O mecanismo da curiosidade

Fragmento 192



Por vezes, somos agraciados com um acontecimento raro - uma abstracção em acto.

A abstracção é em geral uma tarefa da imaginação, um acto de pensamento, mas, de um modo menos comum, pode acontecer que uma abstracção choque connosco como um Ready-Made.

Foi o que aconteceu num desses Domingos em que o tio J. G. me convidou para ouvir música na sua aparelhagem, inteiramente construída e projectada por si mesmo (aliás, nunca terminada, mas em permanente construção).

Fui porém imediatamente informada, ainda antes do almoço, que teria acontecido um pequeno desastre que obrigaria a uma breve excursão à oficina e em que as minhas duas mãos representariam uma mais-valia inestimável.

Mas que desastre?

Ah, seria muito complicado explicar!...

Assim pegámos num dos cinco amplificadores (pesadíssimo) daquela gigantesca aparelhagem de seis tremendas colunas e que ocupa toda a sala.

Mas eis que no interior daquela «caixa» alguma coisa chocalha.

Caramba, o que se terá soltado?

Aberta a pequena e pesadíssima caixa, fica exposto o emaranhado de fios coloridos. Um labirinto de percursos em que nitidamente se mostra uma rede bem precisa de saídas e entradas.

Mas o que aconteceu?

Ah, isto é muito mais complicado... Muito mais complicado do que eu pensava... Vamos ver... Vamos ver se aqui tem corrente. Não... Não é o condensador... Mas o que será?... Ah... Mas aqui derreteu... E aqui... Ah... Vamos para casa, estão aqui muitas horas de trabalho. Muitas horas, muitas horas.

Mas como? Como é que isto se avariou?

Foi uma válvula nova que experimentei. Explodiu. Mas é muito complicado explicar.

Mas não foi aquela válvula do exército Nazi, de 1930, aquela relíquia que te custou uma fortuna?

Não, não. Ah, que chatice. Vamos ouvir música. Não será a mesma coisa, mas paciência.

E eis o mecanismo da curiosidade, numa perfeita abstracção do seu funcionamento: 

ACONTECIMENTO - O QUE SE PASSOU?
PISTAS
AS PISTAS ERAM FALSAS
REALIDADE
A REALIDADE MOSTRA-SE
MAS É IMPOSSÍVEL DE INTERPRETAR OU SIMPLESMENTE ILEGÍVEL


Não há dúvida. Há qualquer coisa de maquínico em todas as formas de desejo.