Contraponto para Isabel Aguiar (10)

 

Não é um comboio de corda, o coração. Não gira nas calhas de roda. No fim do poema, esta frase é como um encolher de ombros. Uma desistência. Belo remate bem composto (socialmente bem composto, intelectualmente aceitável, digamos assim), para quem antes tanto transgrediu, Fernando Pessoa. Bela saída, para quem lançou uma bomba. Depois de disparar o obus saio encolhendo os ombros. Já que tudo é nada e o infinito nos trespassa, porque não encolher os ombros? Deixem-me, deixem-me. Sabes que há perfis que estão no silêncio. Quem tu és nunca se diz. Seres semi-nus de convenções passeiam nas ruas da cidade. Nas ruas da cidade são gente. Figuras andantes. São reais e aqui quando escrevo serão já ficção? Serão ainda reais, se não estiverem mortos? Aqui desejo que andem eternamente pelas ruas da cidade. Enquanto houver ruas, cidades e gente que ande por elas e leia palavras como 'ruas', 'gente', 'cidades'. Será? 

Para Kant existiam as coisas que podem ser conhecidas. Digamos, com o nosso vocabulário moderno, o mundo material, que tantas vezes identificamos com a realidade. Essas coisas são as coisas de que podemos ter uma experiência. Coisas que podemos ver, sentir, medir, pesar, experimentar e cuja experiência pode ser repetidamente verificada e partilhada. Com os progressos da ciência e da tecnologia, o mundo material tem-se expandido de um modo surpreendente e notável, o que deixaria Kant muito possivelmente semi-louco de alegria. Coisas que antes pertenciam ao domínio da especulação, como as partículas infinitamente pequenas da matéria, imaginadas há mais de dois mil anos por Epicuro, são hoje factos da realidade experimental. Também a minha imaginação da alegria de Kant pertence ao domínio da especulação. Se Epicuro entrasse hoje num acelerador de partículas, como se sentiria?

Segundo Kant, para além dessas coisas reais, de que se ocupa o entendimento (talvez a faculdade da razão que o senso-comum propriamente identifica como razão), existem as ideias da razão pura, que no entender de Kant são absurdamente escassas (apenas três), mas suficientemente avassaladoras para conduzirem ao delírio qualquer espírito pragmático que por elas se aventure. O mundo como totalidade (hoje diríamos, o cosmos); Deus; a alma ou, dirás tu, minha amiga, seres semi-nus de convenções, que passeiam na cidade, como nós.

Que outro modo teremos de pensar e conhecer o avesso do corpo a não ser por intermédio da arte, do amor, da poesia, da literatura e da ficção, talvez da filosofia? Não deve ser errado afirmar que nos apercebemos da alma uns dos outros sempre por intermédio de recursos muito afins às técnicas da ficção. Há a expressão dos rostos, que muito engana. Principalmente quando especulamos sobre o que poderá motivar certo rubor, certo constrangimento, certo baixar dos olhos. Enganamo-nos frequentemente, em especial com as crianças, conhecidas pela sua transparência. Há a narrativa das acções, que temos de compor como quem escreve um romance. Com recursos de memória escassos e com julgamentos flébeis, assentes em estacas. Há quem se questione muito e quem não se questione rigorosamente nada. O certo é que a cada verdadeira questão se arriscam as entradas no caos. E não só as entradas no caos, por vezes algumas formas de loucura e de delírio. Uma questão é sempre um desabamento. Por isso podemos compreender aqueles que em termos de pensamento se comportam como comodistas, dogmáticos e até inertes. Será muito possivelmente um regime de sobrevivência. Talvez o velho instinto biológico de manter o dispêndio da energia do sistema no mínimo, uma ecologia natural. Eis uma defesa da estupidez. Se formos juízes de factos pouco sobra do tanto que é poeira. Valem muito as sensações de pele, a intuição, certas visões absurdas. Uma via paralela, mas não descartável. Há a interpretação das palavras, os rastos dos diálogos, que recompomos com dificuldade. Enfim, o que sobra? A ficção como alternativa da técnica? A ficção como andaime para uma técnica futura, para um conhecimento futuro? A ficção como um trilho do desejo, porque a todo o conhecimento, o desejo o precede? 

Não é o coração que gira. É a alma. E ainda não temos outro modo de a tratar. De certa forma, avançámos mais em relação aos corpúsculos e ao mundo como totalidade.