Fragmento 162


A inspiração é um encontro.

 
 
São João do Estoril - 2008
 


A propósito de Proust e de um saco de praia

Fragmento 149


Penso nos mil gestos que fazemos para nos termos de pé, para sair à rua de roupa limpa e cara lavada.

Penso nos gestos ínfimos, incógnitos, anónimos e multiplicados. 
 
Olho para o meu saco de praia azul às bolas brancas, que vai ficando velhinho e desfiado.

«Como seria o meu saco de praia há dez anos?» 
 
Já não me lembro desse saco de praia. 
 
«E se de repente me aparecessem nas mãos esses vestígios de repente vivos de ter existido há dez, há vinte, há trinta anos, como seria?...» 
 
Lembro-me da memória involuntária de Proust e sei com a pele que se um desses sacos estivesse nas minhas mãos toda a sensação de existir nesses anos correria para mim como uma onda enorme, uma avalanche ou uma derrocada. 
 
«Porque é que só a ideia de aceder ao vivo dessa memória me traz tanta dor?...» 
 
A minha alegria é exactamente como um jardim que floresce sobre os mortos. 
 
Talvez uma arte involuntária de esquecer, ou de viver só por hoje, ou de sentir como eterna novidade a incrível surpresa das cores. 
 
Porque só a ideia de poder recordar a sensação real de ter existido nessas décadas me traz como que uma avalanche da dor de andar pelo mundo a existir... sempre incompleta. 
 
Por entre a espuma dos dias e dos gestos incógnitos das obrigações e da sobrevivência está a sensação de existir de passagem e sempre a caminho de outra coisa, sempre um pouco aquém ou além, promessa nunca alcançada, Jerusalém celeste ou terra prometida que busco como um antigo judeu, uma judia de alma.

Sobre uma confissão

Sonho LXXXIII


Estavam várias pessoas à mesa, numa grande mesa cheia de gente cuja companhia era agradável para a Francisca.

A seu lado, alguém que parecia querer impressioná-la falava de uma produção de vinhos requintadíssimos, como se isso fosse uma coisa realmente digna de interesse.

Ela ria-se, bastante divertida.

Dizia que isso pouco lhe interessava, uma vez que era alcoólica e que tencionava fazer tudo o que estivesse ao seu alcance para se manter sóbria até morrer.

As pessoas ficavam tão desconcertadas e com uma expressão de tal choque nos rostos que ela escorregava pela cadeira e ficava debaixo da mesa.

A mesa era interessante lá por baixo, por causa da toalha escura. A toalha era pesada e comprida e tocava no chão forrado de alcatifa, enquanto uma penumbra esverdeada e suave se coava através dela.

Além disso, era curioso ver as pernas e os pés das pessoas, calçados com os sapatos.

Havia uma ou duas pessoas que descalçavam um dos pés, ou que tinham um pé meio fora do sapato.

Parecia que estava dentro de uma tenda e, por causa disso, a Francisca sentia-se como uma criança, protegida, escondida e entusiasmada por estar dentro de uma habitação tão engraçada.