Contraponto (4)

 
Outra casa houve, porém, a que inventei, e de que se pode dizer: "É uma teoria dela própria". Chega-se por um largo caminho de ciprestes, todo em terra batida e que cheira tanto a poeira seca no Verão. Na entrada, diante das escadinhas que sobem para o terraço de tijoleira muito gasta e que borda toda a fachada frontal, com as altas janelas, está a fonte de velho calcário. Coisa simples, vagamente romântica. Mas a Maria do Mar, que deixou apodrecer o telhado por falta de obras e reparações, nunca permitiu que ali a água deixasse de correr. A água saúda-nos com o seu canto tamborilante que soa alto entre os pios dos pássaros e o restolhar das ervas e das folhas das árvores no campo. No murete do terraço, pequenas figurinhas humanas em estilo italiano, muito arruinadas, mas com uma dignidade imaculada, intocável. A sala dos nenúfares, verde, com as duas poltronas gastas e a mesa pé de galo. A biblioteca. A sala de jantar pintada de vermelho escuro. Por todo o lado uma imensa frugalidade e uma rarefacção de tudo. Móveis reduzidos ao absolutamente essencial, pontuando aqui e ali os espaços. A horta e o pomar perfumado, nas traseiras. O roseiral. Os quartos muito simples com o chão encerado e as cortinas brancas de linho, cortadas a direito. O grande segundo andar das danças da Maria do Mar. E a parte onde o telhado ruiu e onde a chuva corre agora sobre lonas e calhas, que eu filmei. Da casa da Maria do Mar em Viana do Castelo nem a planta existe, apenas textos. Quem sabe, um dia, o filme.


(Textos para Isabel Aguiar, a autora dos excertos aqui citados e que me lançou o desafio de escrever a partir de "Nada existe que tenha sido uma lembrança inédita")