Sarrasinoso*

Fragmento 170
 
Agarrado à gravatinha, como se a uma pilinha (mas de um modo vagamente delicodoce), o nosso Primeiro Ministro dá cor à capa do livro com que o badalado título «Somos o que escolhemos ser» atafulha as montras e os escaparates de tantas livrarias portuguesas.
 
Parece ficção de mau gosto, mas não é. Como tantas vezes costuma ser comum na publicidade, na propaganda e noutras estratégias de marketing, mais uma vez nos impingem pirosas e ofensivas barbaridades como se fossem alegres evidências do senso-comum.
 
Assim, ao contrário do que acontece com toda essa imensa zona involuntária da nossa identidade, ou personalidade, ou singularidade, como lhe queiram chamar, numa simples frase se enaltece o imenso poder da vontade pessoal sobre a vida e o destino.
 
O nosso brilhante Primeiro Ministro que vá vender a sua moral aos judeus gaseados nos campos de concentração alemães, às meninas casadas à força no Afeganistão, no Sudão Sul e em tantos outros países do mundo, aos refugiados afogados no Mediterrâneo, a quem trabalha a troco de uma côdea de pão, às populações encurraladas no meio de conflitos armados e às meninas Yazidi que agora mesmo no ano de 2015 estão a ser vendidas como escravas na Síria.
 
Quero colocar apenas uma pergunta.
 
Como é possível que tantos milhões de pessoas (nós, a população portuguesa) possam ser governados por inteligências tão reduzidas?
 
 

*A palavra «sarrasinoso» não existe. Certos elementos da ala feminina da minha família, pela linha materna, que a propósito de qualquer pequeno incidente sacavam de um poema de Camões, Pessoa ou Sá-Carneiro, o qual, fosse no café, na esplanada, ou num corredor de supermercado, declamavam com as mais dramáticas e assustadoras inflexões de voz, tinham o hábito de inventar palavras para as mais variadas circunstâncias. «Sarrasinoso» era aplicado a comentários de agreste maledicência, o que me convenceu, desde tenra idade, que a palavra seria composta a partir de uma mistura de «sarro», com «resina» (sujo como sarro, peganhento como a resina). Isto é, quanto mais agreste, quanto mais maldoso, quanto mais ranhoso, enfim, quanto mais mal-cheiroso - mais «sarrasinoso».