#1 Auto-retrato com duplo

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)








#2 Auto-retrato com infinito

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)






#4 Auto-retrato com luz involuntária (2)

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)








#3 Auto-retrato com luz involuntária (1)

Da série "auto-retratos" (ou despedidas)







A vida e a morte não são compreensíveis

Sonho CCXLVII


Tinha de enterrar um homem que era um desconhecido.
 
Não sei porque me fora incumbida essa missão, mas tinha de a cumprir urgentemente.

Logo nesse preciso momento é que surgira a oportunidade de reencontrar o amor da minha vida, mas tinha de resolver este assunto primeiro.

Quem é que pode deixar um morto por enterrar?
 
O enterro dos mortos era um serviço público.
 
Liguei para uma casa mortuária, marquei o enterro, mas não consegui transporte, pois esse era um serviço privado.
 
Sendo assim, meti o caixão dentro do carro e dirigi-me para o cemitério, para acertar os pormenores.
 
Não sei como consegui fazer tudo isto sozinho, quando em geral são necessários quatro homens para transportar um caixão.
 
Cheguei ao guichet e, apresentando o meu caso, a senhora disse-me, com uma expressão escandalizada:
 
- O quê? Você trouxe o morto? Você não podia fazer nada disso!
 
Timidamente, respondi:
 
- É que o enterro já está marcado...
 
- Ah!... Nada disso!... - bramia a nobre senhora. - Você não sabe que o primeiro enterro é sempre falso?... É só o caixão que vem!... Não vem o morto lá dentro!...
 
- Mas como é que eu podia saber uma coisa dessas?
 
- Meu Deus!... Mas como é que você não sabe?... Não temos terra para tantos mortos!... Eles ficam em lista de espera, dentro dos frigoríficos, ou onde for possível que fiquem... O enterro é só um serviço que prestamos às famílias!

Desesperado, com o morto dentro do carro, eu sentava-me num banco a chorar, com esperança que alguém se compadecesse de mim e me ajudasse a resolver aquele imbróglio em que me metera.

Naquele contexto, porém, todos respeitavam a minha dor. Ninguém me perguntava porque chorava.

Estava preocupado, pois tinha deixado o carro aberto, mas quem iria roubar um caixão e um morto?

Certamente ninguém.

De resto, iria falhar o encontro com o amor da minha vida, queria lá saber do que se seguia.

Em desespero de causa, liguei para a minha mãe e perguntei:

- Então os primeiros enterros são sempre falsos? Os segundos é que são a sério?

- Pois claro. - exclamou ela do outro lado - Em que alhada é que te foste meter? Não te lembras que foi assim que enterrámos o teu avô e a tua avó? Que foi assim que enterrámos toda a gente?

- Mas então o caixão ia vazio? Não ia ninguém lá dentro?

- Pois claro que não. Então não sabes que não há terra para tantos mortos?

- E porque é que não me chamaram para o segundo enterro?

- Achámos-te demasiado abatido no primeiro, não íamos chamar-te para o segundo.

Eu pensava afinal na vacuidade de toda a minha meditação enquanto seguíamos em cortejo atrás do caixão que, sabia agora, estava vazio, enquanto seguíamos a pé cemitério fora e enquanto lançavam as primeiras pazadas de terra.

Pensava naquele som da terra a cair com um baque seco e vazio, tão imensamente vazio, pensava no ritmo das pás no meio do silêncio e de alguns soluços mal contidos, como os acordes finais de uma peça sem sentido, em que todo o combate, fosse com uma doença cega, fosse com a vida no seu frágil dia-a-dia, sempre à beira do abismo, fosse com o mundo que é tantas vezes de uma crueldade abusiva e de uma predação impensável, em que todo o combate parece acabar demasiado de repente e sem qualquer aviso prévio, e afinal todo esse equilíbrio precário de nos pormos de pé e nos cuidarmos, de inventarmos para as nossas vidas, ou um sentido, ou um desejo, ou uma missão, todo esse combate para extrair do dia um grão de liberdade, uma oração, uma linha de fuga, tudo isso se interrompia num único segundo, sem qualquer intervenção da nossa vontade.

«Se os caixões andam vazios, por onde andam os mortos?»

Era no que pensava, naquele momento.

Levantei-me por causa do carro, que tinha deixado aberto, e deparei-me com o carro vazio.

Alguém levara o meu caixão por engano.

Risquei o carro todo para tirá-lo daquele lugar e poder verificar se aquilo era mesmo verdade.

Queria lá saber da pintura do carro!...

Sentei-me na berma da estrada, avassalado.

Nem enterro, nem caixão, nem morto.

O desdobramento, isto é, a separação de si para si que opera o mecanismo da nossa consciência, quando se debruça sobre si, não constitui apenas uma tragédia.

Tinha a certeza de que, se continuasse a chorar, a cabeça me estalaria em mil bocados.

O desdobramento também pode ser uma estratégia de sobrevivência, como a do faquir que se desprende da dor ao desdobrar-se nela, ao contemplá-la como a uma estrela distante, e a nós também é útil quando nos ardem tanto as plantas dos pés que já não podemos mais erguer-nos sobre a terra que pisamos.

Tentava lembrar-me do título de um belo filme de Hitchcock que era sobre as aventuras e desventuras com um morto num caixão, ou fora de um caixão - seria The Trouble with Harry?

Por outro lado, se era certo que eu nunca seria o amor do amor da minha vida, também era certo que esta ideia, ou ideal, sobre «o amor das nossas vidas», bem podia ser enquadrada dentro daquelas que Kant define como resultados da patologia da nossa capacidade especulativa.

«Que belo enredo!...» - pensava eu, sentado no passeio.

Dava talvez para escrever um belo conto à maneira de Kafka, com um leve travo a Hitchcock.

O resto iria resolver-se por si.

Não é verdade que, no dia em que deixamos de restaurar as casas, as plantas e os ramos começam, mais tarde ou mais cedo, a brotar das paredes?

É que, pontualmente, estar nas nossas vidas como espectadores ou autores de enredos não deixa de ser uma bela estratégia, porventura tortuosa, mas eficaz, para suportar a realidade mais alucinante. 

Sobre a relação das percepções com o movimento da nossa imaginação

Sonho CCXLVI


Numa reunião, havia um homem que se apresentava do seguinte modo:
 
- R.V.
 
Interessadíssimo, eu observava-o minuciosamente, procurando não dar nas vistas.
 
O cabelo cinzento e um pouco longo, mas penteado com elegância e desprendimento, contribuía para uma aparência estrangeirada, levemente aristocrática.
 
Os traços do rosto, muito finos e muito puros, apesar da idade, pareciam denunciar uma certa austeridade, um certo ascetismo.
 
Havia qualquer coisa no seu rosto de incrivelmente intacto, uma essência que não se desagregava.
 
Ao contrário de certas pessoas que, com a idade, parecem desagregar-se debaixo da pele, ou como os demasiado gulosos ou lascivos, a quem a carne, como nos quadros de Bacon, parece sofrer uma tumefacção imperceptível e progressiva ao longo do tempo, este homem era magro e seco, um pouco altivo, elegante, discreto, parecia traçado a cinzel.
 
Seria um homem realmente belo, não fosse um incrível estrabismo que tornava impossível definir para que ponto da sala estaria a olhar, e, mais ainda, a marcada infelicidade, quase uma humilhação, que lhe transpirava por todos os traços do rosto.
 
Estava morto por ouvi-lo falar, para ver se conseguia  traçar a cartografia da loucura que fazia com que se apresentasse com as iniciais do nome.
 
Teria participado numa guerra?
 
Teria sido espancado, ou violado?
 
Teria vendido a alma ao diabo, a troco de nada?

Estaria arrependido de tudo, e impossibilitado de recomeçar?

De onde lhe vinha aquela humilhação?
 
Que pistas me daria o seu modo de falar?
 
Só no final das cartas em que não estamos de todo presentes é que insistimos em colocar as nossas iniciais, como se disséssemos: «Eis, de mim, esta fraca delegação.»
 
Ou então, na melhor roupa de cama, nos guardanapos de linho, nas camisas, bordam-se as letras que distinguem o nosso primeiro nome e o de família, mas num movimento oposto ao das cartas, para que essas coisas nos pertençam exclusivamente, para que não passem para mais ninguém.
 
Portanto, qual seria a natureza do movimento que orientava este homem marcado pelo sofrimento a falar deste modo?
 
Reservar-se, ou marcar a sua figura social como quem marca uma peça de roupa com uma propriedade exclusiva?
 
Mais ele ficasse em silêncio, mais eu teria elaborado um romance com todas as questões que me ocorriam em paralelo com a investigação da sua figura e do seu rosto, figura e rosto que eram como que os hieróglifos da sua vida, e teria talvez até conseguido especular e delinear o mapa da loucura que pudesse servir de suporte a um tão estranho comportamento.
 
Mal o homem abriu a boca e falou, porém, o movimento da minha imaginação interrompeu-se. O sotaque francês desfez o valor das iniciais que acabara de ouvir em português - Érre  Vê - e recompô-las em francês no nome comum, vulgar - Hervé.
 
Era um homem belo e infeliz, de meia idade, agudamente estrábico, sem aquele grão de loucura que eu desejaria cartografar.

Sobre uma pirueta infinita

Sonho CCLXV


Com os pés descalços, tentava fazer uma pirueta inteira sem o apoio da barra.
 
Para meu grande espanto, fazia, não uma, mas muitas, muitas, muitas piruetas.
 
Que alegria!...
 
A avó Edith também não tinha morrido.
 
Com os seus modos suaves, sugeria aperfeiçoamentos.
 
«O pé - mais para cima.»
 
«O joelho - mais para o lado.»
 
«En dehors!...»
 
«Abre.»
 
«Pé em conchinha.»
 
«Força.»
 
«Sobe.»
 
«Cabeça ao alto!...»
 
Por uma disciplina de humildade, mais do que por ambição, esforçava-me por obedecer a tudo.
 
Mas dizia:
 
«Oh avó... É só dançar por dançar...»
 
O que mais me agradava era aquela sensação de espiral. Uma espiral que se desenrolava ao alto.
 
E outra coisa que me fascinava era aquele branco. Um branco no pensamento.
 
Porque aquele impulso que se dava aos pés para girar era tão rápido que era impossível apanhá-lo com o pensamento.

Como é que o corpo dava a volta e sabia onde parar?
 
Ficava um branco na consciência, como um buraco, mas, mais que um buraco, porque um buraco é já alguma coisa, era um intervalo sem conteúdo.
 
Só se dava por ele porque estava entre e entre.

Como o sono.

Entre adormecer e acordar.
 
Entre uma coisa e outra coisa.
 
Entre partir e chegar.
 
Entre ficar de frente e de costas.
 
«Não podes ser tão egoísta.» - Dizia ela, dobrando mais o meu pé.
 
Mas não sei como o fazia, no meio da pirueta.
 
Essa avó sempre tivera poderes desconhecidos.
 
Onde estava ela agora?
 
«Se Deus é testemunha, a alegria também vale como acção de graças, não concordas?»
 
É que a pirueta nunca mais parava, nunca mais parava, nunca mais parava.