Sonho CCIV - Sobre a falta de imaginação



Estava a estacionar numa rua bastante inclinada, quando me apercebi que não conseguia chegar aos travões.

É que a rua era de tal forma inclinada que o banco caíra para trás e eu, com os pés no ar, não conseguia chegar aos travões.

Não sei como conseguia chegar ao volante!...

Fizera a manobra de rabo na perfeição, mas agora, sem travões, na rua inclinada, o carro ameaçava estatelar-se contra um outro que estava estacionado mais abaixo.

Desesperado, tentava resolver a situação, sem qualquer espécie de sucesso.

Via a distância cada vez mais curta entre mim e o outro carro e nada me ocorria que pudesse salvar-nos do desastre.

Que chinfrim!... Que reclamações!... Que despesa!...

Quem iria acreditar que o banco caíra para trás com a inclinação daquela rua?

De repente, porém, tive uma ideia brilhante.

Se virasse o volante totalmente e invertesse a marcha ainda ia a tempo de dar a volta à minha má sorte.

A rua era suficientemente larga para isso e, mesmo que não fosse, sempre era melhor bater contra uma parede do que contra um outro carro.

Fiz precisamente como imaginara.

Agora, mesmo sem travões, sempre tinha a possibilidade de contornar os obstáculos e, como a rua ia a descer, podia ser que o banco voltasse à posição normal.

Afinal não estivera condenado pelas desafortunadas circunstâncias, mas pela falta de imaginação.


Fragmento 158



Ler um autor em função daquilo a que ele reage é ler muito pouco de um autor.

Sobre a passagem entre o terror e a volúpia

Sonho CCIII



A Maria do Mar estava encerrada numa gruta sobre o mar, sem acesso por terra.

«Como teria chegado lá?»

Em breve o mar iria tomar aquilo tudo, encher toda a gruta.

Para escapar, a Maria do Mar precisava de saltar para uma rocha flutuante que se unia à ravina por um cabo, e, aproveitando a sua viagem aleatória, singrar com ela até um lugar seguro na costa.

A Maria do Mar precisou de uma coragem sobre-humana, ou sub-humana, para saltar para a rocha que tremia sob a ondulação forte.

Mas em pouco tempo descobriu que o cabo se tinha rompido.

Debaixo da água podiam ver-se de um modo intermitente as sombras de animais ameaçadores.

Tubarões, orcas, caranguejos, polvos e raias.

Também podiam ver-se bandos de caçadores submarinos que perseguiam estes animais.

Como não tinha escolha, a Maria do Mar juntou-se a eles, lançando-se à água, sem arma nem fato.

Com esse bando, chegou à praia.

Na praia, os homens despiram os fatos e exibiram nos braços erguidos os seus troféus semi-vivos.

Um caranguejo enorme agitava no ar freneticamente as suas pinças, nas mãos de um desses homens erguidas ao alto.

A Maria do Mar sentiu uma náusea avassaladora - e caiu de joelhos.

Segurou o vómito dentro da boca, e voltou a engoli-lo.

Não queria mostrar-se ainda mais vulnerável.

Quem disse que os animais não sabem quando vão morrer?

A Maria do Mar tremia tanto que caiu sobre as mãos - e ficou de gatas.

A Maria do Mar lembrou-se que Lord Chandos também vira, na chacina dos ratos envenenados, a mãe com as suas crias agonizantes puxadas para si e que não olhava para os impiedosos muros de pedra que a prendiam, mas para o ar vazio e, com um ranger de dentes, para o infinito.

Não era compaixão, dissera Lord Chandos. Era outra coisa.

A velocidade vertiginosa do infinito em acto. O infinito ao vivo.

De gatas, a Maria do Mar podia sentir o deserto tremendo da cúpula do céu, por cima da sua nuca.

Quando cairia a guilhotina dos deuses?

A Maria do Mar via os animais separados, arrancados ao seu paraíso natural.

A alegria vitoriosa dos homens.

Ao fundo, os troncos mudos das árvores.

Estava tudo mudo.

Como pôr-se de novo de pé?

De repente, as sensações da Maria do Mar saltaram para um outro plano.

A sua ideia de morrer encheu-se de uma estonteante volúpia, em que tudo girava. 

Como se o seu corpo pudesse participar de um novo regime amoroso, ao desvanecer-se sexualmente no resto da matéria.




Sobre a revolta contra a morte

Sonho CCII


A Françoise amparava a sua amiga Andrée, enquanto passeavam.

Calhava que habitualmente ambas gostavam dos mesmos rapazes. Andróginos, esguios, suavemente viris, com qualquer coisa de feminino e sempre com os olhos negros, os cabelos escuros. 

Gostavam de um ou dois, porque a capacidade de amar não é infinita e porque o desejo se engata sempre numa qualquer particularidade única que só uma pessoa traz, como o anel de uma corrente se engata num outro anel, e não em vários, mas como a Andrée estava tão doente, e como a Françoise a amava tanto, renunciava a todos os rapazes, só para lhos apresentar.

Ao menos que a Andrée fosse feliz ao máximo, antes de partir!

Doía-lhe tanto ver que a sua amiga não conseguia colocar um pé à frente do outro, enquanto olhava para baixo, que já não queria saber de nada, já não se interessava por coisa nenhuma.

Não há nada tão revoltante como quando a morte nos leva um dos nossos melhores amigos, em plena juventude.



Fragmento 23




Onde está o quadro da boeirinha leve de Fernando Pessoa, que aparece no Livro do Desassossego, essa oleografia? Cinco horas a procurá-lo na internet, e não o encontro. Mas acredito que terei visto essa figura da boeirinha leve e esquecida de si e que passa por nós, como descreve Bernardo Soares, estando ela fixa e nós imóveis. Estará num famoso quadro qualquer, certamente. Realismo do Século XIX? Eu já vi isso, mas onde está?... Pensei que era Millet, mas não é. Poderia ser Courbet, mas não é. Vi outros, da mesma escola, da mesma época. Millet é quem mais se assemelha à visão possível desse quadro, por isso procurei nele mais de três vezes, para me certificar, mas nada encontrei. Descobri um site com milhares de reproduções e passei a pente fino bem mais de mil, e nada encontrei... Ah!... Não haver mais horas ainda, não haver mais olhos que não me ardam!... Que desalento, ter um limite!...



Van Gogh, «Sower at Sunset» (1888), óleo sobre tela
(inspirado em Millet)