O Leão de Belfort, Noveleta Urbana - de Alexandre Andrade

Fragmento 195





Não é por acaso que os improváveis anúncios afixados nas ruas de Paris por donos de gatos mais ou menos desesperados e sempre com o título de «Perdeu-se Lindo Gato» referem animais que invariavelmente têm o nome de um dos personagens de «Em Busca do Tempo Perdido», de Proust. 

Saint-Loup, Palamède, Oriane, Basin, Bergotte, Bloch, Marcel... Eles não estão perdidos (p.148), mas «apenas à espera do momento para se mostrarem» - um mágico e difuso momento que coincide aliás com o sonho final de Cristina e que surge coroado com um insubstituível comentário (no momento em que Cristina ao levantar-se da cama bebe um sumo de maçã na cozinha, desenhando figuras geométricas num vidro embaciado), pervadido pelo mesmo humor inimitável que atravessa todo o livro, de lés a lés: «O zumbido maravilhoso do frigorífico; o bule de cerâmica deliciosamente rachado.»

Mais do que porque o ciúme, tão importante em Proust, seja o motor do pequeno drama de adultério, quase rarefeito, entre o jovem casal formado por Cristina e Gui, ou porque Paris, como referiu Alexandre na entrevista a Ana Daniela Soares, seja a cidade infinita onde se pode ter a «sensação inebriante de que basta esperar e qualquer coisa vai suceder», mas principalmente porque «Em Busca do Tempo Perdido» seja o primeiro grande romance que funde vida e literatura de um modo tão intenso e problemático, talvez por isto estes nomes sirvam de Ritornello na saga subtilmente humorística de uma pessoa em busca de perceber quando começa a viver a sua história, uma pessoa, como nos diz Alexandre, na mesma entrevista, «a viver uma vida que decorre sem sobressaltos, corre bem, aparentemente, é feliz... mas na qual ela sente a falta de qualquer coisa e essa "qualquer coisa" é uma coisa um bocado etérea e vaga a que ela chama "viver uma história", "sentir-se personagem".»

Cristina Verschwundhoffnung é o nome que traduz a experimentação desta aspiração e desta angústia, de uma forma quase sempre cómica (como quando a protagonista nos é apresentada no diálogo com Anaïs no meio da rua), e em parte pelo eco que o apelido desenha com as palavras alemãs que podemos traduzir por "perda", "esperança", "vário".

É num filme de Grifith (True Heart Susie), que Cristina se depara com um primeiro intertítulo que a faz lançar numa corrida quase louca pela cidade e que termina no mercado ao ar livre do Boulevard Beaumarchais na compra de cerejas, pepinos, sidra artesanal e um pedaço cuneiforme de queijo Maroilles. Dizia o intertítulo:

Is real life interesting?

Every incident
of this story
is taken from
real life.

Nem lei (História), nem segredo (história) (p. 91) - o esforço com que Cristina tenta trazer à tona dos dias um "acontecimento", envolvendo-se com o professor de desenho, desconfiando de Gui, procurando algo de malsão nas suas leituras, através da pista de um livro de Faurisson (um negacionista do holocausto), aceitando o convívio com um divertido grupo de marginais que se reúnem numa espécie de catacumbas e atravessando tudo isto com uma inocência paradoxal, que dança como o sorriso do gato de Lewis Carrol entre a leveza e o humor de uma prosa elegantíssima - afinal todo esse esforço se condensa numa pequena epifania, antes da partida para viver em Lisboa, ao sabor de Beckett:

É preciso ter uma vida. Não é preciso ter uma história. (p. 151)

Será o Leão de Belfort, este animal encurralado e em fúria que olha na direcção da Estátua da Liberdade em Nova Iorque (com quem tem em comum o mesmo escultor, Bartholdi) o símbolo de uma resistência dupla que é raro nomear?

O Leão de Belfort simboliza a resistência heróica do Coronel Denfert-Rocherau e da população de Belfort durante 103 dias e com quinze mil soldados, na guerra prussiana de 1870, contra quarenta mil soldados alemães. A desproporção de forças era enorme. Cristina escreve, no seu diário: «Rue Ernest Cresson. Alimentação geral. As cores vivas das latas das bebidas, alinhadas como um exército. Tomates, cenouras, couves-de-Bruxelas, chalotas. Alguns passos mais adiante: cabeleireiro para damas e cavalheiros. Frascos de loção, boiões de gel, aerossóis de laca. Uma loja de revenda de artigos em segunda mão. Demasiado fácil. O respigador ambulatório de factos e objectos não ousaria pedir tamanha diversidade. Uma iogurteira, uma batedeira, um ferro de engomar, CDs de Nicolas Peyrac e Serge Lama, blusas de senhora, caixinhas para medicamentos de inspiração japonesa, camafeus, brincos, argolas de guardanapo, livros de bolso, números antigos da revista Esprit. (...) Se um cataclismo engolisse Paris de um dia para o outro, e se, por um fenómeno extravagante, apenas os objectos deixados nas lojas se salvassem para as gerações futuras, como será que os vindouros reconstruiriam as histórias pequenas e grandes dos habitantes da cidade? (...) Esses cronistas do passado teriam diante de si uma das tarefas mais ingratas. As vidas que eles tentariam reconstituir, com base na cornucópia de achados arqueológicos à sua disposição, seriam forçosamente pletóricas, ricas, absurdamente cheias de variedade. Vidas impossíveis, saturadas de acções capazes de ligar numa cadeia longuíssima uma tão grande diversidade de objectos, como numa litania.» (pp.59-60) 

Há nesta prosa, como numa linhagem de cinema que inclui Ozu e Tarkovski, esta tentativa pungente de fixar a vida na sua grandeza trivial, prosaica, ínfima e íntima, tão imperceptível, como, em Ozu, o gesto inconsciente com que um actor ou actriz se coça, durante fracções de segundo, num joelho ou num cotovelo. Assim resistem as personagens de um romance de Proust nos sonhos de quem as ama como animais peculiares e íntimos, únicos (de preferência gatos ariscos e rebeldes que luzem com luz própria e que não vão a lado nenhum), e assim parece que resistimos nós em busca de nos tornarmos personagens na difusa e indistinta (indiscernível) fronteira entre a arte e a vida.