O amor e a terra

Sonho CCL


No alto de um anfiteatro grego arruinado, bem lá no topo da escadaria do auditório, a Françoise observava de longe a figura do amor da sua vida.
 
Entre a popularidade e a venalidade sempre lhe parecera existir uma fronteira difusa.
 
Por isso, observava com desconfiança como ele era aplaudido pela multidão, dividida entre a desilusão e a curiosidade.
 
Porém, levantando-se e caminhando sobre o palco ele esticou o braço, cortando o ar, e exclamou:
 
- Basta! Isto não passa de uma fantochada!
 
Nesse momeno Françoise ficou muito feliz ao apercerber-se da longevidade do seu amor, ainda que nada de prático fizesse com isso.
 
Sentou-se no chão com as pernas à sapo, como quando era pequena, e, dobrando-se, começou a escrever sobre o chão no seu caderno de notas.
 
O chão era ao mesmo tempo a sua cadeira e a sua mesa.
 
Viera a descobrir muito mais tarde que essa posição era usada nos exercícios de flexibilidade dos bailarinos para conseguir aperfeiçoar a posição en dehors, e não apenas pelas crianças que não sabem sentar-se como os adultos para brincar.
 
Uma posição de animal sobre a terra, abraçando o chão.
 
Enquanto escrevia, apercebeu-se de uma sombra que se estendia sobre as suas mãos e o seu caderno, mas decidiu ignorá-la, pensando:
 
- É alguém que passa.
 
Porém, a sombra não saía dali.
 
A Françoise olhou para cima e viu que era o amor da sua vida.
 
Ele estendeu-lhe a mão e ela, segurando a sua mão, levantou-se alegremente.
 
Que iriam fazer?
 
Beber um café?
 
Ver um filme?
 
Iriam directos para a cama?
 
Qualquer programa seria excelente. 

A capelinha sem imagens

Sonho CCXLIX


Era longo e atribulado o caminho que levava à minha capelinha sem imagens.
 
Sofria para caminhar nos corredores de um grande centro comercial, com todas aquelas montras coloridas e brilhantes que procuravam captar o meu desejo com coisas inúteis, que em breve se transformariam em lixo.
 
Olhava para os preços obscenos com que se pretendia vender uma mala de marca ou um par de sapatos e sofria com a estupidez humana, com a inércia do pensamento humano.
 
 
Sofria com o mau gosto de tudo, com o excesso de brilho, com as plantas de plástico, com a falta de sol e de vento.

 
Sofria com as multidões em que as pessoas se esforçavam tanto por parecer iguais umas às outras, por não inventar um novo penteado, nem sequer uma nova combinação de cores.
 
 
Por fim, sofria com  vertigens terríveis por ter de subir umas meras escadas, uma coisa que todos faziam com facilidade, mas que para mim era uma tortura.
 
 
Subia de gatas e havia quem olhasse com uma expressão de piedade.
 
 
«Em breve estarei na minha capelinha sem imagens.» - pensava, para me consolar. - «E até lá terei coragem para me arrastar até por cima de um cadáver de crocodilo.»
 
 
Quando cheguei à minha capelinha sem imagens, pude, enfim, repousar.
 
 
Sentei-me com uma grande alegria, naquela doce solidão.
 
 
Ninguém se interessava por aquela capelinha, onde se podia estar em silêncio.
 
 
As grandes pedras do chão estavam gastas de serem pisadas há mais de cem anos.
 
 
Era uma capelinha redonda, muito simples, com as paredes de um ocre muito velho, um pequeno altar de pedra sem ornamentos e os bancos corridos.
 
 
Como se respirava ali!
 
 
Em cruz tinham sido colocadas quatro grandes telas pintadas a óleo, possivelmente com cenas da vida de Jesus, como é hábito nas capelinhas, mas aquelas telas, com a passagem do tempo, tinham ficado completamente negras.
 
 
Era essa negridão que me consolava.
 
 
Ali podia celebrar sem ser interrompida o encontro com um Deus que não tinha figura, mas apenas presença, e que não tinha leis, mas apenas amor.
 
 
Deixei-me estar ali numa grande paz, como se a vida fosse um ninho.
 

A pequena terra no meio do caos

Sonho CCXLVIII

 
Maria do Mar falava sobre Kant, sentada numa mesa onde estava também o seu mestre.
 
Havia uma pequena frase que lhe chamara a atenção e que Maria do Mar considerava impossível ter sido escrita por Kant.
 
«Escrevi esse livro, a Crítica da Razão Pura, durante dez anos, com grande perseverança e disciplina interior, mas publiquei-o num ápice, e era um livro, na época, muito pertinaz.»
 
Pois não havia forma de conjugar este grãozinho de fanfarronice com a sobriedade e o esforço contínuo, imenso, titânico, de Kant para pensar rigorosamente, o mesmo esforço que levara Kant, depois de escrever O Único Argumento Possível para a Demonstração da Existência de Deus, a escrever a Crítica da Razão Pura, e, depois de escrever a Crítica da Razão Pura, a escrever o Opus Postumum, essas notas para um futuro livro que estiveram enterradas durante quase duzentos anos porque nenhum dos seus contemporâneos as poderia compreender.
 
Maria do Mar comentava a frase como quem conta um episódio anedótico, entre a suspeição e o divertimento, o que deixou o seu mestre muito zangado.
 
- Vou-me embora. - disse ele. - Você não ia falar sobre o modo como Kant leu Espinosa?
 
- Ah!... - exclamou a Maria do Mar. - Como é possível que uma inteligência tão brilhante falhe de um modo tão confrangedor na leitura de um par? Não é espantoso?
 
- Nada tão difícil como ler ou compreender uma pessoa que está fora de nós.
 
Nesse apêndice à Crítica da Faculdade do Juízo Teleológica, no parágrafo 85, existe um filão que nos daria para muitas horas de escrita e pensamento.
 
- Quem tem o carro mal estacionado?
 
Perguntou a funcionária que abriu a porta de repente.
 
- Está ali a polícia.
 
A Maria do Mar saiu a voar para ir estacionar de novo o carro, porque, com a escassez dramática de lugares, inventá-los transformava-se numa obrigação.
 
Porém, quando a Maria do Mar entrou no quarteirão onde tinha deixado o carro, observou que um dos prédios tinha implodido e que nem sequer os escombros estavam à vista.
 
Como poderia ter tudo acontecido tão depressa?
 
Demoliram um prédio e limparam tudo e nós aqui ao lado nem ouvimos nada?
 
A Maria do Mar estava tão curiosa em ver tudo aquilo que o vazio do prédio deixara a descoberto, nomeadamente as traseiras das outras construções, que nem se lembrou mais de entrar no carro.
 
Nesse momento porém começou a observar que nenhuma das coisas estava no seu devido lugar.
 
Em vez das construções paralelepipédicas que abundam nas cidades, o que havia agora por ali era aquele tipo de construção de castelo medieval em que os bocados se vão acrescentando à medida da fantasia e da necessidade dos seus proprietários e habitantes, sem plano prévio.
 
Aqui e ali despontava uma torre, uma amurada, uma balaustrada, um conjunto de arcos, uma carantonha. Havia casinhas que faziam lembrar as dos postais dos Alpes, com flores vermelhas nas janelas, e por todo o lado um aspecto fantasioso e labiríntico expressava o gosto e o tempo livre que as pessoas tinham para estar nas suas casas e cuidar das suas coisas.
 
Que espantoso!
 
A Maria do Mar esqueceu-se do carro e voltou a correr para a sala, para contar tudo o que tinha visto.
 
Todos saíram de olhos arregalados, mas, de um modo extraordinário, ninguém viu nada.
 
- Está tudo na mesma. - disse o mestre. - Sempre foi assim.
 
- Havia ali uma casa funerária, na esquina, e uma marisqueira, um restaurante chinês com lanternas vermelhas na entrada, um pequeno café com esplanada, que pertencia a um ucraniano com um carro azul eléctrico, um ginásio de onde saíam às vezes pequenos grupos a correr e a transpirar, com o personal trainer, e agora não está lá nada.
 
Todos olhavam para a Maria do Mar, aflitos, como se ela tivesse enlouquecido, enquanto a Maria do Mar pensava de si para si:
 
«Lembro-me bem da funerária, do restaurante chinês, do café, do ucraniano, do carro azul eléctrico e do ginásio.»
 
De repente, a bibliotecária parou, levou a mão à cabeça e, com uma expressão de sofrimento, disse:
 
- Ah... Eu lembro-me... Mas não de tudo... Lembro-me da funerária e do restaurante chinês... Ah...
 
- Não houve o caso daquele mágico, no meio da selva, o curandeiro da tribo, que foi surripiado numa corrente de ar e voltou a aterrar todo nu, passados um dia e uma noite? Tarkovsky não filmou a menina paralítica que fazia andar os copos em cima da mesa, enquanto a passagem dos comboios, por sua vez, fazia tremer toda a casa? E não é verdade que a articulação entre a extensão, como diz Espinosa (o espaço-tempo, como diríamos agora nós os modernos), e o pensamento, está ainda por pensar? Que articulação será real e possível, afinal, entre Deus e a matéria?
 
- Mas aqui está tudo na mesma. Não houve qualquer mudança. Nenhuma coisa interferiu na outra. E aliás, é muito bom que assim seja. O seu discurso aproxima-se perigosamente do caos. E o caos encontra-se à beira da psicose, como sabe. É preciso pensar mas não ao ponto em que tudo se desagrega.- disse o mestre.
 
- Mas claro... claro que é possível que tudo mude com grande frequência, muito maior até do que aquela que agora supomos... - continuou a bibliotecária, com uma expressão fúnebre. - É possível até que não nos lembremos de nada e que, em todas as mudanças, nos convençamos de que o mundo sempre foi assim. Porque não? Por uma coincidência ou por um acaso, parece que agora nós duas interrompemos esta espécie de amnésia funcional, mas que sentido poderá ter tudo isto? Que fazer com um mundo assim?
 
Todos iam dormir ali, pois estavam ali acampados, como se fossem refugiados de guerra, e a Maria do Mar disse:
 
- Está na hora de dormir e, já que temos de dormir, é melhor tratarmos das coisas necessárias. Já limpei o pó dos quartos e das salas e agora é preciso que alguém varra e lave o chão.

Pois não iam dormir no meio do pó e da sujidade.

Sobrava-lhes, dessa tremenda dificuldade de pensar, uma pequena terra no meio do caos.



Brock Drenth, Resting Patterns (2013)