Contraponto para Isabel Aguiar (2) - um título


Uma lembrança parece ser uma espécie de remake. Chamemos-lhe eco, sombra, cadência, variação. Uma coisa de outra coisa? Será que a lembrança é sempre como narrativa de acontecimento, por assim dizer, uma coisa de segunda instância? 

Nesse tempo em que nos transformávamos em raios de luz à custa de vodka e gin, todos nós, as sete personas, excepto o Artur Borboleta, todos nós nesse tempo partilhámos uma estranha e avassaladora sensação comum. Éramos como fluxos de partículas, feixes de luz, fachos, linhas de gás. Éramos corpos ardentes em corridas suspensas de dispersão, liberdade infinita e velocidade infinita. Éramos só a ausência do limite e o prazer absoluto, para além de todo o prazer. Sem respiração, linha contínua, pulsar abstracto de coisa intangível mas que aparece tanto em certa música, tantas vezes na música de Bach, para dar um exemplo. Uma sensação, só uma sensação. Mas uma sensação é uma coisa compósita. É uma coisa existente, sem dúvida. E esta sensação vinha acompanhada de uma outra sensação que era a de ter uma lembrança, recordação, dejá vu. Vivemos esta sensação antes, não há dúvida. Antes, quando? Antes de existirmos? A sensação tem incluída nela uma outra sensação, a sensação de ser uma coisa conhecida. Conhecida do passado. Vivemos no momento a sensação com toda a intensidade e nitidez, mas não sabemos que coisa foi a que vivemos previamente e que deu à sensação a tonalidade, o timbre e o aspecto de uma recordação, de um dejá vu ou de uma lembrança inédita. Podemos falar no plural, isto é comum a todos nós. Vivemos como sensação a lembrança de uma outra sensação. Lembrámo-nos de uma coisa que nunca vivemos, uma coisa que aparentemente não parece ser possível viver. E eu pergunto: será que isso foi realmente qualquer coisa antiga de que de repente nos lembrámos, coisa enterrada e esquecida e que a sensação nova foi buscar? Ah!... Lembrámo-nos de voar entre as estrelas com velocidade infinita e liberdade absoluta. De circular em linha recta por uma pradaria abstracta. De correr, correr, correr, não como corpo, só como luz. De arder continuamente numa chama inextinguível e de ser chama e cinza ao mesmo tempo, poeira e fluxo ao mesmo tempo, força e rarefacção, queda e suspensão ao mesmo tempo, de um modo inextinguível. Apenas voo, afirmação e velocidade... Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita. É um belo verso que obriga a pensar e que acorda em mim uma velha recordação. A de estar enrolada numa toalha de praia, com doze anos, depois de sair do mar. De olhos fechados, os meus dedos brincavam com os fios esfiapados do tecido, sem que me apercebesse que era uma vespa. Tranquilamente brinquei com a vespa de olhos fechados, até que chegou o momento de a apertar entre os dedos.