Parafusos e arremessos


As obras em casa de Anaïs D. não estavam a correr nada bem. Tinham pintado o tecto com a cor errada. Tinham feito um trabalho de relevo no estuque que, para além de ser dispendiosíssimo, era de um mau gosto insuperável. E para quê tudo aquilo? Anaïs D. mandou chamar o chefe da obra, que trazia toda a equipa e inclusivamente o engenheiro. "O que é isto?" - perguntou Anaïs, apontando para uma máquina suspensa perto do tecto. "Um ar condicionado?" Não, não. Nada disso. Aquilo era uma nova máquina da polícia, dada a crise sanitária destes novos tempos, apenas uma pequena máquina de vigilância, bom, não assim tão pequena, mas também não era maior que um ar condicionado, o que era bem verdade, certo? - porque agora saíra uma nova lei e, sempre que houvesse oportunidade, quer dizer, sempre que houvesse obras nas casas e nas instituições, havia que colocar estas máquinas, agora muito úteis e indispensáveis, disso não havia sombra de dúvida, em prol da saúde pública, da segurança sanitária e da sanidade em geral. Não era um ar condicionado, não tinha qualquer efeito sobre a atmosfera da casa, isso não. A sua única função seria vigiar Anaïs, para zelar pela segurança de todos, o que certamente deixaria Anaïs muito feliz, segundo as estimativas de quase toda a gente e principalmente segundo as estimativas de quem tinha decidido assim. A Anaïs que até aí estivera apenas preocupada em corrigir a cor do tecto, demolir o trabalho do estuque e evitar que sujassem o chão com aqueles terríveis sapatos, foi tomada por um tal acesso de fúria que deu por si a dizer: "Eu mesma vou buscar a minha chave de parafusos, eu mesma desmonto esta máquina e verão como irá voar pela janela, num ápice!" Com certeza o seu aspecto seria tão ameaçador como aquele que descrevem os escritores gregos quando consideravam que a fúria era um dom dos deuses. É até possível que lançasse chispas pelos olhos ou que tivesse duplicado de tamanho, de forças ou de velocidade, segundo descrevem esses mesmos escritores. Já estava de chave de parafusos em punho no topo do escadote e aqueles homens todos corriam como ratos pela casa enquanto suplicavam coisas sem nexo nenhum, dizendo que eles mesmos desmontariam a máquina, que isso não era trabalho para uma senhora, que ideia, fazer voar um aparelho tão caro pela janela, e se acertasse em alguém? Não havia nada a fazer, porém. Quando os comboios são colocados em marcha, já não podem parar de repente. Há aqueles que parecem habitar a superfície da vida, com a tranquilidade e a leveza aparente dos pássaros. E há os outros que só sabem cair de cabeça para baixo e pés para cima nos abismos ou então voar entre as estrelas até à liquefacção. Para os primeiros, muitas coisas, mesmo as mais inesperadas, são pretexto para um belo riso, solto e leve. Parecem desconhecer que se pode morrer com um excesso de intensidade, porque as cordas da alma não aguentam ser esticadas para além do limite, e, se por acaso alguma coisa deste género lhes passa pela cabeça como sendo real e existente, a sua reacção é de estranheza. Na verdade, parecem estar sempre num ponto suavemente elástico, tendido e afinado, essas cordas, e desse modo compor aquela dourada mediocridade que pela sua natureza amena e alegre se torna tão atraente e desejável. Mas talvez tudo isto seja apenas a ilusão dourada de quem habita a margem oposta desse plano. Esses, pelo contrário, procuram apenas equilibrar-se nos loups da intensidade como os acrobatas improváveis de um circo atómico ou de uma arena invisível, desdobrada em dimensões incompossíveis e paralelas. E quando riem, a sua leveza não é da mesma qualidade, guarda sempre um grão luciferino. Mas agora tinha deixado de existir a fisioterapia. Nada disso. O que existia agora era a viu-terapia. Uma terapia do que fora visto. Assim, o que fora visto uma vez de uma certa maneira ou de uma certa perspectiva já não poderia tornar a ser visto dessa maneira nem dessa perspectiva. De igual modo, e em prol da sanidade, tratava-se de uma reabilitação da visão. Não da visão do presente, claro. Mas daquilo que no presente sobrava do que em tempos fora visto no passado.

O inferno, a fúria e a ternura


Havia agora um novo tipo de arte, a que chamavam ainda escultura, mas seria realmente escultura? Não era bem uma performance e também não era propriamente uma instalação, embora se aproximasse mais desse segundo conceito do que do primeiro. Como fazer uma descrição satisfatória do que se tratava realmente? Andy, a autora famosíssima de tal novidade e que Anaïs D. conhecia desde a adolescência, tinha agora os cabelos frisados de um modo tão selvagem que parecia ter apanhado um choque eléctrico, mas isso dava-lhe uma graça especial e ia melhor com a sua personalidade alegre e irreverente. Os velhos cabelos ralos muito lisos e colados ao crânio, que lhe davam um ar infeliz e tristemente obediente, tinham passado à história e ainda bem, pensava Anaïs. A escultura era uma sala, uma sala enorme, toda a preto e branco, com volumes inesperados, paralelepípedos, cubos, pirâmides, formas como aquelas que apareciam no antigo jogo do Tetris, todas de tamanhos muito diferentes, sem qualquer escala entre si, e que criavam pequenos recantos por onde se andava, como as paredes de um labirinto. No chão, nas paredes e no tecto também havia quadrados a preto e branco sem escala e muito irregulares, também, e essa ausência de correlação entre os volumes, essa ausência de referência e de escala, digamos assim, fazia com que nos sentíssemos no meio do infinito, totalmente perdidos. O único consolo estava naqueles recantos criados pelos volumes que transmitiam uma pequena sensação de conforto, como de terra ou de casa. Porém, de repente e sem qualquer aviso todos esses volumes foram rebatidos no chão (ou absorvidos, não sabemos) e todos nós, os parcos visitantes, ficámos ali sobre aquele plano a preto e branco e onde os mesmos quadrados sem referência nem escala se replicavam no chão, nas paredes e no tecto. Não há como descrever a angústia indizível nem a vulnerabilidade absoluta que podíamos sentir. Não havia qualquer refúgio, qualquer luta a encetar, qualquer desafio com que entreter a dor e o tempo, nenhum recanto ou abrigo. Nada. Só aquela nudez absoluta diante do infinito. Anaïs D. saiu dali a correr, porque certas intensidades só podem sentir-se durante espaços muito curtos de tempo ou então com recurso aos chamados alteradores de consciência, não apenas o álcool e as drogas medicinais ou ilegais, mas muitos outros que como sabemos são inúmeros e tão engenhosos como fatais. Anaïs cruzou-se com P., que saía de uma casa de banho no museu, olhando para o telemóvel. Talvez porque tivesse sido objecto de uma experiência limite, Anaïs naquele momento olhou para P. e soube imediatamente que ele ia suicidar-se. Tinha de fazer qualquer coisa, tinha de fazer qualquer coisa com a maior urgência, mas nem sequer conhecia P. muito bem e não lhe ocorria nada que pudesse fazer. Sendo assim, e como não sabia o que fazer, Anaïs... pôs-se também a olhar para o telemóvel. As coisas que fazemos!... Tinha uma dor horrível no peito e na garganta, como se estivesse a ser estrangulada por um torniquete, e não conseguia pronunciar nem sequer uma palavra. Queria dizer-lhe: «Já que provámos o cálice, vamos bebê-lo até ao fim, certo?» - como Ivan, nos Irmãos Karamásov. Mas nada lhe saía. P. caminhava para longe de si, certamente em direcção ao seu absurdo e horrível destino, mais absurdo ainda que nascer e morrer sem saber para quê, pelo menos era o que lhe parecia naquele preciso momento. A isto talvez pudesse chamar-se um excesso de absurdo. Qualquer coisa ainda mais absurda que o absurdo. E, tal como o excesso de sofrimento, algo de gratuito e que é  preciso evitar a todo o custo, segundo uma ética intuitiva da preservação e da delicadeza. O que Anaïs sentia no meio daquela clarividência mal-vinda era uma impossibilidade absoluta, uma tortura certamente maior que uma passagem pelas chamas do inferno. Aliás, isso mesmo que ela sentia é que era o próprio inferno, esta dor e a impotência de saber que é necessário agir e não ter como. Então Anaïs foi tomada por uma fúria tão avassaladora que teve o desejo de desmantelar o universo inteiro e que não sobrasse nada, absolutamente nada, nem sequer ela própria. São assim radicalmente paradoxais as paixões humanas, que nos arrastam em menos de um segundo para os dois lados opostos de uma mesma realidade. Alguns segundos antes Anaïs queria apenas salvar P. e, uns meros segundos depois, dispunha-se a fazer aquilo mesmo que a horrorizava. Ainda bem que a fúria não tem um poder imediato em si mesma. De outro modo seria indubitável que o universo se extinguiria inumeráveis vezes, numa velocidade imprevisível. Mas Anaïs quase imediatamente se lembrou das flores, das ervas, das estrelas, das cores, dos animais, das crianças, dos velhos e de tantas coisas que lhe inspiravam uma ternura infinita, uma ternura ao mesmo tempo visceral e abstracta, física e transcendental, e ficou-se ali, olhando P. que partia de costas, imóvel e de braços caídos, sem mais nada que não fosse aquela perplexidade insuportável e suspensa do tempo como um balão de festa, girando na brisa.

Cadernos de notas - diálogos - recortes - insignificâncias (coisas ouvidas aqui e ali)


1.

(Isabel e A. na praia)

- Olha, está-se tão bem. Passaram duas horas e nem se deu por nada. São onze e onze.
- Onze e onze!... Lá está!...
- Lá está o quê?
- Esses números, perseguem-me por toda a parte, toda a minha vida, toda a minha vida.
- Ah... é curioso... a mim também. Onze e onze, vinte e dois e vinte e dois, doze e vinte um, catorze e quarenta e um... a toda a hora, a toda hora.
- Não. A mim é só onze e onze. Onze e onze. E isso tem um significado, sabias?
- Ah sim? Qual?
- Não sei.
- Não sabes?
- Sei que existe um significado, mas não sei qual é.
- Que desilusão. E não te lembras de nada?
- Nada.
- Quem me dera saber!
- Não vale a pena. Acreditas que, se alguém julga que sabe, saberá?

2.

(P. e M., numa reunião de trabalho, dispondo na mesa os seus computadores portáteis)

- Olha, olha, não é que têm dois computadores iguais? - reparou um colega.
- Oh! Oh! Pois é!
- E aposto que a M. também não sabe que o computador tem dois discos.
- Dois discos? A que propósito?
- Tem este, mais rápido, e este, mecânico, mais lento. Exacto. Está vazio. Como o da P. Não sabias que tinhas dois discos?
- Pois não.
- Ahahah!...
- Olha - disse a P. - e os telemóveis, será que também são iguais?
- Olha pois são!... Iguais!...
- Da mesma marca, da mesma série e da mesma cor.
- Iguaizinhos.
- E nós estávamos bem longe de reparar nisso...
- Caramba... que havemos ainda de descobrir?...
- Não eras tu que tinhas a lua em Capricórnio e o ascendente em Leão?
- Era.
- Igual.
- E isso dá dois computadores e dois telemóveis iguaizinhos, na vida prática?
- E sabe-se lá mais o quê...

Teorias, flores fúnebres, amores e desertos


Anaïs D. não conseguia deixar de circular no interior da sua cabeça, isto é, dos seus pensamentos, como um rato na roda do hamster ou como um animal desesperado num labirinto, mesmo sabendo que existem ideias que não devem ser pensadas repetidas vezes e que, ao nível do pensamento, certas repetições constituem um comportamento mórbido, tão perigoso que pode levar ao suicídio, quando menos se espera. Como pode alguém ser ao mesmo tempo tão lúcido e tão louco? Não sabia já Anaïs que, apesar dos pensamentos terem uma espontaneidade selvagem que é difícil conter e dominar, apesar do coração ser, tantas vezes, impossível de domar, mesmo assim os nossos comportamentos ainda pertencem àquele campo onde é possível exercer algum domínio, nem que seja com recurso ao auxílio dos nossos amigos ou de quem nos queira bem, quando as nossas forças se tornam demasiado fracas? Sempre há quem nos ajude a atar uma grilheta ao tornozelo, se nos sujeitarmos a isso, e Anaïs D. já estava naquele ponto em que até seria capaz, se lho pedissem, tal como o jogador no livro homónimo de Dostoievski, de descrever ponto por ponto cada elemento da sua patologia. Poderia até, conforme a disposição do momento, dar um cunho patético, deplorável ou humorístico a essa descrição, mas nem por isso perderia um grama da sua lucidez, se a lucidez se medisse em peso. "Podemos ser bastante irracionais e impossíveis de compreender." - pensava Anaïs. "Mas os monomaníacos são o sal do mundo." O orgulho, aliás, era um dos principais elementos da sua tragédia pessoal. Longamente e com distintos episódios coloridos teríamos de o descrever, se quiséssemos falar de Anaïs num romance. Tinha um carácter indomável e altivo, uma inteligência zombeteira e acutilante. Tirando certas coisas relacionadas com o esplendor, o sublime e deus, as sociedades humanas, desde a infância, tinham para si um aspecto trágico e risível, principalmente no cabotinismo e na forma séria e confrangedora como tantos se dedicavam aos seus papéis, nos quais pareciam acreditar com uma espécie de indiferença costumeira ou piedade fervorosa. Talvez fosse apenas uma farsa que frequentemente se adoptasse por comodismo e educação, e não por fraqueza da inteligência e do sentido crítico, mas Anaïs desde os nove anos que se surpreendia com a fome no mundo, como com as descrições da divina trindade e os projectos de crescimento económico constante que eram propostos em todos os quadrantes políticos. O mundo humano tinha para si uma natureza intolerável, impossível de habitar. Procurava, mas não encontrava nada. Nem nos livros, nem na televisão, nem nas conversas. Anaïs pertencia àquela espécie de pessoas que só podem sobreviver com a perseguição de um novo ideal, mas esse ideal têm de ser elas a criá-lo de raiz, a partir do nada. Já não servem as passagens dos monges pelo deserto, as cruzadas, a inspiração dos mártires, a revolução, nem sequer o activismo. Todas as instituições lhes inspiram repulsa. Está tudo gasto, mil vezes usado e corrompido já. E onde está agora essa grande força para lançar as primeiras pedras de uma nova fundação? Pelo menos o jogador de Dostoievski acreditava que era um elemento de resistência na máquina do capital, e o seu sarcasmo não deixava de ser uma arma contra a hipocrisia reinante. Uma peça disfuncional, digamos, um elemento produtor de caos. Útil, apesar de tudo, como elemento discordante num sistema monocromático e insensato, onde um extra de insensatez acrescenta um pouco de sal, ou talvez uma possibilidade de revolução. Quem sabe o parafuso torto possa fazer saltar a máquina? Mas Anaïs, a que género de revolução inconsciente pretenderia lançar-se? Resistiria ela a quê, com a sua loucura particular? Que género de margem pretenderia habitar? Seriam os da sua raça aqueles que, como Tarkovski, sabem que o amor é toda uma outra coisa absolutamente distinta do que em voga tantas vezes se pratica? Que o amor tem um lado estranho e aterrador, como o planeta Solaris? Talvez como uma natureza viva extraterrestre, que nos ama aos solavancos e com erros? Tarkovski descreve Solaris como um planeta vivo e inteligente, porventura mais inteligente e poderoso que a espécie humana, mas, ainda assim, com uma inteligência finita. Todos estão perplexos, diante de Solaris. Os elementos da tripulação enlouquecem e matam-se. Só sobra um. Ainda que a tripulação da estação espacial que o tinha por objecto de estudo se consuma elemento a elemento com o medo e a teoria de que as intenções do planeta são maléficas, Solaris, que parece decifrar no sono os sonhos dos tripulantes, também não parece querer mais do que materializar os seus desejos, quando transforma os sonhos em matéria viva. Da parte de Solaris, isto parece não ser mais do que um puro acto de amor, ou de simpatia, uma simpatia e amor não-humanos, digamos assim, com resultados tenebrosos. Como poderia Solaris perceber que o grande amor de Kelvin, a jovem Hari, cometera suicídio e que, ao trazê-la dos sonhos de Kelvin para a vida material, animava um morto-vivo, pior que um fantasma? Isto é comum também entre nós, que, com as melhores intenções, tantas vezes acabamos por fazer as piores coisas. Solaris, se era uma inteligência, pensaria? E se pensava, saberia alguma coisa? É possível que duas inteligências absolutamente diferentes se entendam uma à outra? Mas deixando Solaris de parte, uma coisa é certa, em relação a Anaïs. Como ela, todos estes amorosos têm em comum o facto de amarem as pessoas como seres em potência e não em acto. Há, por assim dizer, nesta espécie de amorosos, um engano constante e uma teimosia inquebrantável, com uma natureza muito séria e muito peculiar. É como se eles nunca tivessem os olhos de toda a gente, em relação ao objecto do seu amor, como se tivessem sido extirpados, em relação a isso, de toda a espécie de senso-comum, e de bom-senso também, é preciso reconhecê-lo. Mas os seus olhos não são os de um cego, muito pelo contrário. Inversamente, são mais potentes, mas, como em tudo na natureza, o que é demais, mesmo que seja melhor, tantas vezes ganha um aspecto monstruoso. Como se, para eles, o visível fosse, não a realidade material e factual, mas uma virtualidade candente que existe por dentro ou em potência em todos os seres, prestes a fazer-se e a acontecer, e nem por isso menos real. Por isso talvez tenha sido sempre tão atraente, do ponto de vista da criação literária, o périplo destes amorosos. Quantas páginas de filosofia ou de literatura não teríamos de escrever para chegar à descrição perfeita desta frequente e dramática experiência amorosa? Todos sabemos que a máquina da reprodução social, com as suas tristes e pobres repetições nuas, quase mecânicas, de geração em geração, constitui uma mordaça confortável e nem sempre obviamente infeliz, é um facto. Mas é terrível como se pode chegar a esse ponto de dominar a teoria e a descrição de um determinado assunto com a destreza de um malabarista e a acutilância de um cirurgião e, quanto à prática, simplesmente progredir no caos e no desastre, em direcção ao mais triste dos fins. Era este precisamente o caso de Anaïs D. Seria acurada, a sua visão cristalina? Teria o seu pensamento ido directo em direcção ao alvo? Suicidar-se-ia? Contra tudo o que sabia ser necessário fazer, dirigiu-se à nova casa de Wilson Florentine, onde se desenrolavam os preparativos do seu casamento. Tratava-se apenas de mais um elemento a acrescentar à sua tortura particular, talvez aquele que lhe desse por fim a coragem para se atirar de um precipício ou da ponte sobre o Tejo. Para quê? A casa era linda e com uma bela vista sobre o rio. Havia espaço e conforto para todos os filhos. Tudo resplandecia num doce ambiente de festa. A noiva recebeu Anaïs D. com as enigmáticas palavras, de significado bastante ambíguo: "Havemos de nos entender." "Jamais." - pensou Anaïs com os seus botões, não sem antes dar uma vista de olhos por toda a casa, para bem da longa vida do seu inferno pessoal. Wilson estava na cozinha, a preparar as entradas da mesa de festa, e Anaïs saiu sem querer olhar para ele. "Quem era?" - perguntou Wilson à sua noiva. Ela disse qualquer coisa e Wilson deu uma corrida em direcção às escadas, mas parou a meio, arrependido. Anaïs corria já com grande velocidade no final das escadas, perguntando-se: "Para quê?... Para quê?..." Porque, até chegar ao fim da sua narrativa, isto é, da sua vida, nem sequer o lúcido sabe porque age, e, esta é que é a verdade: talvez nunca ninguém venha a sabê-lo. Uma teoria de causa-efeito nunca deixará de ser a ilusão de um belo remate, como uma coroa de lindas flores fúnebres sobre a nossa campa, à laia de consolação.

Volvos e piscinas


M. tinha um Volvo de 1980, enorme, uma verdadeira banheira. Íamos os dois para a piscina, uma piscina de água quente que era famosa pelas suas ondas imprevisíveis e por encher e esvaziar de repente. Eu estava numa grande excitação e comprava uma peça de roupa, uma peça de roupa muito gira que condizia com as outras duas que tinha vestidas, o fato de banho e os calções. Que alegria! M. dizia que isso tinha um nome, e dizia o nome. Que nome seria? Ouvi-o no sonho com nitidez, mas agora que escrevo não consigo recordá-lo. Até existe um nome para o facto de uma peça nova condizer com duas antigas? Isto é que jamais seria capaz de imaginar. Que sofisticação. M. era um escritor português contemporâneo famoso pelo seu prolífico vocabulário e talvez a única pessoa viva que ainda me obrigasse a ir ao dicionário, pelo menos com tanta frequência. Estava a enjoar no banco de trás. Então, como uma miúda, trepei pelas costas do banco da frente para passar para o lugar da frente, ao lado de M. Muito melhor!... O carro estava em andamento, mas não havia polícia.