A paz e a terrina de porcelana azul e branca

Sonho CCCX

Estava num grande jardim onde ao longe conseguia distinguir a velha casa de aspecto senhorial que fora dos meus avós, mas que já não era nossa. No jardim havia muitos eucaliptos cujas sementes perfumavam a terra com uma sensualidade inebriante. "Jamais deveria ter vindo viver para a cidade." - pensava eu. Tudo ali me fazia vibrar e agitar suavemente as cordas do corpo, como se eu fosse um instrumento musical. O som das águas correndo. O restolhar do vento nas árvores. O grasnar dos pássaros e os mil perfumes que se elevavam da terra. Sentia-me tão viva e desperta e com vontade de ter os pés descalços e as pernas ao léu e de dormir a sesta em cima de uma manta. Tinha nas mãos uma terrina de porcelana azul e branca do século XIX, de um velho serviço chinês. Tirei a tampa da terrina e observei que por dentro o pintor se dera ao trabalho de pintar em pequenos quadrados as cenas da vida de um jardim. Pensei também naqueles artistas árabes que burilavam os móveis por todos os lados, mesmo nos que são impossíveis de ver, pensando em Deus que os veria por todos os lados. Também o artista da terrina devia pensar de igual modo, pois o que estava lá dentro era ainda mais belo e interessante do que o que estava cá fora. Sentia que podia compreender muito bem esta espécie de artistas, frequentemente anónimos. Também eu tentava fazer do meu dia como que essa missão artística para Deus, mas tinha ainda de encontrar o plano da gentileza singular que me permitisse não me sentir em falta permanente. Dentro da terrina estava uma esplanada com muitos e delicados chapelinhos de sol e, a dado passo, um fonte feita em degraus com taças de cerâmica de autor. Tinham aproveitado um renque de árvores recém-floridas, de trocos esbeltos e maleáveis, que se dispunham alinhadas ao longo de uma suave inclinação. Assim, em frente desses troncos tinham disposto as taças em degraus e a água corria por elas em cascata até chegar a um pequeno tanque. Era tão lindo... Rapidamente percebi que no meu jardim estava exactamente uma composição igual a essa do interior da terrina. O mesmo renque de árvores, as mesmas taças azuis e irregulares e eu podia ouvir o som mágico da água a correr enquanto saltitava de umas taças para as outras. Uma coisa tão simples e tão incrível... Sim, iria fazer um pequeno filme desses trajectos da água com o meu telemóvel. Sim, iria ficar ali apenas a ver e a ouvir, mergulhada na suavidade do calor inebriante. Não queria saber de mais nada. Principalmente e durante algumas horas não queria ter notícias de nenhuma guerra nem de como os homens destroem tudo o que encontram e num segundo arrasam as vidas, ferem de morte as almas e ofendem para sempre a alegria e a inocência, arrasam casas e cidades inteiras e fazem sangrar paisagens por décadas e décadas. Ali, é verdade, podia sentir a paz, mas era mais e menos que uma sensação, essa paz que se libertava do som das águas e das árvores e do desenho da velha casa senhorial que ao longe parecia um quadro de Cézanne. Fria, imensa e monumental, que poderia dizer de uma coisa tão estranha e tão imensa, tão desumana? Era uma paz e estava presente, imensamente presente, tomava todo o espaço com uma presença viva e não humana e que na imaginação só me parecia equiparável ao que fosse um grande silêncio cósmico, indecifrável e inacessível, mas intensamente omnipresente.