Sobre a impossibilidade de ficar indiferente

Sonho CCIX



Era uma casa cujo interior tinha sido construído ao contrário.

Todas as divisões que deviam ser iluminadas pela luz solar - os quartos, as salas e a cozinha - tinham sido colocadas no interior da casa. E todas as divisões que podiam prescindir dessa luz - os corredores, as casas de banho, a arrecadação e a despensa - tinham sido colocadas no exterior da casa.

A casa não era minha, era de um amigo. Não deveria ser ele a cuidar desse assunto?

Mas isto incomodava-me muito.

Indignava-me com o construtor daquela casa.

Sentia-me sufocado.

Um quarto sem janelas, e um corredor cheio de janelas.

Uma sala sem janelas, e uma despensa com janela.

Foi mais forte que eu.

Um dia, bati à porta com duas picaretas, uma em cada ombro.

- Vamos a isto? - perguntei.

- Começamos por que parede?
 

Lusco-Fusco

 
 
 
 
 






Sobre os homens e os pássaros

Sonho CCVIII



Os homens cortejam-se ao contrário dos pássaros.

No caso dos pássaros, eles é que se emplumam de cores variegadas e preparam o ninho, eles é que lançam os cantos mais elaborados, enquanto elas, cinzentas e pardas, parecem quase iguais umas às outras.

No caso dos homens, porém, são elas que se aperaltam e, eles, de um modo geral, quase todos se vestem de igual. Sempre de calças. Sempre de cabelos curtos. Sempre sem maquilhagem. Essa coisa de usar um chapéu com uma pluma ou um sapatinho com um laço de seda, isso foi há muitas dezenas de anos atrás, num mundo que já se extinguiu. Que homem hoje se vestiria com umas belas meias de seda cor-de-rosa e uns macios calções de veludo?

Será justo que as mulheres se divirtam a compor múltiplas personagens com os seus infinitos adereços e depois acabem por cortejar um homem que é sempre o mesmo e que se veste sempre com as mesmas pardas roupagens?

Afinal, entre o reino das aves e o dos homens impera apenas este curioso denominador comum - o da desigualdade entre os sexos.

Sobre a serpente e a maçã

Sonho CCVII



Era uma empresa de sucesso, com uma publicidade desleal e perigosa.

No passeio, em frente da porta, ardia uma lamparina sobre um suporte, com uma chama azul e difusa, que atraía a atenção de todos os que por ali passavam.

A lamparina, como estava à altura do estômago de um adulto, pegava fogo às crianças e aos incautos que por ali andavam.

Quando isso acontecia e algum distraído era apanhado era de imediato lançado o alarme e vinham os bombeiros em grande velocidade.

A Maria do Mar, parada no passeio, viu uma criança com o cabelo na parte de trás da cabeça a arder, enquanto todos gritavam. Segundo aquela gente, porém, tudo acabou em bem, e o homem que salvou a criança em chamas foi considerado um herói.

Não foi motivo para desligarem a lamparina, pois tudo isto chamava ainda mais a atenção de todas as pessoas e aumentava o fascínio pela lamparina e pela porta da empresa e, consequentemente, por tudo o que estava ligado àquela empresa.

Como precisava desesperadamente de trabalho, a Maria do Mar decidiu vender a alma ao diabo.

Dentro da empresa havia um homem que a magnetizou com a sua sensualidade insinuante.

Devia ter os seus cinquenta anos.

Era qualquer coisa entre as linhas do seu nariz e dos seus olhos azuis, frios como os de um lince, mas intermitentemente bem humorados. E qualquer coisa no seu corpo um pouco atarracado que a prendia como se fosse um íman.

A Maria do Mar envolveu-se com o homem e abraçaram-se os dois numa espreguiçadeira à beira-mar.

Como era Inverno, estavam vestidos, e a Maria do Mar apercebeu-se que não queria prosseguir.

Ficara com um ataque de acne, como o seu corpo tivesse decidido falar o que lhe ficara entalado na alma.

- E esta?... - pensou a Maria do Mar, observando com desgosto a sua cara no espelho. - Parece que tenho treze anos.

Quando regressou, e apesar de terem passado menos de cinco minutos, o homem estava com outra mulher e tinham cada um uma criança entre as pernas.

Como a Maria do Mar levava uma maçã na mão, ele, vaidoso, fez uma expressão enfastiada.

- Não!... Não quero essa maçã!...

- Parvalhão. - pensava a Maria do Mar, observando tudo minuciosamente.

- Mal sabes tu que esta maçã não é para ti. É para mim.

E deu uma dentada sonora na maçã, que era bem rija.

- Devem ter isto em comum. - pensou a Maria do Mar, olhando para ambos com detalhe.

- Uma criança entre as pernas. Mas que raio tenho eu em comum com este homem?

De regresso à casa de banho, a Maria do Mar colocou a cabeça debaixo da torneira.

A sua cabeleireira fizera-lhe um corte horrível, abominável. O seu cabelo estava empastado com uma massa insuportável de qualquer coisa que a Maria do Mar não fazia ideia o que fosse.

Esfregou a cabeça com espuma até se ver livre de tudo aquilo e, quando terminou, cortou o cabelo da maneira mais selvagem que foi capaz.

Pelo menos agora que parecia saída de um presídio ou de um manicómio sentia-se mais de acordo consigo própria.

A Maria do Mar pegou no carro e, por acaso, encontrou aquele mesmo homem que a traíra, andando a pé, cosido com um muro que ladeava a estrada.

Trepou por ela um impulso de crueldade.

Encostou o carro ao muro como se fosse esmagar aquele homem, o dono da empresa.

Mas isto não durou muito tempo.

A expressão de pânico na cara do homem de súbito petrificou o seu instinto de crueldade.

Parou o carro e abriu-lhe a porta:

- Queres uma boleia?

Agora já se tinha curado do acne e divertia-se intimamente com aquela expressão entre o terror e a perplexidade que flutuava na cara do homem.

O homem entrou, pois não tinha outro remédio.

A Maria do Mar tencionava deixá-lo mais adiante, num sítio decente.

- Como a carne é fraca!... - pensava ela.

Porque ao mirá-lo de alto abaixo podia sentir os olhos a ferver e, entre as pernas, um calor que a derretia e se propagava de alto a baixo.

O desejo circulava devagar e aos «ésses» por dentro do corpo, como uma serpente.

Mas como poderia deitar-se com alguém que desprezava?

Abriu a porta, para que o homem saísse.

O homem olhava-a ainda com aquela expressão entre o medo e o desconcerto enquanto a Maria do Mar pensava, com mais humor que nostalgia:

- Pois é. Nunca nos conheceremos.



Sobre as coisas que nunca mais se dizem

Sonho CCVI



A tia Milú tinha preparado um magnífico almoço de Natal.

Havia puré de batata verdadeiro, lombo de porco com laranja e puré de maçã acabado de fazer, com pó de canela servido à parte, em tacinhas pequenas, enfeitadas com colheres de prata. A lista dos doces era infindável. A massa dos bolos fatiados e dispostos em pratos redondos tinha um aspecto quente e fofo, muito fofo. Bolo de maçã, bolo de limão com glacé, mousse de manga, crumble e gelado de nata feito em casa, decorado com folhas de hortelã.

A Françoise sentia-se envergonhada por não ter trazido nada, nem sequer o seu célebre bolo de amêndoa com creme de manteiga, tão apreciado. Mas ficava contente por haver tantos doces em cima da mesa. Ninguém sentiria falta de nada.

No meio de tanta gente que ali estava, Heinrich Hart disse, com uma expressão de profunda reprovação:

- Françoise, aqueles «tês»...

Porque o desenho dos «tês» da sua caligrafia, nas cartas que lhe enviara, pelos vistos tinha tido um efeito semelhante aos de Gilberte na carta que enviara a Marcel, no romance de Proust.

Gilberte prolongava de tal forma os traços que atravessam as hastes dos «tês» que essas linhas se confundiam com as letras da linha anterior, o que fizera com que Proust lesse «Albertine», em vez de «Gilberte», e julgasse que a sua antiga amante estava viva, em vez de morta.

- Que teria acontecido?... - pensava Françoise, lembrando-se das suas cartas.

Heinrich Hart parecia-lhe agora um pouco mais atarracado, diferente de quando lhe lembrava uma pantera, com o seu corpo fino e elástico.

No meio de tanta gente, porém, era impossível enunciar uma pergunta.

Há coisas assim, que nunca mais se dizem.



Eudora Welty






Estivemos a celebrar Eudora Welty, no Porto.
Com ªSede.

Sobre a memória progressiva

Sonho CCVI


A disparidade inconcebível entre os dois elementos de um casal é sempre um desafio para a inteligência especulativa de alguém que os observe do exterior.

Era o caso típico de um casal cuja disparidade tinha o hábito de observar. Ela, impecavelmente cuidada, maquilhada, cabelos bem penteados, lenços escolhidos a dedo. Descontraída, mas elegante. Ele, barrigudo, mal penteado, a barba por fazer, por vezes com os cabelos mal lavados e sempre ponta a cima ponta abaixo, as camisolas cheias de borbotos, de tão usadas que estavam.

Um dia, a mulher aproximou-se de mim e disse-me:

- Eu conheço-a. Lembro-me bem de si.

- Ah... - respondi eu - Mas eu não me lembro nada... Tenho muito fraca memória...

- Não se iluda. - respondeu a mulher - Esse é o preço a pagar por uma memória progressiva.

- Memória progressiva?

- Sim. Quem não se lembra do passado, lembra-se do futuro. 

- Coisa estranha. Tem a certeza?

- Absoluta. Sempre uma grande virtude se transforma numa fraqueza, pela grande energia que consome, e vice-versa. Uma fraqueza pode transformar-se em virtude, pela quantidade de forças que liberta. Você não se lembra do passado, porque se lembra em excesso do futuro.

- Mas quem se lembra do futuro não será antes um visionário? Pela minha parte, não me parece que me lembre de alguma coisa do futuro...

- Você não sabe. Simplesmente tenho observado que esta lei opera de um modo infalível, absolutamente infalível.

- Mas que coisa tão estranha... Eis uma visão do tempo que vai contra tudo o que até agora fui capaz de intuir sobre o tempo, e é a sua visão!... No fundo, para si o tempo é como um espaço. Se você não está num sítio, então é porque está no outro. Mas o tempo já lá está de raiz, todo feito. Estarei a compreendê-la?

- Perfeitamente!

- Talvez como num casal em que as qualidades se deslocam com um movimento que não permite que estejam nos dois elementos em simultâneo, mas apenas num de cada vez?

- Sim, talvez. Pensando bem, é exactamente isso.

Como tudo nos parece lógico e natural enquanto dormimos, e difícil de pensar quando acordamos!...


Duas maminhas



Porto, 5 de Março de 2017

Sobre a necessidade de fazer arder os manuscritos

Sonho CCV



Quando a Françoise abriu a porta, o homem entrou e disse:

- Rápido. Passa para cá a arca.

Não seria a arca de Fernando Pessoa, certamente. 

A Françoise observou minuciosamente o rosto do seu interlocutor, em busca de um traço, na dentição, dos famosos caninos dos vampiros.

Uma vez que a arca não era tão comprida como um caixão, o homem não poderia dormir dentro da arca.

E, mesmo que o homem precisasse da arca para dormir, como bom vampiro que era, a Françoise não queria, de modo nenhum, dar-lhe a arca. 

- Eu não sou um vampiro. - assegurou o homem.

Mas a Françoise não acreditava.

Recordavam-lhe os chacais, os abutres e as hienas esses que, depois dos leões já terem comido a melhor parte, ainda andavam de roda da carcaça, com o intuito de matar a fome.