Tché

 Sonho CCCIX

O patriarca de uma família que em tempos se tornara ilustre pelos seus músicos e intelectuais mostrava-se profundamente desapontado com grande parte da sua descendência. "Porquê?" - havia quem lhe perguntasse. "A culpa é do tché." - dizia ele. Eis uma palavra que nunca ouvira em toda a minha vida. "O tché" - dizia ele - "é o medo português." "O medo português?" Eis as coisas em que quase chegando à segunda metade da vida se desconhecem em absoluto." - pensava eu. "O tché é o medo português de não ser igual aos outros." - esclarecia o patriarca. Medo de não usar a roupa certa, as palavras certas ou a atitude certa e assim ser desprezado ou olhado de lado pela maioria do grupo, neste caso, pela família. "Ai... como me desgosta tudo isto... por que raio vim chegar a este papel, patriarca? Eu só me casei... e foi por amor... e agora estou cheio de filhos... todos eles cheios de tché." Realmente, parecia-me que o pobre homem estava cheio de razão. Haverá lá faísca de criatividade ou sentido crítico que possa sobreviver ao tché? Mas também há aqueles que querem ser diferentes de todos. E não é  precisamente a mesma coisa, mas ao contrário? Como a anorexia e a bulimia. Ou o esbanjamento e a avareza. Há sempre aquelas coisas que sendo o contrário umas das outras são precisamente o mesmo - e nisso opera a ilusão de muitos.