contraponto e confissão (18)

 

Sim, é preciso tomar em linha de conta que o género humano tem muita gente para entrar e sair das lojas e para estar a ser simulada em diálogos de metrópoles. Mais gente ainda que os grãos de areia numa praia, muito mais gente do que todas as estrelas visíveis a olho nu. Nascem com essa profundidade infinita nos olhos, como quem chega de longe. Dizem, com a alegria dos rostos minúsculos, puros e infantis, obrigada por estar aqui, a felicidade de chegar não tem nome, apenas este espanto filosófico e a beatidude estampada na expressão sem código ainda. Depois tornam-se pessoas com papéis utilitários ou párias, como poeiras irregulares em franjas, gente de lado nenhum, ainda que a tua ou a minha existência se desloquem amanhã para Paris, Nova Iorque, Dublin, Lisboa. Há quem esteja sempre deslocado e há ainda aqueles cujo desejo pretende apenas que se desloquem na abstracção de um verso. Os teus versos chegaram depois do meu pequeno filme de três minutos ou chegaram precisamente com ele, ao mesmo tempo que ele? Fizeste falar o meu coração mudo. Talvez a alma seja realmente um triângulo equilátero ou um além espaço onde circulam velhas forças mágicas e finas vibrações, afins de ondas sonoras. Eu só queria capturar a manhã, a filigrana tão subtil e lavada da manhã em que o mundo torna sempre a nascer, todo inteiro. Pensava num amor impossível e em poder talvez tocar a sua essência preliminar através do espaço e do tempo, para além do corpo e da alma e da morte e do nascimento. Havia essa doçura suave do dia acabado de nascer. Havia o esplendor da aurocária e dos cedros, além do gradeamento verde da varanda meridional. Havia os espaços amplos e desertos do silêncio monumental de tanta gente dormindo, a cúpula alta do céu, a estrada não circulada e o canto sumptuoso dos pássaros, todos piando. Que o coro dos pássaros me sustivesse nesse movimento apaixonado e que fosse o cortejo transcendental e alado de uma nova forma de fazer amor - era o meu desejo não pronunciado. E então tu que ressoas em consonância com tantas cordas invisíveis e em risco de permanente desagregação sentiste porventura esse élan abstracto, sentiste-o de tal forma que o puseste em versos. O que são versos? Vectores talvez de uma dimensão assim que descrevo mal e pobremente, dimensão rarefeita e inexplicável mas concreta ao ponto de fazer vibrar uma ressonância real e subtocável e parecida talvez com as ondas sonoras que vêm com o desenho das palavras.


Se trouxeres passarinhos pousados nas mãos, é porque estás viva – de mim para mim.

Os pássaros sobressaltam-se quando bebem água.

O que trina é o meu coração.

 




contraponto e confissão (17)

 


 

"Era ter vindo ter ali, estar a tremer de solidão,

 num ápice, não tinha ninguém, não reconhecia o lugar.

Tudo tão confuso.

 

Não se podia dizer que fosse o seguir o fio de uma alucinação.

 

As estrelas boiavam no fundo de um balde." 

 

(Quero apenas citar-te, sem nenhum comentário.)




Max Ernst





contraponto e confissão (16) - sonhos


Escrevo os meus sonhos, obsessivamente, em busca de uma espécie de verdade. Que verdade? Existe pelo menos a verdade do que sentimos e vemos, essa verdade simples que a toda a hora se escapa, porque o que sentimos e vemos é sempre demais para o que podemos sentir e ver. O que sinto e o que vejo tem uma intensidade que extravasa o que sou capaz de sentir. A minha alma está sempre em busca de pequenas estratégias involuntárias para não sentir, pequenas bolhas e analgias, pequenas mortes, êxtases físicos ou amortecedores. São duas lutas contrárias. Uma, para ser capaz de ver. Outra, para não ver. Que esta espécie de verdade coincida com a realidade, esse é outro passo, outra tarefa de escrutínio. Mas, se nem sequer acedemos ao que sentimos e vemos, que haverá para escrutinar? Sou tantas vezes incapaz de os compreender, minha querida amiga, estes sonhos. Certas frases, capto-lhes de súbito um sentido ou um novo sentido no final de décadas. Tento não travar a mão nem o pensamento, apenas deixá-los fluir, com uma máxima exactidão e sem ceder a nenhuma tentação, nem plástica, nem moral, nem musical, nem de algum facilitismo como causar impressão, ou mesmo a simples preguiça ou inércia comum. Difícil. São tão imensas as forças que nos dobram e nos levam a desejar ser simplesmente agradáveis e bem-amados. O tempo passa num ápice. Pensar é doloroso e árduo, como uma corrida em que falta o ar. Ponho-me em bicos dos pés, é certo. Consigo saltar? Tento deixar livre o movimento da escrita automática, concatenada quase sem intenção. Mas o pensamento é ultra-veloz. Muda, a escrita sem som desliza na cabeça como um rolo. Que beleza! Que entusiasmo! Dessa escrita, ficarei sempre aquém. Tenho a sensação de um outro voo, eu, que não sou pássaro, parece que sei tão bem o que é voar. Não percebo o peso do corpo, nem os pés colocados no chão.


Marx Ernst 1934