Contraponto para Isabel Aguiar (9) - Jogo perigoso

 

Muitas vezes, quando se anda na rua é quando mais pensamos, como se pensássemos com os pés. Estamos na rua em horas determinadas (eu e tu) - e também em horas não determinadas. Sabes que amo especialmente as madrugadas desertas, pelas quatro da manhã. Os pássaros começam a cantar quando todos dormem. E há uma textura inenarrável no ar, uma subtileza da manhã. O dia vem limpo, envolto em silêncio e humidade. É uma nova volta da Terra. 

Àquela hora por vezes estou na rua. Não tomo por modelo os meus personagens porque eles estão sempre presentes, como totens. Totens é exactamente o que eles são. Por vezes penso: "Isto é a Riverday." "Isto é a Maria do Mar." "Isto é o Orlando." Isto o quê? Talvez esta coisa de existir. As visões de tudo entram-nos pelos olhos com um esplendor insuportável, com tamanha monumentalidade. Tanto espaço. Tonalidade e velocidade dos afectos, que marcam temperamentos. Correntes de pensamento. É só a esquina de uma rua, levemente esbranquiçada pela fraca luz de um candeeiro público. É só um recorte de muro. Quase nada. São só as folhas dos choupos adejando na luz, como mordentes barrocos tocados numa passagem virtuosística. Nada de assinalável. Mas que imensidão. O fluxo das tuas sensações é uma linha demasiado ardente, demasiado rápida. Sentes que aceleras ao ponto da ruptura total. Olhar para uma árvore e ter uma sensação. Uma sensação compósita e veloz como certas passagens orquestrais de um concerto Brandeburguês. Uma sensação de Deus. E depois todo o pensamento de como isso possa ser possível. Sentir, no deserto de uma enorme solidão, inapagável, incontornável, impossível de redimir, uma aguda falta de amor. E o desejo alegre de morrer, de voltar a ser pó de estrela, simples partícula de um cosmos mineral. Um desprendimento, por vezes ridente, por vezes quase cruel. O desapego que talvez seja dos mortos. A paixão e, no extremo oposto, uma delicada indiferença. Esses totens invisíveis seguem-me por todo o lado, como uma escolta. Batalhão do entre-caos. O que me levou a isto? (O que me levou a isto, não sei.) Mas é como dizes: tomar como modelo uma criação de si mesmo, estar sempre em contra-espelho, em desdobramento. Se ao menos durasse apenas uma hora por dia. Mas ainda sonho incluir tudo e todos na contra-acção de uma escrita, essa humanidade, como dizes, que talvez não queira saber de nada, só de existir.