O tom



«Francisca,

Talvez um dia alguém se admire e se pergunte porque é que nós que vivemos na mesma casa escrevemos cartas uma à outra, como se continentes e mares nos separassem. Não somos como aqueles apaixonados que por timidez ou invalidez ou mero pudor enviam em sua representação o pior delegado de si mesmos - uma carta de amor. Nós que dormimos a sesta à sombra da mesma árvore, lemos os mesmos livros reclinadas no mesmo sofá e jantamos nesta casa sem electricidade à luz das mesmas velas podemos conceder-nos o extravagante privilégio de deixar cartas sobre a cama uma da outra como quem deixa coroas de flores e bilhetinhos com o mapa dos caminhos por onde iremos passear no dia seguinte, pela beira dos rios. Não é verdade? Não concordas que há encontros que é muito mais agradável ter assim - ou que só podem mesmo ter-se assim? Nada mais vão do que uma conversa. Nada mais desnecessário que uma conversa, que nos distrai infinitamente de tudo o que nos rodeia por dentro e por fora só para no fim nos deixar exaustos e exauridos e drenados como pântanos sombrios e confusos... Que bom que é fazer amor sem palavras e fruir o sublime sem arrobos - em silêncio!... Pelo menos aqui nestes papéis as palavras têm a vantagem de chegar no meio de um grande silêncio, pois não são ditas, são só lidas, e é como se viessem despidas. As nossas cartas são só mais um modo de fazer amor, não concordas? Estas palavras são como os nossos corpos debaixo das roupas. Trazem consigo aquele mesmo calor, aquela lisura e aquela embriaguez da pele. Será o silêncio que lhes dá um som de alma, um som de coração, tal como uma sensação interior, toda virada para dentro - um som virtual que na verdade não vibra mas vem com a intensidade própria de ser só imaginado? A pele também tem a sua sinfonia própria e íntima - selada. Francisca, nisto não há companhia melhor que a tua, quando não me vens dizer: «Que lindo rio!...» - quando contemplamos o rio. Pelo menos tu não interrompes com comentários inúteis o nosso êxtase comum, como se fosses um turista que entrasse numa igreja e tocasse no ombro do crente ajoelhado para lhe dizer como é magnífica a talha dourada do altar!...

Hoje o nosso dia foi tão calmo e luminoso, foi tão bom colher as amoras maduras e prontas à beira do rio - e tu sabes como eu amo o Verão e fazer compotas e ainda mais comê-las, mas durante os nossos silêncios continuei sempre a pensar no que já te tinha escrito sobre a experiência de escrever em espartilhos clássicos, com métrica escandida e versos rimados, e da surpresa que isso me causou. Sabes, Francisca, acredito que de um modo perfeitamente involuntário acabei por criar um novo género. Não se trata de uma afirmação imodesta porque, na verdade, a sê-lo, será um género muito pouco nobre e muito pouco apreciado. Imagina, como inverso de «prosa poética», uma «poesia prosaica». Deve ter sido este o resultado de um projecto frustrado de há muitos anos atrás, quando imaginei escrever um pequeno livro numa prosa disfarçada e que na verdade seria toda feita com a métrica rigorosa e espiralínea da terza rima de Dante, mas em texto corrido, aparentemente livre. Não consegui concretizá-lo, mas ainda não desisti deste projecto. Porém, é caso para exclamar - «Como os nossos desejos seguem caminhos enviesados!...»

Talvez um pouco por tudo isto cada vez mais me convença que o tom prosódico é como uma posição do corpo. Nunca, por maior que seja a disciplina ou virtuosa que seja a torção, chegaremos a dominá-lo de uma forma inteiramente consciente. Porque a consciência é como uma dobra - e até mesmo um espelho, até mesmo o olhar de um outro, até mesmo um filme, só nos dão o corpo plano a plano (soluço a soluço) na série especialmente involuntária dos seus múltiplos, infinitesimais elementos. Por mais rigoroso que seja o juízo do próprio, ele será sempre um pouco frouxo, não concordas? Como os olhos que, do próprio rosto, ou captam a ponta do nariz, ou sempre a posição um pouco preparada no espelho. Sei que não concordas, mas não acredito que nada nos salve. Nem uma migalha de justiça, nem um grão de necessidade. Estamos em profundo desacordo, é certo, mas, como sabes, para além do álcool, ainda não descobri, como tu, a imanência. Até mesmo os melhores contemporâneos, os mais lúcidos, os mais cultivados ou agraciados por uma viva inteligência sofrem desta deformação da visão que advém de um excesso de proximidade e que resulta numa outra frouxidão do juízo, para o bem ou para o mal.

Não sentes que seremos sempre como aqueles náufragos que escrevem uma mensagem e que a lançam à sorte numa garrafa de vidro?

Pode ser que um grande peixe venha a engoli-la ou que seja descoberta cento e setenta e cinco anos mais tarde, quando os nossos ossos estiverem um pouco desgastados pela terra e, aqui e ali, roídos pelos bichos.

Nessa altura talvez enfeitem a nossa caveira com uns óculos escuros e um belo chapéu cómico - é tudo o que se pode dizer.

Vou-me deitar, que o sono e a cama lavada são tão bons.

Amo-te minha querida Francisca mais ainda que o sol de hoje à tarde sobre as amoreiras.

M.»



(Cartas de Maria do Mar para Francisca M., 1988-1999)