Por vezes acontece que o pensamento por dentro dispara sob a forma de páginas de um livro que estou a ler. Não tenho propriamente nenhum livro, nenhuma página, nenhuma folha impressa na minha imaginação. Nada disso. É tal qual a corrente do texto lido quando se lê um livro em silêncio: a fala muda, a voz imaginada, mas não fisicamente ouvida, que segue pela minha cabeça fora, principalmente quando ando a pé ou viajo de carro. Que coisas incríveis, irrepetíveis e inéditas, me foram dadas a ler... Pelo menos na minha imaginação eram de grande pertinência, essas coisas que me causaram profundo maravilhamento e que não li como se fossem minhas, embora aparentemente fossem produzidas por qualquer coisa em mim. No outro dia, caminhando à beira mar, apareceu um texto grande sobre o suicídio, a propósito da Isabel Aguiar. Do deslumbramento apenas me ficou o tom e algumas notas que consegui tirar, na esperança de o escrever, ou melhor, de escrever qualquer coisa levemente aproximada ao que me foi dado, pois é tudo o que a lucidez e a humildade permitem. Isto porque a prosa tem sempre esta fluidez, esta velocidade maior e um som que é mais interior do que exterior, ela é como um voo de pássaro que me atravessa. Que velocidade... que fascínio me imprime... E muito pouco dela se consegue realmente agarrar. Escrever depois é toda uma recriação de tonalidades e ambientes, todo um novo esforço para articular e prospectar o pensamento testemunhado anteriormente. Quando é o caso que seja poesia a aparecer, curiosamente, o gravador do telemóvel já serve para qualquer coisa. Talvez por causa da monumentalidade das frases, porque a poesia tem aquela qualidade mais esculpida e material. A poesia por vezes é mais lenta, tem intervalos que dão para repetir o verso no microfone e o som dela pesa mais, é como se fosse uma coisa mais física e mais exterior, mais concreta. "Como se..." Ainda assim, consigo agarrar melhor aquele vento do poema que de repente me bate, usando o gravador de voz. Já para a prosa, o gravador é inútil. Uso mais uma técnica de prospector, de caça... tento capturar o animal pelos eixos, pelas articulações. Mas é difícil. Médiuns como Fernando Pessoa, que também têm o dom de alguma escrita automática, são muito possivelmente agraciados com outro tipo de experiência. Mas Pessoa também fala, no Livro do Desassossego, desta mesma experiência de ver o livro a correr à sua frente. Muitas teorias se podem inventar para explicá-la, mas, para já, não existe nada que definitivamente a explique. A partir desta experiência é que realmente tento realizar qualquer coisa a que decido chamar arte, não por prazer, não por vaidade ou afirmação pessoal, creio, mas por necessidade. Porque não é possível ignorar uma coisa tão forte. É impossível. Tudo o que se sente é: tenho de fazer alguma coisa com isto, não posso ignorar. De onde vem? O que é? Por exemplo, o Livro dos Médiuns, de Allan Kardec, não deve ser descartado sem mais nem menos. Já coloquei muitas hipóteses. Que fosse o meu próprio inconsciente a trabalhar e a apresentar-me, já feito, o seu trabalho. Coisa um bocado ineficiente, devo dizer, pois é tanta a dificuldade de agarrar essa produção. Que fosse um fenómeno do inconsciente colectivo, uma espécie de "porta aberta", foi outra hipótese que coloquei. Esta é uma hipótese muito interessante, até porque abre a visão para modelos de experiência em que o pensamento não é uma coisa imaterial. Os gregos elaboraram, nestes dois sentidos (interior e exterior, do que vem de dentro e de fora), um conceito que vale a pena explorar, o conceito de daimon. Acredito hoje que a hipótese mediúnica, apesar de profundamente iconoclasta e extemporânea nestes tempos que correm, não deve ser descartada levianamente. Mas isto é coisa para muitas páginas e muitas interrogações.