Contraponto (3)


Algures deves saber, porque assim começas, que em todas as casas estive sempre de passagem. Saberás, certamente, com essa inconsciência lúcida dos que não medem o que sabem, que em todo o lado estive de passagem, como um estrangeiro ou como um pária. Em todo o lado senti que não conhecia ninguém. Ou que ali estaria por pouco tempo, mesmo que estivesse muito. Cheguei a divertir-me, se é que tal conceito se pode aplicar, imaginando-me um turista na casa que era a minha, espião nos vários locais por onde passava. Estava ali como observador ou como alguém que tem uma missão secreta e insuspeita. As coisas que via... nada tinham a ver com o que se pudesse supor que visse, não é verdade? Era, se tal se pode imaginar, uma personagem ao avesso, pois por fora parecia pessoa, mas, por dentro, para poder suportar tanta estranheza, me ficcionava como outra coisa: turista, espião, vagabundo ou simplesmente de passagem - uma pessoa de passagem, espécie de pária.


(Textos para Isabel Aguiar, a autora dos excertos aqui citados e que me lançou o desafio de escrever a partir de "Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita")