Maria do Mar III

Fragmento 191


«Descubro não sem surpresa que escrever debaixo de um espartilho clássico (uma ode, um soneto, uma canção), sob a obrigação dos sons escandidos, rimados e medidos, um por um, é exactamente como fazer surf, Francisca. Não que alguma vez tenha feito surf, tu sabes. Mas posso imaginar, a partir desta sensação de escrever sob a tirania de um ritmo mais ou menos previsível, o que é pôr-se de pé na prancha para correr sobre o mar com a onda. Porque tens aquele ritmo no centro do corpo, um ritmo abstracto e implacável que é como a força imutável do mar, um vazio para os sons obrigatoriamente coincidentes que é como o frio das águas geladas. Tens, como é que te hei-de dizer, esse meio, e essa oposição. Ao mesmo tempo uma via e um obstáculo. E depois há o desejo de uma força que te ultrapassa e que te combina, de pé em cima da prancha, com a força da onda. Um querer pôr-se de pé. Uma coisa tão forte que tem de vir à tona para surfar aquele ritmo escandido, como se fosse um sobrevoo. Enquanto a compões a frase avança extremamente devagar, sempre com aquela agrura da oposição aos meios naturais, aquele perigo, aquela incerteza, mas com uma pulsão própria. Quando a lês inteira porém a frase revela uma velocidade que estava escondida ou inacessível, uma intensidade que de repente é posta a nu. É como um meio de transporte poderoso, a desbravar o espaço do ritmo. Não és tu. É um vento que te sopra por trás, uma rajada que te segura de pé, numa linha que já lá estava e por onde por acaso parece que és tu que vais. E não deixa de ser curioso. Sempre, antes de alguma coisa acontecer, aquele vazio... aquele deserto... E aquela angústia. Igual para a palavra que encaixa no ritmo que a ela se opõe e igual para a palavra que se inventa, e que sai directamente da sensação, como um rebento. A incrível sensação do vazio - de um vazio total.»


(Correspondência de Maria do Mar com Francisca, 1988-1999)