Os vagabundos, a louca e a prostituta

Fragmento 196



Diz-se que em todos os bairros existe um vagabundo, um louco e uma prostituta.

No sítio onde moro vi desaparecer três vagabundos. Um deles, muito sujo, vestia-se elegantemente com fato, camisa branca e gravata, mas via-se que usaria aquela roupa há muito tempo, pelo menos um ano. Devia ter os seus cinquenta anos e as melenas compridas e oleosas caíam-lhe sobre o rosto. Parece que em tempos fora muitíssimo rico, mas agora cambaleava sem nunca tocar com os olhos em ninguém. Havia um outro vagabundo que era um rapaz igualmente bem vestido, igualmente sujo, sempre acompanhado de um bloco A4 e caneta e que tinha uma predilecção por ficar em frente ao mar, a escrever. Este rapaz notava-se que mudaria de roupa de vez em quando. Um dia aproximei-me dele para perguntar se precisava de alguma coisa. Foi como se eu fosse totalmente muda e transparente - o rapaz não acusou qualquer sinal de que eu estivesse ali. No bloco, havia números e não palavras, muitas equações. Afastei-me. O terceiro vagabundo parecia um faquir. Usava calções e caminhava em alta velocidade pela marginal, por vezes nos passeios, outras vezes em cima do risco contínuo, com os cabelos eriçados e os olhos alucinados fixos no vazio. Nunca mais os vi, aos três vagabundos. 

Perto da minha casa existe também uma mulher bastante velha que está louca. Usa um boné de pala vermelho e meias coloridas a meio da canela que a fazem parecer uma palhaça. Anda sempre de saia, e nenhuma das cores combina. Por vezes grita muito, ralhando para ninguém com palavras incompreensíveis, outras vezes ouve simplesmente música num transistor. Quem é que ouve música num transistor, no meio da rua? Cheira a suor e urina e tem barba e uma vez via-a de rabo ao léu a fazer chichi atrás de um arbusto.

Depois existe também a prostituta, com quem me cruzo tantas vezes, de passagem. Era bonita há sete anos atrás, a rapariga de dezoito ou vinte anos com o corpo ágil e bem esculpido como o de um lince. Agora a sua pele tem outra cor e o rosto, velhíssimo, é como se estivesse sulcado a machado pelo sofrimento. Vejo-a sentada nos muros, sempre sozinha, encostada nas esquinas, com o corpo magro e subtilmente comido pela fome, a entrar sozinha na pensão discreta e pobre, ao lado das casas de luxo. Vejo-a conversar com homens, sozinhos ou aos pares, um deles montado numa mota barata. Vejo a expressão baixa e torpe com que certos miseráveis comentam entre si ou a seguem quando ela passa, assobiando. Vi-a um dia receber imóvel um tremendo ralhete de uma outra mulher que agitava os braços à sua frente, desesperada. Mas os seus olhos nunca tocam em ninguém, tal como os olhos da louca e como os olhos dos vagabundos. No seu rosto, nenhuma expressão a não ser, de um modo duro, lento, opaco, um sofrimento que se escreve na escuridão progressiva da pele e na velhice prematura, desencantada. Vi-a hoje de relance quando passava de carro em frente do cemitério e reparava nas cruzes dos jazigos brancos ao lusco-fusco. Pensava: «Belo enquandramento, o topo triangular dos telhados brancos dos jazigos cortados pelo muro alto e em cima as pequenas cruzes de mármore ao lusco-fusco...», quando a vi saltar por cima de um muro com a agilidade de um gato, desaparecendo na mata cerrada que está ao lado do cemitério, abandonada, para se drogar. O meu estômago deu uma volta de e veio-me uma náusea, seguida de um arrepio.

A violência.