanas, as sobrancelhas. 
A boca por dentro. As amígdalas. 
Será que conseguiremos um dia amar o nosso rosto? 
Em fotografias que já não são as do meu rosto actual,
então de súbito sinto que aquilo era eu.
O tempo voa. 
A consciência de ser alguma coisa é sempre desfasada. 
Talvez um dia depois de morta 
olhe para o meu último rosto muito enrugado e suspire por ele. 
Teremos certamente um ou mais rostos por ano. 
Talvez a maior estranheza talvez seja não ser outra coisa. 
Um pássaro. 
Uma chita veloz. Um  raio de luz. 
Uma pedra. Uma nuvem de pó. 
Será a memória filogenética 
ou antes a possibilidade de ser realmente qualquer coisa mais plástica? 
Uma expressão mais abstracta e acidental da vida? 
Talvez a simples sensação de ter sido um embrião no ventre materno 
que em tempos abandonou as guelras e em que as mãos, 
antes de se separarem os dedos, foram barbatanas. 



Contraponto para Isabel Aguiar (10)

 

Não é um comboio de corda, o coração. Não gira nas calhas de roda. No fim do poema, esta frase é como um encolher de ombros. Uma desistência. Belo remate bem composto (socialmente bem composto, intelectualmente aceitável, digamos assim), para quem antes tanto transgrediu, Fernando Pessoa. Bela saída, para quem lançou uma bomba. Depois de disparar o obus saio encolhendo os ombros. Já que tudo é nada e o infinito nos trespassa, porque não encolher os ombros? Deixem-me, deixem-me. Sabes que há perfis que estão no silêncio. Quem tu és nunca se diz. Seres semi-nus de convenções passeiam nas ruas da cidade. Nas ruas da cidade são gente. Figuras andantes. São reais e aqui quando escrevo serão já ficção? Serão ainda reais, se não estiverem mortos? Aqui desejo que andem eternamente pelas ruas da cidade. Enquanto houver ruas, cidades e gente que ande por elas e leia palavras como 'ruas', 'gente', 'cidades'. Será? 

Para Kant existiam as coisas que podem ser conhecidas. Digamos, com o nosso vocabulário moderno, o mundo material, que tantas vezes identificamos com a realidade. Essas coisas são as coisas de que podemos ter uma experiência. Coisas que podemos ver, sentir, medir, pesar, experimentar e cuja experiência pode ser repetidamente verificada e partilhada. Com os progressos da ciência e da tecnologia, o mundo material tem-se expandido de um modo surpreendente e notável, o que deixaria Kant muito possivelmente semi-louco de alegria. Coisas que antes pertenciam ao domínio da especulação, como as partículas infinitamente pequenas da matéria, imaginadas há mais de dois mil anos por Epicuro, são hoje factos da realidade experimental. Também a minha imaginação da alegria de Kant pertence ao domínio da especulação. Se Epicuro entrasse hoje num acelerador de partículas, como se sentiria?

Segundo Kant, para além dessas coisas reais, de que se ocupa o entendimento (talvez a faculdade da razão que o senso-comum propriamente identifica como razão), existem as ideias da razão pura, que no entender de Kant são absurdamente escassas (apenas três), mas suficientemente avassaladoras para conduzirem ao delírio qualquer espírito pragmático que por elas se aventure. O mundo como totalidade (hoje diríamos, o cosmos); Deus; a alma ou, dirás tu, minha amiga, seres semi-nus de convenções, que passeiam na cidade, como nós.

Que outro modo teremos de pensar e conhecer o avesso do corpo a não ser por intermédio da arte, do amor, da poesia, da literatura e da ficção, talvez da filosofia? Não deve ser errado afirmar que nos apercebemos da alma uns dos outros sempre por intermédio de recursos muito afins às técnicas da ficção. Há a expressão dos rostos, que muito engana. Principalmente quando especulamos sobre o que poderá motivar certo rubor, certo constrangimento, certo baixar dos olhos. Enganamo-nos frequentemente, em especial com as crianças, conhecidas pela sua transparência. Há a narrativa das acções, que temos de compor como quem escreve um romance. Com recursos de memória escassos e com julgamentos flébeis, assentes em estacas. Há quem se questione muito e quem não se questione rigorosamente nada. O certo é que a cada verdadeira questão se arriscam as entradas no caos. E não só as entradas no caos, por vezes algumas formas de loucura e de delírio. Uma questão é sempre um desabamento. Por isso podemos compreender aqueles que em termos de pensamento se comportam como comodistas, dogmáticos e até inertes. Será muito possivelmente um regime de sobrevivência. Talvez o velho instinto biológico de manter o dispêndio da energia do sistema no mínimo, uma ecologia natural. Eis uma defesa da estupidez. Se formos juízes de factos pouco sobra do tanto que é poeira. Valem muito as sensações de pele, a intuição, certas visões absurdas. Uma via paralela, mas não descartável. Há a interpretação das palavras, os rastos dos diálogos, que recompomos com dificuldade. Enfim, o que sobra? A ficção como alternativa da técnica? A ficção como andaime para uma técnica futura, para um conhecimento futuro? A ficção como um trilho do desejo, porque a todo o conhecimento, o desejo o precede? 

Não é o coração que gira. É a alma. E ainda não temos outro modo de a tratar. De certa forma, avançámos mais em relação aos corpúsculos e ao mundo como totalidade.

Contraponto para Isabel Aguiar (8)

 

Orlando I, António Pizarro e Artur Borboleta.

Com o tempo, vão conhecê-los. São muito diferentes. Parece até que nunca poderiam ser amigos. Orlando com aquela expressão maliciosa. Quem é que me lembra? Em parte, o actor John Malkovich, especialmente nas Relações Perigosas. Mas apenas numa certa tonalidade da expressão, porque o rosto é latino, os cabelos e olhos negros, penetrantes e jocosos, a figura pequena e um pouco atarracada, sensual. Já o António, fino, franzino, pálido, um pouco esquálido, preocupado, sofrido, atormentado. Qualquer coisa de querer ser invisível, de querer passar despercebido, de nunca precisar de nada. O Artur? Nefelibata, fora de tudo. Olhos azuis, cabelos muito louros, quase esbranquiçados. Figura pequena, infantil, quase menina. Aquele infinito de criança no olhar desprendido, desapegado de tudo, e contudo alegre. Uma doce indiferença em todos os gestos. E destes três quase que não há história, apenas livros.



Contraponto para Isabel Aguiar (9) - Jogo perigoso

 

Muitas vezes, quando se anda na rua é quando mais pensamos, como se pensássemos com os pés. Estamos na rua em horas determinadas (eu e tu) - e também em horas não determinadas. Sabes que amo especialmente as madrugadas desertas, pelas quatro da manhã. Os pássaros começam a cantar quando todos dormem. E há uma textura inenarrável no ar, uma subtileza da manhã. O dia vem limpo, envolto em silêncio e humidade. É uma nova volta da Terra. 

Àquela hora por vezes estou na rua. Não tomo por modelo os meus personagens porque eles estão sempre presentes, como totens. Totens é exactamente o que eles são. Por vezes penso: "Isto é a Riverday." "Isto é a Maria do Mar." "Isto é o Orlando." Isto o quê? Talvez esta coisa de existir. As visões de tudo entram-nos pelos olhos com um esplendor insuportável, com tamanha monumentalidade. Tanto espaço. Tonalidade e velocidade dos afectos, que marcam temperamentos. Correntes de pensamento. É só a esquina de uma rua, levemente esbranquiçada pela fraca luz de um candeeiro público. É só um recorte de muro. Quase nada. São só as folhas dos choupos adejando na luz, como mordentes barrocos tocados numa passagem virtuosística. Nada de assinalável. Mas que imensidão. O fluxo das tuas sensações é uma linha demasiado ardente, demasiado rápida. Sentes que aceleras ao ponto da ruptura total. Olhar para uma árvore e ter uma sensação. Uma sensação compósita e veloz como certas passagens orquestrais de um concerto Brandeburguês. Uma sensação de Deus. E depois todo o pensamento de como isso possa ser possível. Sentir, no deserto de uma enorme solidão, inapagável, incontornável, impossível de redimir, uma aguda falta de amor. E o desejo alegre de morrer, de voltar a ser pó de estrela, simples partícula de um cosmos mineral. Um desprendimento, por vezes ridente, por vezes quase cruel. O desapego que talvez seja dos mortos. A paixão e, no extremo oposto, uma delicada indiferença. Esses totens invisíveis seguem-me por todo o lado, como uma escolta. Batalhão do entre-caos. O que me levou a isto? (O que me levou a isto, não sei.) Mas é como dizes: tomar como modelo uma criação de si mesmo, estar sempre em contra-espelho, em desdobramento. Se ao menos durasse apenas uma hora por dia. Mas ainda sonho incluir tudo e todos na contra-acção de uma escrita, essa humanidade, como dizes, que talvez não queira saber de nada, só de existir.


Contraponto para Isabel Aguiar (7) - Raparigas


São três raparigas.
 
F. de Riverday, Maria do Mar e Françoise M. 

Catarina Terra, o nome verdadeiro de F. de Riverday. Francisca, o nome de Françoise. 
Serei uma delas, uma das raparigas? De mim, apesar do muito que me escapa, posso dizer que isso talvez seja possível. Talvez seja uma rapariga. F. de Riverday e a Maria do Mar suicidaram-se. A Francisca desapareceu. Mandámos dragar um lago à sua procura. Como se evaporou? Riverday era quase uma criança. Escolheu uma arma de fogo. (E agora, ao escrever, observo que troquei sem querer a palavra 'arma' por 'alma'). A Maria do Mar encheu o forro do casaco de pedras e tornou a cosê-lo. Parece que tenho esse casaco nas minhas mãos, todo molhado. Grande demais para a Maria do Mar, um casaco de homem. Afogou-se. As águas estavam demasiado geladas, naquele dia. Porquê estas histórias, estes acontecimentos? Porque é que as coisas foram assim? Quanto a mim, não sei o que um dia farei. Ainda não descobri o que sou e é certo que o tempo avança e fará de mim uma ruína. 

Ainda que venha a morrer de pé, também morrerei.



Contraponto para Isabel Aguiar (6) - O ar

 

Oxigénio. Atmosfera. Nitrogénio.

É bom que não nos falte o ar.

Céu. Cosmos. Espaço. 

Firmamento. Infinito. Universo.

Vácuo. Vazio.

Sopro.

O que é o ar?

Porventura qualquer coisa 

que te insuflei, vida,

meu grande amor.

Ignição. Vento. Voragem.

Fôlego. Respiração.

Vibração. Vislumbre. Glimpse.

De outra coisa se trata, porém,

quando falamos

de "passear um ar,"

quando se tem um ar.

Um aspecto, digamos assim.

Um aspecto subtil

que dá pistas sobre a alma,

quiçá.

Um ar de quem pensa

ou de quem tem a ideia

de fazer alguma coisa.

Um ar infeliz,

muito, muito infeliz.

Não me curei 

de nenhuma personagem.

Estão sempre ali.

Permaneço doente dessa invenção

 e eu mesma acabei

por passar a esse status:

de real, passei a cenário.

Todos os dias, todos os dias.

Não se trata de um duplo. 

Ou melhor, de duplo, 

apenas a esquálida sombra,

inicial com ponto:

A.

Os outros 

serão sempre seis.

Contraponto para Isabel Aguiar (5) - O livro da personagem

 

Perguntaste: "Poderás escrever o livro da personagem?" Pensei imediatamente: "Sim." Há quem diga que personagens são pessoas em livros. Aquelas pessoas que por ali aparecem. Parece que serão feitas com pedaços de muitas coisas. Palavras, diálogos, descrições, desejos, memórias, visões, perceptos, afectos, análises, pensamentos. Aparecem por ali tal como as pessoas de carne e osso nos aparecem: por bocados. Tal como nós a nós mesmos nos aparecemos: truncados. Aparecem como visões e sensações e são como todas as formas de consciência e percepção: avançam (ou não avançam) por flashes. (Porque podem constituir-se sem nenhum progresso. Isto é, podem fazer-se sem avançar.) Como paisagens encandeadas por clarões. Compõem-se e ganham vida própria, uma vida peculiar que porventura nos atravessa. Personas, aragens, passagens. Mas estas personagens, cuja aventura é escrever os seus livros, que são elas? Linhas de fuga? Caminhos? Vias de experimentação? Companheiros secretos? Disfarces? Afirmações? Como todas as personagens, são como sensações que se fazem da existência dos outros e nossa. Mas são outra coisa ainda. Sentido. Missão. Destino. Paixão. Vida. Morte. Confirmação. E outra coisa ainda. Outra. Máquinas de existir, sentir e pensar. Modos de existência.

Desprendimento post-mortem

 Sonho CCCIV

Tinha uma sensação estranha na boca. Com os dedos, retirei debaixo da língua uma pequena moeda, lisa e fina como uma hóstia e brilhante como prata, sem nenhuma inscrição. Mas não era apenas uma, eram muitas. Nasciam como gotas de saliva debaixo da língua. Pensei que podia haver um fenómeno magnético entre as moedas. Uma atrairia sempre mais. Por isso teria de as tirar todas de repente e de uma só vez. Foi o que fiz e, de facto, o estranho fenómeno chegou ao fim. Não queria saber daquelas chapas. Meti-me numa carrinha com o mecânico da Galp para reactivarmos a bateria do meu carro, que se fora ao ar. De repente ele atirou-se porta fora com o carro em movimento e gritou: "Tire o cinto!..." Pensei que lhe tinha dado um ataque de loucura. Num segundo me apercebi que o carro disparara sobre a falésia e caía a pique sobre o mar. "Nada a fazer. É tarde de mais." Mas o carro continuava a cair, parecia que a falésia não tinha fim. "Talvez seja melhor fazer alguma coisa." Abri primeiro o vidro, pois parecia-me impossível fazê-lo debaixo de água. O cinto estava encravado. "Logo agora." Lancei-me pela porta mesmo a um segundo do embate. O mar estava coberto de vagas alterosas. As minhas condições não eram melhores. A morte por afogamento seria pelo menos rápida. Morrer contra as rochas da falésia, pelo contrário, parecia-me um exercício de tortura medieval. Equacionava as minhas hipóteses de sobrevivência com um desprendimento paradoxal, quase como se já tivesse morrido. De que nos serve desesperar, se já estamos quase mortos? Decidi afastar-me o mais possível e nadar ao longo da costa. Foi o que fiz. A minha energia era óptima e o meu estado de espírito excelente. Nadei até que me deparei com um grupo grande de surfistas. Misturei-me com esse grupo. Não tinha fato nem prancha, mas não me apetecia falar. Para quê contar uma história complicada e além disso incompatível com a minha tranquilidade? Sempre sonhara elevar-me a essa neutralidade de Duchamp, esse spleen e fino humor que se captava na sua magreza dançante dentro dos fatos. Sem êxito. Mas agora, sem qualquer intenção ou empenhamento, alcançara uma espécie de desprendimento post-mortem, talvez por cansaço ou por excesso, quem sabe?

Contraponto (3)


Algures deves saber, porque assim começas, que em todas as casas estive sempre de passagem. Saberás, certamente, com essa inconsciência lúcida dos que não medem o que sabem, que em todo o lado estive de passagem, como um estrangeiro ou como um pária. Em todo o lado senti que não conhecia ninguém. Ou que ali estaria por pouco tempo, mesmo que estivesse muito. Cheguei a divertir-me, se é que tal conceito se pode aplicar, imaginando-me um turista na casa que era a minha, espião nos vários locais por onde passava. Estava ali como observador ou como alguém que tem uma missão secreta e insuspeita. As coisas que via... nada tinham a ver com o que se pudesse supor que visse, não é verdade? Era, se tal se pode imaginar, uma personagem ao avesso, pois por fora parecia pessoa, mas, por dentro, para poder suportar tanta estranheza, me ficcionava como outra coisa: turista, espião, vagabundo ou simplesmente de passagem - uma pessoa de passagem, espécie de pária.


(Textos para Isabel Aguiar, a autora dos excertos aqui citados e que me lançou o desafio de escrever a partir de "Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita")




Contraponto (4)

 
Outra casa houve, porém, a que inventei, e de que se pode dizer: "É uma teoria dela própria". Chega-se por um largo caminho de ciprestes, todo em terra batida e que cheira tanto a poeira seca no Verão. Na entrada, diante das escadinhas que sobem para o terraço de tijoleira muito gasta e que borda toda a fachada frontal, com as altas janelas, está a fonte de velho calcário. Coisa simples, vagamente romântica. Mas a Maria do Mar, que deixou apodrecer o telhado por falta de obras e reparações, nunca permitiu que ali a água deixasse de correr. A água saúda-nos com o seu canto tamborilante que soa alto entre os pios dos pássaros e o restolhar das ervas e das folhas das árvores no campo. No murete do terraço, pequenas figurinhas humanas em estilo italiano, muito arruinadas, mas com uma dignidade imaculada, intocável. A sala dos nenúfares, verde, com as duas poltronas gastas e a mesa pé de galo. A biblioteca. A sala de jantar pintada de vermelho escuro. Por todo o lado uma imensa frugalidade e uma rarefacção de tudo. Móveis reduzidos ao absolutamente essencial, pontuando aqui e ali os espaços. A horta e o pomar perfumado, nas traseiras. O roseiral. Os quartos muito simples com o chão encerado e as cortinas brancas de linho, cortadas a direito. O grande segundo andar das danças da Maria do Mar. E a parte onde o telhado ruiu e onde a chuva corre agora sobre lonas e calhas, que eu filmei. Da casa da Maria do Mar em Viana do Castelo nem a planta existe, apenas textos. Quem sabe, um dia, o filme.


(Textos para Isabel Aguiar, a autora dos excertos aqui citados e que me lançou o desafio de escrever a partir de "Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita")

Contraponto para Isabel Aguiar (2) - um título


Uma lembrança parece ser uma espécie de remake. Chamemos-lhe eco, sombra, cadência, variação. Uma coisa de outra coisa? Será que a lembrança é sempre como narrativa de acontecimento, por assim dizer, uma coisa de segunda instância? 

Nesse tempo em que nos transformávamos em raios de luz à custa de vodka e gin, todos nós, as sete personas, excepto o Artur Borboleta, todos nós nesse tempo partilhámos uma estranha e avassaladora sensação comum. Éramos como fluxos de partículas, feixes de luz, fachos, linhas de gás. Éramos corpos ardentes em corridas suspensas de dispersão, liberdade infinita e velocidade infinita. Éramos só a ausência do limite e o prazer absoluto, para além de todo o prazer. Sem respiração, linha contínua, pulsar abstracto de coisa intangível mas que aparece tanto em certa música, tantas vezes na música de Bach, para dar um exemplo. Uma sensação, só uma sensação. Mas uma sensação é uma coisa compósita. É uma coisa existente, sem dúvida. E esta sensação vinha acompanhada de uma outra sensação que era a de ter uma lembrança, recordação, dejá vu. Vivemos esta sensação antes, não há dúvida. Antes, quando? Antes de existirmos? A sensação tem incluída nela uma outra sensação, a sensação de ser uma coisa conhecida. Conhecida do passado. Vivemos no momento a sensação com toda a intensidade e nitidez, mas não sabemos que coisa foi a que vivemos previamente e que deu à sensação a tonalidade, o timbre e o aspecto de uma recordação, de um dejá vu ou de uma lembrança inédita. Podemos falar no plural, isto é comum a todos nós. Vivemos como sensação a lembrança de uma outra sensação. Lembrámo-nos de uma coisa que nunca vivemos, uma coisa que aparentemente não parece ser possível viver. E eu pergunto: será que isso foi realmente qualquer coisa antiga de que de repente nos lembrámos, coisa enterrada e esquecida e que a sensação nova foi buscar? Ah!... Lembrámo-nos de voar entre as estrelas com velocidade infinita e liberdade absoluta. De circular em linha recta por uma pradaria abstracta. De correr, correr, correr, não como corpo, só como luz. De arder continuamente numa chama inextinguível e de ser chama e cinza ao mesmo tempo, poeira e fluxo ao mesmo tempo, força e rarefacção, queda e suspensão ao mesmo tempo, de um modo inextinguível. Apenas voo, afirmação e velocidade... Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita. É um belo verso que obriga a pensar e que acorda em mim uma velha recordação. A de estar enrolada numa toalha de praia, com doze anos, depois de sair do mar. De olhos fechados, os meus dedos brincavam com os fios esfiapados do tecido, sem que me apercebesse que era uma vespa. Tranquilamente brinquei com a vespa de olhos fechados, até que chegou o momento de a apertar entre os dedos. 

Contraponto para Isabel Aguiar (1) - admiração

 

O que amo na escrita de I. é a velocidade e uma prosódia peculiar, entrecortada, que se elabora como ritmo da sofreguidão, da emergência. É difícil analisar o que se admira na escrita de alguém, como no corpo, na alma de alguém. É difícil passar da impressão, dos afectos e das percepções ao pensamento. Talvez seja impossível cortar uma fatia do infinito, sem o desvirtuar. É impossível? O pensamento também é infinito, também voa a uma velocidade infinita, que nos escapa. Já no século XVII, muito antes de Freud, Leibniz se apercebeu dos "pensamentos voadores," aqueles que vão tão rápido que nem damos por eles... e não há dúvida que há, nas operações de pensar sobre alguma coisa, algo de semelhante a trinchar um animal, como observou Platão. Há uma violência terrível quando se pensa. Desmanchamos tudo. Abrandamos ao ponto do inenarrável. Congelamos. Por vezes temos a sensação de morrer aos poucos, bocado a bocado. As lentes de aumentar transformam os poros da pele em crateras lunares, células em galáxias ou universos, veias em ramos de árvores, gafanhotos em labirintos. Existem muitas máquinas possíveis para pensar. Pintar, escrever, dançar, torcer o corpo. Outras, mais tradicionais. Se vamos longe demais, perdemo-nos e é verdade que arriscamos, para sempre, uma difusa e efectiva ruína. Que ruína é essa? O desnorte? O não saber quem se é? A angústia? O infinito? O nada? Amo a escrita de I. porque corre apaixonada em direcção à falésia e fica ali a balançar, como um corredor incauto preso num arbusto. Ambos tão frágeis e fortes, o corredor e o arbusto. Cairão? Esta escrita fica ali na margem da fascinação pelo fundo, suspensa da vertigem. Porque nesta escrita o tempo está sempre a acabar de se fazer e agora imediatamente voa. É como se faltasse o ar para o que tem de ser dito. O que tem de ser dito e pensado não cabe na vida, ainda menos nas palavras, extravasa por todos os lados. Há esta urgência tão pungente e dolorosa de agarrar o agora, porque o tempo não regressa nunca e a vida acontece de uma vez por todas em cada gesto e não se repete. É o que amo aqui, chamemos-lhe escrita.

O pecado original

Sonho CCCIII

Isabella Roosevelt e Christie Mary eram católicas praticantes. Frequentavam a missa com regularidade e tinham comprado o último livro do Papa Francisco, A vida depois da pandemia. Anaïs D. gostava de entrar nas igrejas desertas e de se sentar lá dentro a olhar para a luz e a pensar e por vezes talvez se pudesse dizer que rezava ou que entabulasse um solilóquio com um deus desconhecido ou com um génio submerso nas trevas de si mesma, quem sabe? Nunca pudera entender a divina trindade, nem nenhum dos mistérios que lhe propunham. Nem mesmo em criança fora capaz de entender a pombinha, nem que as mulheres não pudessem ser padres. Não entendia que deus fosse pai em vez de mãe, ou que fosse alguma dessas coisas. Amava a história e a figura de Cristo, mas não tolerava nem compreendia a crucificação. Causava-lhe uma tristeza mais do que infinita que um homem ou um deus tivesse de morrer numa cruz para salvar os outros. Não entendia a abstinência sexual como forma de castidade. E então a sensualidade não é uma celebração? Talvez a coisa que entendesse melhor fosse aquele ritual estranho, mas sensual, de fazer parte do corpo e do sangue de deus, comendo-o. Mas causava-lhe uma angústia rasteira e malsã aquela culpa que vinha de Moisés, do velho Testamento. Não farás, não farás, não farás. Jesus trazia-lhe um "sim," nos seus dois únicos mandamentos. Ama os outros como a ti mesmo e Deus acima de todas as coisas. E bastava. Tinha tanta pena de não poder rezar em conjunto. Da sua fé poderia talvez dizer-se que era anárquica. Com dificuldade a comunicava, de tão fora de tudo que estava. Isabella Roosevelt tinha comprado um belíssimo guarda-chuva que se libertava automaticamente da água da chuva de maneira a não pingar o chão da casa. Anaïs D. considerou que esse artefacto era tão interessante que tinha de adquirir rapidamente um igual. Mas quando viu o trabalho que dava colocar as doze varetas do guarda-chuva em posição para que não pingasse a água no chão da casa, reconsiderou. Não achou que o resultado da equação entre o esforço e o resultado valesse o investimento. Mais simples era deixar o guarda-chuva à porta, a secar. Christie Mary, por seu lado, relatava que o pecado original fora cometido num cacilheiro a caminho de Cacilhas. E que o castigo atribuído à mulher consistira em obrigá-la a andar de cá para lá, entre as duas margens do Tejo, infindáveis vezes e pagando do seu bolso todas essas viagens inúteis. Que maldade!... - pensava Anaïs. Não basta a vida caótica e incompreensível. Não basta o infinito e o nada. Não basta a deriva. Não basta este profundo desamparo de existir. É preciso ainda castigar os frágeis seres humanos e mais ainda as mulheres por terem provado uma maçã.




Certas incógnitas nunca encontram solução

Sonho CCCII

Anaïs D. foi dar um passeio com Mikhail Ivanovich, Misha, e não resistiu a fazer um jogo de sedução um pouco infantil, na verdade, talvez demasiado infantil. Anaïs pendurou-se de um muro e pediu a Misha para vir buscá-la, mas Misha não foi. Misha amuou e sentou-se num degrau do passeio com os joelhos ao léu, por causa dos calções de Verão. "Que parvo!..." - pensava Anaïs. "Era uma maneira tão fácil de me pegar ao colo... e depois sabia-se lá o que podia acontecer..." Um casal de velhotes passeava por ali com a neta pequena, que devia ter nove anos. Eles perceberam de imediato a situação e olhavam de esguelha para Mikhail, sem disfarçar um certo dó. "E agora como é que saio daqui?..." - pensava Anaïs. Talvez pudesse saltar, mas ainda era um bom bocado. "Já me meti em sarilhos." Os velhotes mandaram a neta. Era uma miúda franzina, mas desempoeirada e esperta. Logo arranjou maneira de desenrascar a pobre Anaïs, a quem este estilo de planos de um modo geral saía sempre gorado, sem que chegasse nunca a perceber porquê.


A visita do médico



 Sonho CCCI

Com o uso da máscara, por causa da pandemia, Anaïs D. tivera um grave problema de pele no rosto. A reacção fora tão violenta que o seu rosto ficara em sangue. Mas o médico, um senhor muito perspicaz, fora capaz de a curar com uma simples observação, um antibiótico e algumas recomendações. A. usava agora mais a viseira que a máscara, sempre que possível. Passados alguns dias, o médico viera visitá-la a casa, para ver se estava tudo bem. Recuperar um rosto não é coisa de somenos. Anaïs sentia-se profundamente agradecida e reparou de repente que o médico era um homem muito interessante. Sentiu um desejo enorme de lhe lançar os braços ao pescoço e de o beijar, mas como é que se faz uma coisa dessas? «Você é um médico fantástico... e ainda por cima veio ver-me a casa... não sei como lhe agradecer!...» Já na saída, tudo lhe caía em cima da cabeça, ao médico. Eram os livros de uma estante que estava em cima da porta, era o bengaleiro. Os dois riam como dois palermas, porque era tão cómico. «Parece que temos qualquer coisa a resolver!...» - exclamou Anaïs. Mas se ficou ou não resolvido não se soube pelo sonho.