Contraponto para Isabel Aguiar (11)

 

O rosto é que é a máscara. 
É preciso inventar qualquer coisa para poder tirar o rosto. 
É preciso fazê-lo depressa, antes que se acabe o tempo. 
Colocar chapeuzinhos de sol nos pulsos e nos tornozelos. 
Uma saia de palha, como nas tribos da Guiné. 
Máscaras rectangulares, como dançarinos do Mali. 
Que espanto, o rosto no espelho. 
Que estranheza. 
Teria três, quatro anos? 
Perguntava: é isto? 
Esperava talvez que fosse outra coisa. 
Koala, tigre, lagarto, borboleta, flor. 
Tudo num rosto parece tão desavindo. 
Os olhos, o nariz, os dentes, o cabelo, as pestanas, as sobrancelhas. 
A boca por dentro. As amígdalas. 
Será que conseguiremos um dia amar o nosso rosto? 
Em fotografias que já não são as do meu rosto actual,
então de súbito sinto que aquilo era eu.
O tempo voa. 
A consciência de ser alguma coisa é sempre desfasada. 
Talvez um dia depois de morta 
olhe para o meu último rosto muito enrugado e suspire por ele. 
Teremos certamente um ou mais rostos por ano. 
Talvez a maior estranheza talvez seja não ser outra coisa. 
Um pássaro. 
Uma chita veloz. Um  raio de luz. 
Uma pedra. Uma nuvem de pó. 
Será a memória filogenética 
ou antes a possibilidade de ser realmente qualquer coisa mais plástica? 
Uma expressão mais abstracta e acidental da vida? 
Talvez a simples sensação de ter sido um embrião no ventre materno 
que em tempos abandonou as guelras e em que as mãos, 
antes de se separarem os dedos, foram barbatanas.